Habitação em leito de ribeira
autorizada pela Câmara Municipal de S. Vicente –Invenção Técnica(?),
inobservâcia da lei(?), provocação à Natureza(!)
Se a lei não serve, que se mude.
Claramente, o cumprimento da lei não parece o caminho escolhido pela CMSV na
governação da coisa pública
Ricardino Neves | A Nação | opinião
S. Vicente depara-se com o facto
da Câmara Municipal de S. Vicente ter licenciado a ocupação dum leito
de ribeira em Chã de Alecrim para construção de sete habitações. Tal caso representa uma
“novidade” que mereceu a contestação de alguns munícipes e claramente a
interrogação por um número significativo deles sobre o acerto de tal
decisão. Neste debate em curso vimos, por
esta via, contribuir para a necessária reflexão sobre esta situação inédita.
1. INVENÇÃO TÉCNICA(?)
O leito de ribeira foi até
agora local destinado ao escoamento das águas das chuvas. Tal entendimento
parece ser uma ideia correntemente assumida , razão pela qual os leitos nunca
foram objecto de qualquer ocupação física, pelo menos, até esta iniciativa.
Neste Cabo Verde, nos leitos de
ribeira, até agora, só se construíram muitos diques de retenção e algumas
barragens. Para além disso os leitos vêm servindo como caminho de circulação.
Quando se começou a constatar a
actividade construtiva nesse leito de Ribeira ainda se interrogou de que tipo
de obra se tratava , mas longe de se imaginar que se tratava de construção de
habitação corrente.
Quando se viu que se tratava
efectivamente de edifício de habitação a estupefação e o clamor começaram a
crescer mediante o que parece ser uma “ideia no mínimo estranha”.
Perante as interrogações e não
menos contestações vimos assistindo a um desenrolar de justificações por parte
da CMSV, na pessoa do Sr. Presidente.
O facto do Sr. Presidente da CMSV
assumir o assunto em pessoa testemunha o ilógico desta decisão. Ilógico sim
porque se esperava que, sendo a matéria , uma questão técnica de
natureza muito especifica como são as cheias derivadas de queda de
chuvas e seu controle , deveriam ser objecto de abordagem por
especialistas , no caso em apreço, em Hidrologia.
As razões que o Presidente da
CMSV publicamente apresentou são razões de carácter genérico, com argumentos
não tecnicamente suportados, afirmações mais de fé do que técnicas.
E tais razões, como o suporte em
estudos efectuados e a construção de alguns diques seriam a garantia que
asseguravam a viabilidade da opção de ocupação do leito da ribeira, foram
liminarmente negados pelo Engenheiro António Sabino, especialista graduado em
Hidrologia e autor do único estudo conhecido até o momento sobre a zona de Chã
de Alecrim.
Assim sendo , ficam no ar e
legitimamente, as interrogações que se levantam sobre a iniciativa e a pergunta que
se impõe é se a Câmara Municipal de S. Vicente estará
detentora dum conhecimento inovador em matéria de controle de cheias provocadas
pela queda de chuvas, o que, a ser verdade, pode ser considerado uma
autêntica INVENÇÃO TÉCNICA.
Julgo que a haver INVENÇÃO ela
deve ser rapidamente divulgada , ser aplicada a todas as ribeiras de
S. Vicente e ser divulgada pelas ILHAS de modo a que se possa avançar no sentido
de aproveitamento de mais um espaço urbano disponível nesta terra. E depois
passar à sua divulgação internacional em todos os fórum técnicos que se
debruçam sobre esta área de Hidrologia.
Sendo conhecida a capacidade
criativa mindelense, estaremos via Câmara Municipal de S.Vicente , perante uma
grande descoberta?
2. INOBSERVÂNCIA DA LEGALIDADE(?)
Para além das preocupações de
natureza técnica interrogações também se levantam quanto
à legalidade da ocupação do leito de ribeiras.
O Decreto Legislativo nº 2/2007 ,
publicado no Suplemento BO nr. 26 de 19 de Julho , estabelece os
princípios e normas de utilização de solos, tanto para as entidades públicas
como pelas entidades privadas.
Nele se estatui, no seu artigo 10
º, alínea a) que “ os leitos e subsolos de águas interiores pertencem ao
domínio público do Estado”.
No seu artigo 13º, Regime dos
terrenos do domínio público , se indica no seu ponto 1.” Salvo disposição legal
em contrário os terrenos pertencentes ao domínio público são a
todos acessíveis ,independentemente de autorização ou licença“.
