sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Brasil | O sarau na Porto Alegre de outrora

“Poética noite de sarau lua cheia comparece com sua poesia.“  (Daniel Brito)


O sarau, que chegou ao Brasil em 1808, com a corte portuguesa, constituiu-se numa das formas de lazer da elite porto-alegrense. Em seu conhecido romance A Moreninha (1844), Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) narra este evento de cunho artístico e social, celebrado entre amigos. O sarau assumiria um caráter popular, somente no século 20, após os anos 40.

Nos saraus da antiga Porto Alegre, sonetos eram recitados, ouvia-se música e, aos convidados ofereciam-se chá, licor, biscoitos e doces. Criado pelo italiano Bartolomeo Cristofori (1655-1731), o piano era a joia da casa. Nele se tocavam valsas, havaneiras, shotings, czardas, polcas e o velho minueto. Enquanto os pares dançavam, em nome da moral familiar, mães e avós ficavam com olhos fixos nas moças e nos rapazes. Havia também os jogos de prendas e adivinhações.

A diversão à noite, nas primeiras décadas do século 19, limitava-se a poucos espaços, pois a parca iluminação da Capital era motivo de medo e insegurança. Com exceção do sarau doméstico, havia locais considerados de “má fama”, exigindo discrição dos frequentadores, conforme nos narra a historiadora Núncia Santoro de Constantino (1944-2014) em seu artigo, "A Conquista do Tempo Noturno: Porto Alegre moderna“, publicado, em 1994, na revista Estudos Ibero-Americanos (PUCRS).   

Em 1834, duzentos lampiões a óleo de baleia passaram a iluminar as ruas da Capital. A utilização do querosene, em 1864, não mudou a rotina do porto-alegrense, habituado com o serviço de iluminação precário.

À noite, havia o toque de recolher, quando soavam os sinos da Igreja Matriz, pontualmente às 21 h no inverno e às 22 h no verão. Caso não houvesse o brilho da lua, a cidade ficava, ainda, mais escura. Sem uma autorização oficial, o cidadão não podia permanecer na rua.

Implantada a iluminação a gás (1874), a vida noturna do morador da Capital ficou mais atraente. O censo de 1872 registrou 43.988 habitantes, entre livres e escravos.

Após a proclamação da República (1889), os saraus se mantiveram em destaque na sociedade gaúcha. No seu livro “Reminiscências De Um Artista” (1961), José De Francesco nos informa de que, em Porto Alegre, essas reuniões, em 1901, ocorriam às quintas e aos sábados. Às 20h, a moça mais velha da família sentava-se ao piano e executava uma música, iniciando o sarau.

De acordo com Athos Damasceno Ferreira (1902-1975), em “Imagens Sentimentais da Cidade” (1940), o retorno à Capital gaúcha de jovens recém-formados fazia com que as mocinhas acordassem com expectativas quanto a um casamento promissor. O sarau era, com certeza, uma ocasião propícia para iniciar-se um namoro. Cadeiras de palhinha, o lustre de cristal, cortinas com laçarotes, além dos espelhos e os retratos de família, compunham o cenário de um antigo sarau. Preparado com esmero pelos anfitriões, na varanda havia uma mesa com diferentes tipos de doces, como o pão de ló, feito com ovos de pata, considerado uma deliciosa iguaria.

No início do século 20, se o piano ocupava o lugar de honra na casa, nas ruas se destacava o violão. Na Praça da Harmonia, à beira do Guaíba, atual Praça Brigadeiro Sampaio, os seresteiros dedilhavam seus violões.  O flautista brasileiro Carlos Poyares (1928-2004), na apresentação de seu disco Brasil, Seresta (1974), registrou que esse costume originou-se da Península Ibérica.

Devido a reclamações quanto ao barulho, Achyles Porto Alegre (1848-1926), em seu livro “Flores entre Ruínas” (1920), conta que, em Porto Alegre, as serenatas, nos primeiros anos da República Velha (1889-1930), foram proibidas por Barros Cassal (1858-1903). 

Ao iniciar o Ano Novo, o Porto Alegrense se encantou ao ver, na chaminé da Fiat Lux, o letreiro “Salve o século XX” iluminar-se com a eletricidade. Quando se acenderam as lâmpadas, o cidadão começou a vivenciar a modernidade da “Belle Époque gaúcha”.                                                                             
Publicado no Almanaque Gaúcho / Zero Hora  em 08-08-2018
      
*Pesquisador e Coordenador do setor de imprensa do Museu da Comunicação HJC


Imagens 
1-  Iluminação a gás - Imagens sentimentais da cidade (1940) / Athos Damasceno Ferreira    
2-  Journal des Dames et des Modes, Costumes Parisiens, 25 mars 1836 
3 -Ilustração/ O Século  06/01/1884 - Acervo Museu da Comunicação  HJC
4-  Fiat Lux / vista do Guaíba - 1900  Museu Joaquim Felizardo / Fototeca Sioma  Breitman 

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