Em Washington tenta-se pôr água
na fervura e remendar uma política de imigração que não agrada a ninguém e está
a gerar uma contestação e emoção crescentes por todo o mundo, devido à medida
das autoridades norte-americanas de separar as crianças dos pais ou outros
familiares que tentam entrar ilegalmente nos Estados Unidos.
A acusação formal de todos os
ilegais que passam a fronteira dos EUA começou em abril. Seguiu-se a separação
das famílias e, com as primeiras imagens, a opinião pública mobilizou-se. Uns
defendem a prática, recusando comparações com os nazis, outros não só a
comparam às políticas de Hitler como às dos próprios norte-americanos quando
criaram campos de internamento para japoneses, durante a Segunda Guerra
Mundial.
Mais de dois terços dos
norte-americanos têm vergonha do que está a passar-se na fronteira sul com o
México, onde cerca de duas mil crianças foram separadas dos pais, todos eles
imigrantes ilegais, enquanto as autoridades processam as suas entradas.
As imagens dos menores a dormir
no chão em celas que mais se assemelham a jaulas foi a gota de água que fez
transbordar um copo que se encheu aos poucos, fruto do paulatino endurecimento
das políticas de integração.
“Isto não é o Texas que eu
conheço”, confessa ao Expresso Dora Saavedra, que, desde domingo, não arreda pé
da entrada do centro de acolhimento de McAllen, naquele estado do sul do país.
“O que estamos a fazer enquanto nação é infligir enorme sofrimento nestas
crianças e nos seus pais”.
James Wegman, assessor do senador
republicano Ben Sasse, resumiu-nos o sentimento coletivo dos aliados políticos
da Casa Branca: “É errado! A América não retém crianças como se fossem reféns,
ponto.”
Esta terça-feira, dois outros
senadores conservadores, Susan Collins e Jeff Flake, escreveram uma carta ao
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, pedindo que pare com o método. Até
à hora de fecho desta edição, ainda não tinham recebido qualquer resposta.
Desde abril, todos os indivíduos
apanhados a tentar passar a fronteira de forma clandestina são acusados
formalmente, uma política batizada tolerância zero. Esta atitude contrasta com
a que foi levada a cabo nos 15 meses anteriores, quando mais de 100 mil pessoas
foram capturadas, mas depois libertadas, entre elas 37 mil jovens.
Trump afirma que o antecessor,
Barack Obama, fez o mesmo. Por exemplo, no verão quente de 2014, quando se
bateu o recorde de entrada de ilegais, a U.S. Customs and Border Protection
(USCBP) reteve 68 mil menores e segundo o magnata nova-iorquino “muitos deles”
acabaram naquelas jaulas.
Gil Kerlikowske, democrata e
antigo chefe da USCBP, agência responsável pela fiscalização da fronteira,
defendeu-se terça-feira, durante uma entrevista à rádio pública (NPR). “Nos
casos em que esses mesmos menores foram acusados de trazer drogas, sem dúvida
que as famílias acabaram separadas.”
UM ALERTA COM MAIS DE UM ANO
Independentemente da troca de
acusações, a verdade é que o anúncio da detenção de todos aqueles que ousem
entrar nos EUA ilegalmente, assim como a inevitável separação das famílias,
ocorreu há mais de um ano.
Nessa altura, o general John
Kelly, então líder do Department of Homeland Security (Departamento de
Segurança Interna, organismo criado após o ataque terrorista de 11 de setembro
de 2001), hoje chefe de Gabinete da presidência, avisou: “Sim, considero a
possibilidade de separar os menores dos seus pais, de maneira a acabar com os
movimentos no interior dessa terrível organização”.
Kelly referia-se à teoria de que
há membros do gangue MS-13 infiltrados nas vagas de clandestinos. O receio
deve-se ao facto de, ao longo dos últimos anos, aquele grupo ter espalhado o
terror em algumas das maiores cidades americanas - Nova Iorque, Los Angeles,
Miami, etc..
O seu colega de Executivo Jeff
Sessions, ministro da Justiça, também defendeu a decisão. Em declarações à Fox
News, acrescentou que a medida “pretende dissuadir entradas ilegais e reafirmar
princípios básicos de um Estado de Direito. Todos os que quiserem entrar, devem
fazê-lo pelas vias legais”.
Porém, desde que a política de
tolerância zero foi posta em prática, o fluxo migratório manteve-se. Todos os
meses, calcula-se que mais de 50 mil pessoas passam ilegalmente do México para
os EUA, ao longo de um corredor sinuoso de cerca de três mil quilómetros entre
San Diego, na Califórnia, e Loredo, no Texas. O processamento cadastral de
todos eles é quase impossível, indicam ao Expresso vários advogados
especializados em lei de imigração.