O mesmo artigo, no seu ponto 2.
diz que “ Os terrenos pertencentes ao domínio público, seja do estado seja
autarquias locais são inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis”. Como tal
não podem ser transmitidos a outrem (inalienável),não podem ser
penhorados (impenhoráveis) e não caiem em desuso (imprescritíveis).
O ponto 3. do mesmo
artigo diz “Os terrenos pertencentes ao domínio publico, seja do
Estado seja autarquias locais , só podem ser ocupados a titulo precário , mas
são susceptíveis de atribuição a particulares em regime de uso privativo
,mediante licença ou contrato administrativo de concessão “.
Essa leitura levanta fortes
interrogações sobre a legalidade da ocupação do leito da ribeira em
apreço, com atribuição de licença de ocupação, a título definitivo, como é o
caso de habitação.
E quando nos debruçamos sobre o
Decreto Lei nº 43/2010 publicado no BO I Serie nr
37 de 27 de Setembro que aprova o Regulamento Nacional do
Ordenamento do Território voltam as interrogações sobre o cumprimento do que
ela estabelece.
Interrogações relativas ao
estabelecido no artigo 4º que enquadra o direito à participação dos cidadãos e
ao dever das entidades públicas responsáveis pela elaboração dos instrumentos
de gestão territorial de divulgar a decisão de desencadear o processo de
elaboração , a abertura e a duração da fase de discussão pública e o seu dever
de ponderar as propostas apresentadas bem como a obrigação de resposta
fundamentada aos pedidos de esclarecimento formulados.
E se neste caso a Câmara
Municipal não procedeu como devia antes, depois não se dignou, pelo
menos até agora, proceder como deve ser em matéria de informação e
disponibilização de dados que permita o esclarecimento da opinião pública
mindelense que questiona a solução adoptada.
Por último a forma de atribuição
dos lotes de terreno criados com o plano detalhado está longe
,muito longe, do que estabelece o Dec.Leg. 2/2007 no seu artigo 38º Princípios
Gerais.
Se esse decreto lei parece
“distante” , claramente não se cumpre o estabelecido no Código de Posturas da
Câmara Municipal de S. Vicente,Capítulo XII DA ALIENAÇÃO DE LOTES DE TERRENOS
PARA CONSTRUÇÃO ,artº 229 Modalidades de cedência, ao se
adoptar a prática de “doação”(?) por particulares para aquisição de terrenos
municipais.
Se a lei não serve, que se mude.
Claramente, o cumprimento da lei não parece o caminho escolhido pela CMSV na
governação da coisa pública.
3. PROVOCAÇÃO À NATUREZA(!)
Terminamos o exposto para referir
que o bom senso não aconselha que se ocupe o leito da ribeira porque ela é o
local natural de passagem das águas em consequência da precipitação das chuvas.
Sendo certo que quando as águas
vierem elas terão que passar por algum lado , é temerário
pensar que as “cheias” desaparecem em resultado de uma qualquer intervenção
humana.
Nem a construção mais elaborada
pela engenharia humana que são as barragens prevê o desaparecimento do efeito
de cheia.
Antes pelo contrário ,
a concepção técnica prevê descarregadores que asseguram o total escoamento das
águas de cheia , sob pena da barragem ser galgada por elas acarretando a sua
destruição.
Do mesmo modo é corrente nas
escolas de engenharia a ideia clara de que os métodos de previsão do escoamento
das aguas (Hidrologia) não são ciência pura, mas sim aproximações aos fenómenos
naturais.
Daí que nessas mesmas escolas é
corrente a recomendação de conciliar os elementos teóricos com os
relatos de ocorrência histórica das grandes acções naturais (cheias de rios,
ondulação marinha costeira,etc) de modo a garantir uma proximidade maior
entre o teórico e o real e assim evitar correr riscos desnecessários para a
integridade de meios humanos e materiais.
Terminaria esse texto, citando
uma moradora local, que ao ser abordada por activistas que questionavam a
solução de construção no leito de ribeira, no íntimo da sua sabedoria popular
de experiência feita. Dizia: “EU SÓ QUERIA SABER QUEM É O SENHOR QUE FEZ
CONTRATO COM A NATUREZA?”.
Esperemos não ter que lhe dar
razão na sua interrogação, porque lá diz o ditado popular: “COM A NATUREZA NÃO
SE BRINCA”.
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