A nova Lei Fundamental define que
Israel é o Estado-nação do povo judeu, o que outorga os direitos nacionais
exclusivamente a judeus. Árabes, muçulmanos ou cristãos, são excluídos.
Chama-se apartheid.
Na ressaca da aprovação, pelo
Parlamento de Israel, da Lei Fundamental que define o país como «o Estado-nação
do povo judeu» tem vindo a ser ocultado o facto de as medidas agora passadas a
escrito, e com valor constitucional, incorrerem na prática internacionalmente
tipificada como «crime contra a humanidade». Perante a identidade
inequivocamente segregacionista agora assumida, às claras, pelo Estado de
Israel, será que as instâncias reguladoras do direito internacional vão
continuar a comportar-se como se nada se passasse?
Alguns dos comentários avulsos
que é possível encontrar sobre esta decisão gravíssima assumida, em 19 de
Julho, pela maioria dos deputados do sionismo sublinham que, afinal, Israel
limitou-se a transformar em Lei fundamental a política de apartheid que já
praticava contra os cidadãos não-judeus. Grande parte dessas análises omite que
a maioria parlamentar fascista, nacionalista e fundamentalista religiosa de
Israel apenas se atreveu a constitucionalizar uma política criminosa porque a chamada
«comunidade internacional» nunca reagiu à crueza das evidências e permitiu o
avanço e consolidação das atrocidades contra os não-judeus, principalmente os
palestinianos. As grandes potências mundiais e as principais instâncias
internacionais – formais ou informais – sejam a ONU, o G7, G8 ou G20, a NATO, a
União Europeia e seus governos são cúmplices do comportamento vergonhoso e
desumano da cúpula do Estado de Israel. A partir de agora, se tais instâncias
mantiverem o colaboracionismo – activo ou passivo – tornam-se parte de um crime
contra a humanidade.
A Lei Fundamental aprovada pelo
Parlamento estabelecendo que o direito de exercer a autodeterminação nacional e
a soberania do Estado de Israel pertence exclusivamente ao povo judeu viola o
espírito e a letra da Convenção Internacional para Supressão e Punição do Crime
de Apartheid, a chamada Convenção do Apartheid. Este documento define que as
práticas de apartheid, incluindo a legislação que as enquadra, «são crimes
contra a humanidade»1.
Como se dá corpo a um novo
apartheid
Para os que continuam a ser
vítimas do mainstream mediático global e que, por inerência, não tomaram
conhecimento deste acontecimento tão transcendente como ignóbil, resumo o
essencial da nova lei constituinte do Estado de Israel, que aliás é uma
entidade que não tem Constituição, não tem fronteiras registadas e cujo povo
habita em todo o mundo, mas tem na Palestina histórica o seu «lar nacional».
A lei define que o Estado de
Israel é o Estado-nação do povo judeu, o que outorga os direitos nacionais
exclusivamente aos judeus, quer vivam no interior da chamada «linha verde», no
exterior ou em qualquer parte do mundo. Esses direitos são negados a cerca de
20 por cento da população residente do Estado de Israel que são não-judeus,
maioritariamente árabes muçulmanos ou cristãos.
O interesse nacional israelita é,
deste modo, determinado de acordo com os interesses colectivos sionistas
transnacionais, impondo a discriminação local dos não-judeus. Os cidadãos
israelitas de origem árabe estão submetidos aos impostos do Estado, por
exemplo, mas são impedidos de alinhar os seus direitos pelos da população
judaica. Direitos esses que podem ser compartilhados por qualquer «cidadão
judeu» em qualquer parte do mundo onde viva.
Um quinto da população residente
em Israel, e com documentos de identificação israelitas, é discriminada por
lei. «Quem não pertence à nação judaica não pode identificar-se com Israel como
seu Estado-nação», explica o deputado Avi Dichter, do partido Likud do
primeiro-ministro Netanyahu e também um dos autores do articulado. «Os
palestinianos não podem definir Israel como o seu Estado-nação», acrescenta.
A nova lei estipula ainda que
deverá ser incentivada a «judaização de espaços» e encorajada a multiplicação
de colonatos na Palestina em regiões de maiorias não-judaicas, consumando-se
assim a intenção de criar «superioridades demográficas», ou seja, anexar os
territórios ocupados. A limpeza étnica praticada há mais de 60 anos vai
acelerar-se.
A lei que define agora o carácter
étnico-religioso de Israel como exclusivamente judeu é discriminatória,
etnicamente segregacionista, ofende o princípio da igualdade dos cidadãos
perante a lei, viola as leis e convenções internacionais aplicáveis em territórios
sob ocupação, nega a ligação dos cidadãos nativos palestinianos ao seu lar
nacional.
A língua árabe deixa de ser um
dos idiomas nacionais de Israel, relegada para um «estatuto especial». O
hebraico é agora a única língua oficial do Estado.
Da convergência destas
determinações ressalta, da maneira mais óbvia, o carácter discriminatório,
segregacionista, racista e de apartheid assumido agora pelo Estado de Israel.
