segunda-feira, 16 de julho de 2018

Cabo Verde | Alertar antes do “dilúvio” e a desgraça acontecer em São Vicente


Habitação em leito de ribeira autorizada pela Câmara Municipal de S. Vicente –Invenção Técnica(?), inobservâcia da lei(?), provocação à Natureza(!)

Se a lei não serve, que se mude. Claramente, o cumprimento da lei não parece o caminho escolhido pela CMSV na governação da coisa pública

Ricardino Neves | A Nação | opinião

S. Vicente depara-se com o facto da Câmara Municipal de S. Vicente ter licenciado a ocupação dum  leito de ribeira em Chã de Alecrim para construção de sete habitações. Tal caso representa uma “novidade” que mereceu a contestação de alguns munícipes e claramente a interrogação por um número significativo deles  sobre o acerto de tal decisão. Neste debate em curso vimos, por esta via, contribuir para a necessária reflexão sobre esta situação inédita.

1. INVENÇÃO TÉCNICA(?)

O leito de ribeira  foi  até agora local destinado ao escoamento das águas das chuvas. Tal entendimento parece ser uma ideia correntemente assumida , razão pela qual os leitos nunca foram objecto de qualquer ocupação física, pelo menos, até esta iniciativa.

Neste Cabo Verde, nos leitos de ribeira, até agora, só se construíram muitos diques de retenção e algumas barragens. Para além disso os leitos vêm servindo como caminho de circulação.

Quando se começou a constatar a actividade construtiva nesse leito de Ribeira ainda se interrogou de que tipo de obra se tratava , mas longe de se imaginar que se tratava de construção de habitação corrente.

Quando se viu que se tratava efectivamente de edifício de habitação a estupefação e o clamor começaram a crescer mediante o que parece ser uma “ideia no mínimo estranha”.
Perante as interrogações e não menos contestações vimos assistindo a um desenrolar de justificações por parte da CMSV, na pessoa do Sr. Presidente.

O facto do Sr. Presidente da CMSV assumir o assunto em pessoa testemunha o ilógico desta decisão. Ilógico   sim porque se esperava  que, sendo a matéria , uma questão técnica de natureza muito especifica como são as cheias  derivadas de queda de chuvas e  seu controle , deveriam ser objecto de abordagem por especialistas , no caso em apreço, em Hidrologia.

As razões que o Presidente da CMSV publicamente apresentou são razões de carácter genérico, com argumentos não tecnicamente suportados, afirmações mais de fé do que técnicas.

E tais razões, como o suporte em estudos efectuados e a construção de alguns diques seriam a garantia que asseguravam a viabilidade da opção de ocupação do leito da ribeira, foram liminarmente negados pelo Engenheiro António Sabino, especialista graduado em Hidrologia e autor do único estudo conhecido até o momento sobre a zona de Chã de Alecrim.

Assim sendo , ficam no ar e legitimamente, as interrogações que se levantam sobre a iniciativa e a pergunta  que se impõe  é  se a Câmara Municipal de S. Vicente estará detentora dum conhecimento inovador em matéria de controle de cheias provocadas pela queda de chuvas, o que, a ser verdade, pode ser considerado uma autêntica  INVENÇÃO TÉCNICA.

Julgo que a haver INVENÇÃO ela deve ser rapidamente divulgada  , ser aplicada a todas as ribeiras de S. Vicente e ser divulgada pelas ILHAS de modo a que se possa avançar no sentido de aproveitamento de mais um espaço urbano disponível nesta terra. E depois passar à sua divulgação internacional em todos os fórum técnicos que se debruçam sobre esta área de Hidrologia.

Sendo conhecida a capacidade criativa mindelense, estaremos via Câmara Municipal de S.Vicente , perante uma grande descoberta?

2. INOBSERVÂNCIA DA LEGALIDADE(?)

Para além das preocupações de natureza técnica  interrogações  também se levantam quanto à legalidade da ocupação do leito de ribeiras.

O Decreto Legislativo nº 2/2007 , publicado no Suplemento BO nr. 26  de 19 de Julho , estabelece os princípios e normas de utilização de solos, tanto para as entidades públicas como pelas entidades privadas.

Nele se estatui, no seu artigo 10 º, alínea a) que “ os leitos e subsolos de águas interiores pertencem ao domínio público do Estado”.

