Há mais de vinte anos, o Saara
Ocidental espera por um plebiscito de independência. Aprovada pela ONU,
consulta é sabotada pelo Marrocos, que ocupa o país e viola os direitos humanos
da população
Sayid Marcos Tenório* | Outras Palavras
A República Árabe Saharaui
Democrática – RASD (antigo Sahara Espanhol, também conhecido como Saaara
Ocidental) é a última colônia da África. É o último povo a não exercer sua
autodeterminação no continente, apesar do tema estar na agenda da União Africana
desde 1963. Dois anos depois, em 1965, a Organização das Nações Unidas também
passou a debater os rumos da RASD. É um território localizado no noroeste da
costa do continente africano, com fronteiras entre o Marrocos, Mauritânia e
Argélia.
A RASD foi fundada em 27 de
fevereiro de 1976 na cidade de Bir Lehlu, após administração colonial espanhola
anunciar oficialmente o final da presença no território. Antes de abandonar o
Saara Ocidental, no entanto, a Espanha facilitou a invasão do território por
parte do Reino do Marrocos e da Mauritânia, pressionada pela Marcha Verde,
movimento de ocupação organizado pelo rei marroquino Hassan II, destinada a
consolidar a ocupação do território saharaui e forçar a Espanha a entregar
formalmente o território ao reino feudal.
O povo saharaui, sob a liderança
da Frente Polisario, ofereceu resistência armada desde o primeiro momento da
ocupação e proclamou a República Saharaui, atualmente reconhecida por mais de
80 países e membro fundadora da organização regional União Africana. Porém,
permanece carecendo de representação na ONU, onde é reconhecida como território
pendente de descolonização e com direito a observador. Brasil, Argentina e
Chile, são os únicos países da América do Sul que ainda não reconhecem a RASD. O
governo brasileiro já reconhece a Frente Polisario como o único e legitimo
representante do povo saharaui, no marco dos princípios e normas da Carta das
Nações Unidas e das múltiplas resoluções do Conselho de Segurança e do Comitê
Especial sobre a Descolonização.
Após 16 anos de guerra entre
Marrocos e a Frente Polisario, foi assinado um cessar fogo em 6 de setembro de
1991, sob a chancela do Conselho de Segurança da ONU, que aprovou um Plano de
Solução em torno da organização de um referendo que deve permitir ao povo do
Saara Ocidental exercer o seu direito à autodeterminação. O plano criou a
Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental (MINURSO), aprovou
o cessar-fogo, a identificação dos eleitores, a retirada das forças marroquinas
e a organização de um referendo livre que deveria ter acontecido em fevereiro
de 1992. O referendo não se realizou até hoje por pressão do Marrocos e seus
aliados colonialistas, principalmente a França e Espanha, apesar da ONU ter
prerrogativas para realizá-lo, como já fez na Namíbia e no Timor Leste.
Enquanto isso, a maior parte do
território da RASD permanece ocupado pelo reino feudal do Marrocos. Apenas uma
pequena parte, chamado territórios liberados, estão em poder do governo
saharaui. Enquanto isso, parte da população saharaui vive em terras cedidas
pela Argélia na região de Tindouf, na condição de refugiados, em
acampamentos desprovidos de dignidade, sem infraestrutura adequada para
enfrentar as inúmeras dificuldades climáticas. A economia depende da ajuda
humanitária internacional. São mais de 200 mil saharauis que esperam o retorno
à sua terra natal.
Não bastasse a ocupação e as
constantes violações de direitos humanos, o Reino do Marrocos ergueu o muro da
vergonha do Saara Ocidental, com mais de dois mil quilômetros e que divide de
norte a sul o território ocupado. O muro, que foi construído com assessoria de
Israel, é vigiado por mais de 150 mil soldados marroquinos e tomado por uma
infinidade de minas terrestres em toda sua extensão que, vez ou outra, provocam
mortes entre os saharauis ou mesmo entre militantes internacionalistas que
fazem periódicas marchas e manifestações no muro.
Enquanto mantém a ocupação ilegal
e violenta do território saharaui, o Marrocos persiste no acelerado saque dos
recursos naturais como fosfato, agricultura, exploração petrolífera e da pesca,
ao longo dos seus 1.062 km
de costas, onde se localiza uma das áreas de pesca mais ricas do planeta. O
Tribunal de Justiça da União Européia já decidiu que o Saara Ocidental é um
território pendente de descolonização. Marrocos, como país ocupante, não está
autorizado a assinar acordos com países terceiros sobre exploração e
comercialização desses recursos naturais, sem consultar os habitantes desse
território e a Frente Polisario. A exploração dos recursos naturais pelo
Marrocos é uma das muitas violações dos direitos do povo e da soberania
saharaui.
Crianças em campo de refugiados sahauris na Argélia. Neles, mais de 200 mil pessoas vivem em condições muito precárias, em meio à aridez do deserto |
Desde o primeiro momento das
negociações, que se arrastam por 40 anos, a Frente Polisario tem apresentado
uma posição pelo diálogo, exercendo uma luta limpa e sem extremismos, apesar
das dificuldades de todos os tipos imposta pelo ocupante. Continua a acreditar
numa solução negociada que garanta o direito à autodeterminação do povo
saharaui, como reconhece a comunidade internacional. E tem declarado que aceita
o resultado da votação do referendo, livremente expressa pelo povo saharaui. A
história mostrou que é impossível encontrar uma solução para um conflito sem a
participação do povo e menos ainda contra a sua vontade. A realização do
referendo é a saída que vai fornecer a solução para o conflito do Saara
Ocidental, favorecer uma solução justa, baseada no respeito à legalidade
internacional.