Será esta situação compatível com
o estatuto de «única democracia do Médio Oriente», o mantra proclamado pelos
dirigentes sionistas e com os quais continua a fazer coro, por exemplo, o
ministro português dos Negócios Estrangeiros, mesmo face à nova lei?
O corajoso e frontal jornalista
judeu Gideon Levy respondeu assim no jornal israelita Haaretz: «Se o Estado é
judeu é democrático, porque não permite a igualdade entre judeus e não-judeus;
se o Estado é democrático não pode ser judeu, porque a democracia não é
compatível com a instauração de privilégios fundamentados na etnicidade».
Entendeu, senhor ministro Santos
Silva? Apartheid: «desenvolvimento independente”, coexistência separada –
definiam os próprios segregacionistas sul-africanos. Israel é diferente? Nem
sequer na criação de territórios equivalentes – para pior – a bantustões, como
são os casos de Gaza e de tantas comunidades palestinianas da Cisjordânia
cercadas pelo muro de separação e vítimas das restrições às suas autonomia e
sobrevivência, designadamente os check-points militares e as estruturas de
serviço exclusivas dos colonatos hebreus.
«Democracias iliberais»
Apesar de a situação agora
reforçada por lei em Israel cair no âmbito do «crime contra a humanidade»
previsto na Convenção do Apartheid, a ONU e respectivo secretário-geral
continuam a fazer-se desentendidos. Talvez seja por causa da silly season e,
daqui a umas semanas, ouçamos então anunciar medidas destinadas a reparar os
danos às comunidades de não-judeus e à lei internacional. Acreditam nisso?
E a União Europeia, esse
brilhante farol da democracia e dos direitos humanos? Também a banhos,
provavelmente; ou então ocupada em ajustar contas com Trump, por sua vez
orgulhoso do alento que deu a este passo decisivo dos dirigentes sionistas ao
reconhecer a unificação de Jerusalém.
Há muito, aliás, que a União
Europeia entendeu ser desnecessário mostrar preocupações com a democracia e os
direitos humanos. Vive tranquilamente com associações de nações a caminho do
fascismo no seu interior, como é o grupo de Visegrado, formado por Hungria,
Polónia, República Checa e Eslováquia. A que poderiam juntar-se outros como a
Itália e a Áustria. Porém, não são regimes nacionalistas, nem fascistas, nem
aberrações democráticas. São – reparem nesta preciosidade semântica, saída da
mente brilhante de Macron e logo adoptada por governantes da União –
«democracias iliberais».
Israel, que goza de um
privilegiado estatuto de associação com a União Europeia, passa assim a
pertencer a esse grupo, quiçá «futurista» e «progressista», das «democracias
iliberais». Aliás, mal aprovada a lei do apartheid Netanyahu recebeu, com todas
as honras, o primeiro ministro da Hungria, Viktor Orban, por sinal um admirador
confesso de Miklos Horthy, o ditador de Budapeste aliado de Hitler que
participou, sem rebuço, na carnificina de judeus e outros não-arianos a quem
foram negados os direitos próprios da raça pura, até o direito à vida – como
hoje acontece aos palestinianos na Palestina.
E não pensem em Netanyahu e seus
parceiros legisladores como vítimas de uma contradição insanável ao acolherem
admiradores de carrascos de judeus como gente de bem. Grupos terroristas
sionistas que serviram de base ao actual exército nacional, como o Irgun e o Stern2, ofereceram os seus
serviços aos nazis3 enquanto
milhões de judeus eram sacrificados nos campos de concentração, porque o seu
principal objectivo, na época, era combater os britânicos na Palestina.
Os inimigos dos nossos inimigos
nossos amigos são, não é? Por isso foi possível encontrar, anos mais tarde,
Israel no grupo restritíssimo dos aliados e colaboradores do isolado apartheid
sul-africano, apoiando até os esforços de Pretória para ter a bomba atómica –
sonho esfumado por Nelson Mandela.
Mandela, cujo centenário se
cumpriu em 19 de Julho, o dia em que o Parlamento israelita proclamou
solenemente a existência de outro regime de apartheid no planeta. A História
consegue ser muito traiçoeira…
Notas:
1. Recordem-se
as palavras do jurista John Dugard que, na Biblioteca
de Direito Internacional das Nações Unidas, acompanham a apresentação do texto
integral da convenção: «It may be concluded that the Apartheid Convention
is dead as far as the original cause for its creation – apartheid in South
Africa – is concerned, but that it lives on as a species of the crime against
humanity, under both customary international law and the Rome Statute of the
International Criminal Court».
2. Fundado
por Avraham Stern, que pregava a tomada da Palestina (então sob mandato
britânico) pela força, como ponto de partida para um «Grande Israel» aliado do
nazismo e do fascismo
Na foto: Guardas israelitas detêm
um jovem palestino durante uma manifestação na entrada principal do complexo de
mesquitas de Al-Aqsa. Jerusalém, Palestina, 17 de Julho de 2017.CréditosAhmad Gharabli
/ AFP / Getty Images
Sem comentários:
Enviar um comentário