sexta-feira, 27 de julho de 2018

Israel assume crime contra a humanidade


A nova Lei Fundamental define que Israel é o Estado-nação do povo judeu, o que outorga os direitos nacionais exclusivamente a judeus. Árabes, muçulmanos ou cristãos, são excluídos. Chama-se apartheid.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

Na ressaca da aprovação, pelo Parlamento de Israel, da Lei Fundamental que define o país como «o Estado-nação do povo judeu» tem vindo a ser ocultado o facto de as medidas agora passadas a escrito, e com valor constitucional, incorrerem na prática internacionalmente tipificada como «crime contra a humanidade». Perante a identidade inequivocamente segregacionista agora assumida, às claras, pelo Estado de Israel, será que as instâncias reguladoras do direito internacional vão continuar a comportar-se como se nada se passasse?

Alguns dos comentários avulsos que é possível encontrar sobre esta decisão gravíssima assumida, em 19 de Julho, pela maioria dos deputados do sionismo sublinham que, afinal, Israel limitou-se a transformar em Lei fundamental a política de apartheid que já praticava contra os cidadãos não-judeus. Grande parte dessas análises omite que a maioria parlamentar fascista, nacionalista e fundamentalista religiosa de Israel apenas se atreveu a constitucionalizar uma política criminosa porque a chamada «comunidade internacional» nunca reagiu à crueza das evidências e permitiu o avanço e consolidação das atrocidades contra os não-judeus, principalmente os palestinianos. As grandes potências mundiais e as principais instâncias internacionais – formais ou informais – sejam a ONU, o G7, G8 ou G20, a NATO, a União Europeia e seus governos são cúmplices do comportamento vergonhoso e desumano da cúpula do Estado de Israel. A partir de agora, se tais instâncias mantiverem o colaboracionismo – activo ou passivo – tornam-se parte de um crime contra a humanidade.

A Lei Fundamental aprovada pelo Parlamento estabelecendo que o direito de exercer a autodeterminação nacional e a soberania do Estado de Israel pertence exclusivamente ao povo judeu viola o espírito e a letra da Convenção Internacional para Supressão e Punição do Crime de Apartheid, a chamada Convenção do Apartheid. Este documento define que as práticas de apartheid, incluindo a legislação que as enquadra, «são crimes contra a humanidade»1.

Como se dá corpo a um novo apartheid

Para os que continuam a ser vítimas do mainstream mediático global e que, por inerência, não tomaram conhecimento deste acontecimento tão transcendente como ignóbil, resumo o essencial da nova lei constituinte do Estado de Israel, que aliás é uma entidade que não tem Constituição, não tem fronteiras registadas e cujo povo habita em todo o mundo, mas tem na Palestina histórica o seu «lar nacional».

A lei define que o Estado de Israel é o Estado-nação do povo judeu, o que outorga os direitos nacionais exclusivamente aos judeus, quer vivam no interior da chamada «linha verde», no exterior ou em qualquer parte do mundo. Esses direitos são negados a cerca de 20 por cento da população residente do Estado de Israel que são não-judeus, maioritariamente árabes muçulmanos ou cristãos.

O interesse nacional israelita é, deste modo, determinado de acordo com os interesses colectivos sionistas transnacionais, impondo a discriminação local dos não-judeus. Os cidadãos israelitas de origem árabe estão submetidos aos impostos do Estado, por exemplo, mas são impedidos de alinhar os seus direitos pelos da população judaica. Direitos esses que podem ser compartilhados por qualquer «cidadão judeu» em qualquer parte do mundo onde viva.

Um quinto da população residente em Israel, e com documentos de identificação israelitas, é discriminada por lei. «Quem não pertence à nação judaica não pode identificar-se com Israel como seu Estado-nação», explica o deputado Avi Dichter, do partido Likud do primeiro-ministro Netanyahu e também um dos autores do articulado. «Os palestinianos não podem definir Israel como o seu Estado-nação», acrescenta.

A nova lei estipula ainda que deverá ser incentivada a «judaização de espaços» e encorajada a multiplicação de colonatos na Palestina em regiões de maiorias não-judaicas, consumando-se assim a intenção de criar «superioridades demográficas», ou seja, anexar os territórios ocupados. A limpeza étnica praticada há mais de 60 anos vai acelerar-se.

A lei que define agora o carácter étnico-religioso de Israel como exclusivamente judeu é discriminatória, etnicamente segregacionista, ofende o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, viola as leis e convenções internacionais aplicáveis em territórios sob ocupação, nega a ligação dos cidadãos nativos palestinianos ao seu lar nacional.

A língua árabe deixa de ser um dos idiomas nacionais de Israel, relegada para um «estatuto especial». O hebraico é agora a única língua oficial do Estado.

Da convergência destas determinações ressalta, da maneira mais óbvia, o carácter discriminatório, segregacionista, racista e de apartheid assumido agora pelo Estado de Israel.