No entanto, apesar de todas as
definições aprovadas pelo Conselho de Segurança, Marrocos continua a obstruir o
Plano da ONU. A MINURSO, estabelecida em 1991 com o objetivo de realizar um
referendo de autodeterminação, é a única Missão da ONU que não monitora
violações dos direitos humanos, apesar das inúmeras recomendações ao Conselho
de Segurança para estender as prerrogativas àquela missão. O não atendimento do
pleito para que a missão monitore e reporte as violações dos direitos humanos,
tem deixado a população vulnerável e desprotegida frente à brutalidade do
regime marroquino de ocupação.
Em 19 de julho de 2017, a justiça marroquina
escreveu mais uma página nas violações sistemáticas dos direitos humanos dos
saharauis, ao condenar injustamente e sem qualquer prova ou evidência, como foi
reconhecido pelos observadores internacionais presentes no julgamento, 19
defensores dos direitos humanos; 8 sentenças de prisão perpétua, 3 sentenças a
30 anos de prisão, 25 anos de prisão a 5 e, finalmente, 20 anos a 3 outros
ativistas.
O clima de tensão é facilmente
observado por qualquer pessoa que visita as zonas liberadas ou os acampamentos
de refugiados saharauis. Voltar à guerra está, mais do que nunca, na ordem do
dia. É a consequência da obstinação do Marrocos em manter o território ocupado
e manter o saque bilionários das riquezas naturais, mas também do fracasso das
Nações Unidas em assumir suas responsabilidades. Nas inúmeras conversas que
tive com jovens saharauis, ao longo das viagens que fiz aos campos de
refugiados, nota-se um consenso: se não houver referendo, os saharauis terão de
pegar nas armas de novo. Para aquela população, resta apenas a opção de lutar.
Há um esforço no âmbito do
parlamento e dos movimentos sociais, para o reconhecimento da RASD pelo governo
brasileiro. Em 2014, a
Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados aprovou
uma Indicação dirigida à Presidência da República, assinada pela totalidade dos
líderes partidários, recomendando o reconhecimento pelo Brasil da República
Árabe Saharauí Democrática, mas nenhuma resposta foi dada pelo Executivo. O
mesmo aconteceu no nosso vizinho Chile, onde a Câmara dos Deputados aprovou em
2014 uma resolução solicitando ao governo chileno e reconhecimento da Republica
saharaui, que nunca se cumpriu.
O Marrocos interfere para não
permitir que se debata em nenhum fórum brasileiro as graves violações dos
direitos humanos, onde mulheres e homens de todas as idades e crianças são
presos e torturados pelos ocupantes, onde mais de 640 pessoas de diferentes
regiões do país, entre elas famílias inteiras, foram detidas pelas forças
marroquinas e desapareceram para sempre.
Os representantes diplomáticos
marroquinos no Brasil exercem enorme pressão sobre nossa diplomacia, sobre o
governo e o Congresso Nacional. E utilizam de métodos nada ortodoxos para
conquistar apoios e frear as iniciativas de apoio à autodeterminação e o
reconhecimento do Sahara Ocidental. É visível o trabalho de “convencimento” a
parlamentares e servidores graduados de comissões estratégicas do Congresso por
meio de viagens ao Marrocos em primeira classe para si e seus familiares; além
da promessa de convênios com instituições e até o financiamento de ações de
parlamentares e organizações que se comprometam com esse papel sujo de sabotar
a causa do povo saharaui.
Mesmo na área diplomática dos
países da Liga Árabe, há uma enorme pressão em favor do reino feudal do
Marrocos, onde embaixadores, inclusive de país numa situação similar de
ocupação e violações de direitos, se somam à pressão do Marrocos sobre o
governo e o Parlamento brasileiros.
A embaixada do Marrocos no Brasil,
por meio dos capangas do DGST (o serviço secreto marroquino) interfere para
impedir que se realizem atividades públicas que debatam temas relacionados ao
Sahara Ocidental, como já aconteceu em entidades do movimento social e
ambientes acadêmicos. Em meio a esse quadro complexo é certo que a paz e a
estabilidade no Sahara Ocidental, somente serão alcançadas por meio do respeito
estrito ao direito internacional. E isso inclui assegurar o direito do povo
saharaui escolher o seu destino, de forma livre e democrática.
A melhor definição sobre o quadro
de incerteza e do impasse que se criou em torno da realização ou não do
referendo de autodeterminação do Sahara Ocidental, veio exatamente do
presidente da RASD, Brahim Gali. Ele tem reiterado que os cidadãos e cidadãs saharauis
perderam qualquer tipo de confiança nas Nações Unidas e que a indiferença da
comunidade internacional só tem contribuído para alargar o já longo sofrimento
daquele povo. Para Gali, “ainda existe um fio de esperança e a comunidade
internacional tem plena capacidade de materializar a solução justa e
definitiva”.
*Sayid Marcos Tenório - Historiador e dirigente do Centro
Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta Pela Paz (CEBRAPAZ)
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