José Goulão | Abril Abril | opinião
Saibamos tomar o lado do
capitalismo bom, austeritário, tendencialmente esclavagista e globalista contra
o capitalismo mau, austeritário, tendencialmente esclavagista, mas nacionalista.
« – Tu és inimigo do povo!
– Não, inimigo do povo és tu!»
– Não, inimigo do povo és tu!»
É a este nível de ideias
profundas que se trava publicamente o debate sobre quem mente mais e melhor
através da comunicação mainstream, incluindo as famosas redes sociais,
agora que Donald Trump resolveu partir a loiça e convulsionar a harmonia –
podre, mas harmonia – em que tudo decorria.
Tratando-se de um ajuste de
contas entre o presidente norte-americano e uma parte de relevo – e
bipartidária – do establishment que se lhe opõe, discordando sobre as
estratégias para combater a crise do capitalismo, poderia supor-se, ainda
assim, que a questiúncula se mantivesse em círculos domésticos.
Mas não, trata-se dos Estados
Unidos da América e, por inerência da globalização de teor anglo-saxónico,
todos estamos obrigados a nela participar. Talvez ainda mais importante: é o
capitalismo, aquilo sem o qual não podemos viver, que está numa encruzilhada –
nacionalista ou globalista? Produtivo ou especulativo? Trauliteiro ou «civilizado»?
Amigo ou inimigo do povo?
Não terçarmos armas neste campo
de batalha obrigatoriamente maniqueísta é uma traição do mesmo calibre daquela
que mancha agora a dignidade do cargo de presidente dos Estados Unidos da
América, posto que nos remete tradicionalmente para tantos e tão virginais
exemplos comportamentais.
Por maioria de razão, a parte do establishment ofendida
pelo truculento e narcísico presidente é a que mexe as rédeas da comunicação
global dominante. Logo, todos somos impelidos a tomar partido, a bater-nos por
nossa dama ultrajada.
Saibamos, então, devolver o
insulto: se o trumpismo nos acusa de sermos inimigos do povo, então
apedrejemo-lo com as mesmas palavras e do mesmo lado da barricada que os bosses
das 14 ou 15 corporações mediáticas e globais que envenenam as nossas vidas com
a propaganda disfarçada de informação.
Saibamos tomar o lado do
capitalismo bom, austeritário, tendencialmente esclavagista e globalista contra
o capitalismo mau, austeritário, tendencialmente esclavagista, mas nacionalista.
É verdade que, travado a este
nível de acusações, o duelo não passa de uma briga de escola, de uma zanga de
comadres mutuamente ofendidas. Porém, sinal dos tempos, o comadrio é global e
estendeu até cá, até ao nosso mainstreamzinho, o recrutamento de
guerreiros do lado bom, corporativamente irmanados com os ofendidos colegas da CBS,
da CNN, da NBC, dos Washington Times ou Post e New
York Times ou Post contra os malandros da Fox e da
constelação dos pregadores evangélicos.
Os indirectamente ofendidos nesta
margem Atlântica não se deixaram ficar e também eles distribuíram os seus
sopapos verbais contra os fabricantes de fakenews, eles que nunca
divulgaram nem voltarão a divulgar qualquer notícia falsa.
Pobre povo!
Trazer o problema da censura e
manipulação da comunicação social dominante e global para o terreiro das fakenews e
abordá-lo com as armas do insulto é uma maneira de ilibar e isentar de
responsabilidades o tenebroso sistema de controlo de opiniões e consciências em
que se transformou a informação que atinge a esmagadora maioria dos habitantes
do planeta.
Dezena e meia de grandes impérios
mediáticos controlam os canais de comunicação global, desde os convencionais
aos digitais e internet, levando-nos a viver numa espécie de realidade virtual
em termos de informação.
Através da escolha dos conteúdos
que inserem nos canais e dos factos que omitem, das opiniões que veiculam ou
silenciam é construída a realidade desejada pelos interesses que tutelam esses
gigantes sem pátrias que pretendem transformar os seres humanos em pessoas
amorfas, condenadas a proporcionar-lhes lucros fabulosos e sem fim.