Será esta situação compatível com o estatuto de «única democracia do Médio Oriente», o mantra proclamado pelos dirigentes sionistas e com os quais continua a fazer coro, por exemplo, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, mesmo face à nova lei?

O corajoso e frontal jornalista judeu Gideon Levy respondeu assim no jornal israelita Haaretz: «Se o Estado é judeu é democrático, porque não permite a igualdade entre judeus e não-judeus; se o Estado é democrático não pode ser judeu, porque a democracia não é compatível com a instauração de privilégios fundamentados na etnicidade».

Entendeu, senhor ministro Santos Silva? Apartheid: «desenvolvimento independente”, coexistência separada – definiam os próprios segregacionistas sul-africanos. Israel é diferente? Nem sequer na criação de territórios equivalentes – para pior – a bantustões, como são os casos de Gaza e de tantas comunidades palestinianas da Cisjordânia cercadas pelo muro de separação e vítimas das restrições às suas autonomia e sobrevivência, designadamente os check-points militares e as estruturas de serviço exclusivas dos colonatos hebreus.

«Democracias iliberais»

Apesar de a situação agora reforçada por lei em Israel cair no âmbito do «crime contra a humanidade» previsto na Convenção do Apartheid, a ONU e respectivo secretário-geral continuam a fazer-se desentendidos. Talvez seja por causa da silly season e, daqui a umas semanas, ouçamos então anunciar medidas destinadas a reparar os danos às comunidades de não-judeus e à lei internacional. Acreditam nisso?

E a União Europeia, esse brilhante farol da democracia e dos direitos humanos? Também a banhos, provavelmente; ou então ocupada em ajustar contas com Trump, por sua vez orgulhoso do alento que deu a este passo decisivo dos dirigentes sionistas ao reconhecer a unificação de Jerusalém.

Há muito, aliás, que a União Europeia entendeu ser desnecessário mostrar preocupações com a democracia e os direitos humanos. Vive tranquilamente com associações de nações a caminho do fascismo no seu interior, como é o grupo de Visegrado, formado por Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia. A que poderiam juntar-se outros como a Itália e a Áustria. Porém, não são regimes nacionalistas, nem fascistas, nem aberrações democráticas. São – reparem nesta preciosidade semântica, saída da mente brilhante de Macron e logo adoptada por governantes da União – «democracias iliberais».

Israel, que goza de um privilegiado estatuto de associação com a União Europeia, passa assim a pertencer a esse grupo, quiçá «futurista» e «progressista», das «democracias iliberais». Aliás, mal aprovada a lei do apartheid Netanyahu recebeu, com todas as honras, o primeiro ministro da Hungria, Viktor Orban, por sinal um admirador confesso de Miklos Horthy, o ditador de Budapeste aliado de Hitler que participou, sem rebuço, na carnificina de judeus e outros não-arianos a quem foram negados os direitos próprios da raça pura, até o direito à vida – como hoje acontece aos palestinianos na Palestina.

E não pensem em Netanyahu e seus parceiros legisladores como vítimas de uma contradição insanável ao acolherem admiradores de carrascos de judeus como gente de bem. Grupos terroristas sionistas que serviram de base ao actual exército nacional, como o Irgun e o Stern2ofereceram os seus serviços aos nazis3 enquanto milhões de judeus eram sacrificados nos campos de concentração, porque o seu principal objectivo, na época, era combater os britânicos na Palestina.

Os inimigos dos nossos inimigos nossos amigos são, não é? Por isso foi possível encontrar, anos mais tarde, Israel no grupo restritíssimo dos aliados e colaboradores do isolado apartheid sul-africano, apoiando até os esforços de Pretória para ter a bomba atómica – sonho esfumado por Nelson Mandela.

Mandela, cujo centenário se cumpriu em 19 de Julho, o dia em que o Parlamento israelita proclamou solenemente a existência de outro regime de apartheid no planeta. A História consegue ser muito traiçoeira…

Notas:
1. Recordem-se as palavras do jurista John Dugard que, na Biblioteca de Direito Internacional das Nações Unidas, acompanham a apresentação do texto integral da convenção: «It may be concluded that the Apartheid Convention is dead as far as the original cause for its creation – apartheid in South Africa – is concerned, but that it lives on as a species of the crime against humanity, under both customary international law and the Rome Statute of the International Criminal Court».
2. Fundado por Avraham Stern, que pregava a tomada da Palestina (então sob mandato britânico) pela força, como ponto de partida para um «Grande Israel» aliado do nazismo e do fascismo
3. Os documentos, traduzidos do alemão pelo historiador Lenni Brenner, podem ser consultados aqui.

Na foto: Guardas israelitas detêm um jovem palestino durante uma manifestação na entrada principal do complexo de mesquitas de Al-Aqsa. Jerusalém, Palestina, 17 de Julho de 2017.CréditosAhmad Gharabli / AFP / Getty Images

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