SOLUÇÃO PROCURA-SE
Mesmo assim, Trump insiste que
“os Estados Unidos não se tornarão um campo de refugiados”. De forma mais
elaborada, o seu diretor de assuntos legislativos, Marc Short, reconheceu à
rádio pública de Boston (WBUR) que “há uma crise na fronteira”, mas que “cabe
ao Congresso resolver o problema, visto que a Casa Branca não gosta de soluções
binárias (deportação ou simples libertação)”.
Num discurso em Nova Orleães, na
terça-feira, a sucessora de Kellly à frente do DHS, Kirstjen Nielsen, também
colocou o foco no Congresso. “Há muita consternação e francamente desinformação
por parte de congressistas, jornalistas e ativistas, alegando que o DHS está de
forma intencional a fazer coisas desumanas, cruéis e imorais. Não estamos a
fazer nada disso. Estamos a cumprir a lei emanada do Congresso. Mudem a lei e
nós mudaremos também”.
Nielsen explicou depois a
complicada trama legal. “Não podemos manter as crianças com os seus pais de
acordo com uma decisão do tribunal, datada de 2015. Ou libertamos pais e
filhos, prática levada a cabo pela anterior Administração e que ditou a anarquia,
ou o menor e o adulto serão separados na sequência do processamento da entrada
do mais velho”.
Nancy Pelosi, líder dos
democratas na Câmara dos Representantes, negou responsabilidades, esclarecendo
que “não é um assunto de política de imigração. É uma questão humanitária”.
HITLER E OS “CAMPOS DE FÉRIAS”
Perante as críticas contra a
política de tolerância zero, Sessions insistiu em cerrar fileiras. Na
segunda-feira, desmentiu que as separações forçadas se assemelhem às políticas
de Hitler, visto que “os nazis proibiam os judeus de regressar”.
Laura Ingraham, estrela da Fox
News e putativa secretária de Imprensa, optava pelo mesmo tipo de comparações
coloridas, revelando que os centros de acolhimento para menores “no fundo, são
campos de férias”.
“Enojada”, Laura Bush, antiga
primeira-dama, já tinha traçado um outro paralelo histórico num artigo de
opinião publicado no “The Washington Post”, mas desta vez para arrasar o
comportamento da Administração. “Estas imagens são reminiscentes dos campos de internamento
para japoneses nos EUA, criados durante a Segunda Guerra Mundial.”
A este propósito, o Expresso
conversou durante alguns minutos com May Yamaoka, uma dessas vítimas de um
pesadelo com mais de 75 anos, e registou que as memórias do cárcere ainda a
consomem. “Foram tempos de exceção. Era uma criança e os meus pais tinham um
alvo na testa. Mesmo com o fim da guerra, a discriminação continuou. Não quero
acreditar que iremos repetir a mesma fórmula tanto tempo depois”.
O MURO
A propósito do pedido de Nielsen,
ou seja da alteração da lei de Imigração, note-se que a proposta da Casa Branca
está congelada na Câmara dos Representantes. A causa do impasse relaciona-se
com dois pontos fundamentais: muro na fronteira com o México e legalização dos
“Dreamers”, os menores que entraram ilegalmente com os pais no início deste
século e que obtiveram um estatuto legal provisório graças a um despacho
assinado por Barack Obama.
Trump e o Freedom Caucus
(movimento de extrema direita no Congresso, com raízes no movimento Tea Party)
pretendem a edificação da barreira no sul do país, enquanto a oposição
democrata e o “establishment” republicano (núcleo conservador do Partido) se
opõem de forma mais ou menos clara.
Antecipa-se que o preço a pagar
por uma legalização dos “Dreamers" (cerca de dois milhões, 55 deles
portugueses) seja, por isso, a construção desse mesmo muro.
“Do ponto de vista político,
Trump julga que o muro e as detenções irão beneficiá-lo junto dos republicanos.
No caso das separações forçadas, há um documento que circula na Casa Branca
provando que a Administração acredita que, ao deter estes pais, aqueles que se
preparam para iniciar viagem irão pensar duas vezes e desistir”, diz ao
Expresso Paul Miller, professor de Ciência Política na Universidade do Texas.
Até ao final desta semana,
prevê-se um longo debate na Câmara dos Representantes em torno da alteração da
polémica lei. Existem duas propostas e ambas têm o apoio de Trump, que mesmo
assim irá sempre “ler e avaliar antes de assinar”, recordou ontem.
“É a semana da imigração”,
ironiza James Wegman. “Vamos ver o que dá, mas duvido que haja progressos”. Miller
concorda. “É um problema sem solução”.
Ricardo Lourenço, correspondente
nos EUA | Expresso | Fotos: Getty
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