Regra geral, existe convergência
quase absoluta de interesses entre essas entidades tentaculares e o
establishment de raiz norte-americana e alcance global que controla ideológica
e economicamente grande parte do planeta.
Ao abalar a estrutura do establishment ou
«Estado profundo» que reina enquanto as administrações passam, Donald
Trump mexeu com essa ordem enquistada e bipartidária; e a guerra civil
intercapitalista assim gerada transferiu-se, naturalmente, para a esfera
mediática, onde passou a valer tudo porque os interesses envolvidos têm
envergaduras inimagináveis.
Fakenews não são um fenómeno
novo, a não ser como termo e conceito para usar como arma de arremesso na
guerra da propaganda. Há muito que vivemos num ambiente de fakenews produzidas
onde não sabemos, transportadas por uma teia de canais inextricável e
consumidas, regra geral, como coisa certa e acima de qualquer suspeita. A
realidade virtual que domina o nosso quotidiano informativo é uma gigantesca fakenews.
Em termos prosaicos, Trump mente
e mentem também os seus adversários de momento, que podem ser os amigos de
amanhã e vice-versa. É um debate de mentiras porque se trava num terreno de
minado com falsidades de consumo comum, por ora cindido em sectores transitoriamente
desavindos mas que nunca deixarão de salvaguardar o que os une: o capitalismo.
E não há manipulações decentes e manipulações indecentes, mentiras boas ou más.
Quando há jornalistas que, num
corporativismo pavloviano, entram nestas guerras que não lhes dizem respeito,
das duas uma: ou são ingénuos ou há muito que perderam o respeito pela
profissão.
O confronto trava-se no seio das
estruturas dominantes, para quem os jornalistas valem tanto como os entes
amorfos e estupidificados por correntes imparáveis de fakenews.
É importante lembrar, a
propósito, que o uso do termo fakenews começou por ser aplicado
contra jornalistas e outros profissionais de comunicação que mantiveram a
dignidade profissional e têm a coragem de trazer ao conhecimento comum os
aspectos da realidade que raramente chegam aos meios convencionais e dominantes
de informação.
Antes de o termo ser banalizado e
ter perdido referências originais, os profissionais acusados de divulgar fakenews eram
os que, ao invés, tornavam pública a realidade escondida, as versões
não-oficiais dos acontecimentos que moldam os nossos quotidianos.
A internet, incluindo as redes
sociais, foi e ainda é o refúgio possível e providencial desses profissionais
dignos, quantos deles ostracizados pelos estruturas dominantes da comunicação
global tendendo para a propaganda pura e simples.
Por isso, estes territórios alternativos estão agora debaixo de fogo censório.
Multiplicam-se as iniciativas com
o objectivo de silenciar as fontes de comunicação que veiculam versões
não-oficiais de acontecimentos, opiniões não-alinhadas pelos poderes globais,
no fundo divulgando conteúdos que aproximam os cidadãos das realidades autênticas
que os envolvem.
O objectivo das novas censuras
que estão em preparação e mesmo já em aplicação na internet não é o de combater
as fakenews, a informação falsa, mas sim calar os factos e as opiniões que
não são toleráveis pelos interesses dominantes.
Neste quadro, é importante que se
saiba que o Facebook, por exemplo, montou incentivos de apoio à delacção, isto
é, passa a recompensar internautas que detectem supostas fakenews, no
limite que contribuam para silenciar o tipo de informação com a qual não
concordam ou não lhes convenha.
Também é importante saber que os
mentores destas práticas tanto estão do lado de Donald Trump como dos seus
adversários democratas e republicanos, que aliás pontificam na tutela das 14 ou
15 corporações gigantescas que fabricam a comunicação global.
Quem são os inimigos do povo?
Todos eles.
Foto: Donald Trump | Michael
Reynolds / EPA
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