No seu artigo 13º, Regime dos terrenos do domínio público , se indica no seu ponto 1.” Salvo disposição legal em contrário os terrenos pertencentes ao domínio público   são a todos acessíveis ,independentemente de autorização ou licença“.

O mesmo artigo, no seu ponto 2. diz que “ Os terrenos pertencentes ao domínio público, seja do estado seja autarquias locais são inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis”. Como tal não podem ser transmitidos a outrem (inalienável),não podem ser penhorados (impenhoráveis) e não caiem em desuso (imprescritíveis).

O ponto 3. do  mesmo artigo diz  “Os terrenos pertencentes ao domínio publico, seja do Estado seja autarquias locais , só podem ser ocupados a titulo precário , mas são susceptíveis de atribuição a particulares em regime de uso privativo ,mediante licença ou contrato administrativo de concessão “.

Essa leitura levanta fortes interrogações sobre a legalidade da ocupação  do leito da ribeira em apreço, com atribuição de licença de ocupação, a título definitivo, como é o caso de habitação.

E quando nos debruçamos sobre o Decreto Lei nº 43/2010   publicado no BO  I Serie nr 37 de 27 de Setembro  que aprova o Regulamento Nacional do Ordenamento do Território voltam as interrogações sobre o cumprimento do que ela estabelece.

Interrogações relativas ao estabelecido no artigo 4º que enquadra o direito à participação dos cidadãos e ao dever das entidades públicas responsáveis pela elaboração dos instrumentos de gestão territorial de divulgar a decisão de desencadear o processo de elaboração , a abertura e a duração da fase de discussão pública e o seu dever de ponderar as propostas apresentadas bem como a obrigação de resposta fundamentada aos pedidos de esclarecimento formulados.

E se neste caso a Câmara Municipal não procedeu como devia antes, depois não se dignou, pelo menos até agora, proceder como deve ser em matéria de informação e disponibilização de dados que permita o esclarecimento da opinião pública mindelense que questiona a solução adoptada.

Por último a forma de atribuição dos lotes de terreno criados com   o plano detalhado está longe ,muito longe, do que estabelece o Dec.Leg. 2/2007 no seu artigo 38º Princípios Gerais.

Se esse decreto lei  parece “distante” , claramente não se cumpre o estabelecido no Código de Posturas da Câmara Municipal de S. Vicente,Capítulo XII DA ALIENAÇÃO DE LOTES DE TERRENOS PARA CONSTRUÇÃO ,artº 229 Modalidades de cedência,  ao se adoptar a prática de “doação”(?) por particulares para aquisição de terrenos municipais.

Se a lei não serve, que se mude. Claramente, o cumprimento da lei não parece o caminho escolhido pela CMSV na governação da coisa pública.

3. PROVOCAÇÃO À NATUREZA(!)

Terminamos o exposto para referir que o bom senso não aconselha que se ocupe o leito da ribeira porque ela é o local natural de passagem das águas em consequência da precipitação das chuvas.

Sendo certo que quando as águas vierem   elas terão que passar por algum lado , é temerário pensar que as “cheias” desaparecem em resultado de uma qualquer intervenção humana.

Nem a construção mais elaborada pela engenharia humana que são as barragens prevê o desaparecimento do efeito de cheia.

Antes pelo contrário  , a concepção técnica prevê descarregadores que asseguram o total escoamento das águas de cheia , sob pena da barragem ser galgada por elas acarretando a sua destruição.

Do mesmo modo é corrente nas escolas de engenharia a ideia clara de que os métodos de previsão do escoamento das aguas (Hidrologia) não são ciência pura, mas sim aproximações aos fenómenos naturais.

Daí que nessas mesmas escolas é corrente a recomendação de conciliar os elementos teóricos com   os relatos de ocorrência histórica das grandes acções naturais (cheias de rios, ondulação marinha costeira,etc) de modo a garantir uma proximidade  maior entre o teórico e o real e assim evitar correr riscos desnecessários para a integridade de meios humanos e materiais.

Terminaria esse texto, citando uma moradora local, que ao ser abordada por activistas que questionavam a solução de construção no leito de ribeira, no íntimo da sua sabedoria popular de experiência feita. Dizia: “EU SÓ QUERIA SABER QUEM É O SENHOR QUE FEZ CONTRATO COM A NATUREZA?”.

Esperemos não ter que lhe dar razão na sua interrogação, porque lá diz o ditado popular: “COM A NATUREZA NÃO SE BRINCA”.

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