quinta-feira, 11 de outubro de 2018

“Democratas brasileiros, uni-vos!”


Três bombas-relógio estão prestes a explodir ao mesmo tempo: o colonialismo, a ditadura impune e a interferência política dos EUA. Será possível desarmá-las a tempo?

Boaventura de Sousa Santos | Outras Palavras

A democracia brasileira está à beira do abismo. O golpe institucional que se iniciou com o impeachment da presidente Dilma e prosseguiu com a injusta prisão do ex-presidente Lula da Silva está quase consumado. A consumação do golpe significa hoje algo muito diferente do que foi inicialmente pensado por muitas das forças políticas e sociais que o protagonizaram ou dele não discordaram. Algumas dessas forças agiram ou reagiram no convencimento genuíno de que o golpe visava regenerar a democracia brasileira por via da luta contra a corrupção; outros entendiam que era o modo de neutralizar a ascensão das classes populares a um nível de vida que mais tarde ou mais cedo ameaçaria não apenas as elites mas também as classes médias (muitas delas produto das políticas redistributivas contra as quais agora se viravam). Obviamente, nenhum destes grupos falava de golpe e ambos acreditavam que a democracia era estável. Não se deram conta de que havia três bombas-relógio construídas em tempos muito diversos mas podendo explodir simultaneamente. Se tal ocorresse, a democracia revelaria toda a sua fragilidade e possivelmente não sobreviveria.

A primeira bomba-relógio foi construída no tempo colonial e no processo de independência, foi acionada de modo particularmente brutal várias vezes ao longo da historia moderna do Brasil mas nunca foi eficazmente desativada. Trata-se do DNA de uma sociedade dividida entre senhores e servos, elites oligárquicas e povo ignaro, entre a normalidade institucional e a violência extra-institucional, uma sociedade extremamente desigual em que a desigualdade socioeconômica nunca se pôde separar do preconceito racial e sexual. Pese embora todos os erros e defeitos, os governos do PT foram os que mais contribuíram para desativar essa bomba, criando políticas de redistribuição social e de luta contra a discriminação racial e sexual sem precedentes na história do Brasil. Para a desativação ser eficaz seria necessário que essas políticas fossem sustentáveis e permanecessem por várias gerações a fim de a memória da extrema desigualdade e crua discriminação deixar de ser politicamente reativável. Como tal não aconteceu, as políticas tiveram outros efeitos mas não o efeito de desativar a bomba-relógio. Pelo contrário, provocaram quem tinha poder para a ativar e a fazê-lo quanto antes, antes que fosse tarde demais e as ameaças para as elites e classes médias se tornassem irreversíveis. A avassaladora demonização do PT pela mídia oligopolista, sobretudo a partir de 2013, revelou a urgência com que se queria pôr fim à ameaça.

A segunda bomba-relógio foi construída na ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985 e no modo como foi negociada a transição para a democracia. Consistiu em manter as Forças Armadas (FFAA) como última garantia da ordem política interna e não apenas como garantia da defesa contra uma ameaça estrangeira, como é normal nas democracias. “Último” quer dizer em estado de prontidão para intervir em qualquer momento definido pelas FFAA como excepcional. Por isso, não foi possível punir os crimes da ditadura (ao contrário da Argentina mas na mesma linha do Chile) e, pelo contrário, os militares impuseram aos constituintes de 1988 28 parágrafos sobre o estatuto constitucional das FFAA. Por isso, também muitos dos que governaram durante a ditadura puderam continuar a governar como políticos eleitos no congresso democrático. Apelar à intervenção militar e à ideologia militarista autoritária ficou sempre latente, pronta a explodir. Por isso, quando os militares começaram a intervir mais ativamente na política interna nos últimos meses (por exemplo, apelando à permanência da prisão de Lula) isso pareceu normal dadas as circunstâncias excepcionais.

A terceira bomba-relógio foi construída nos EUA a partir de 2009 (golpe institucional nas Honduras) quando o governo norte-americano se deu conta de que o subcontinente estava a fugir do seu controle, mantido sem interrupção (com exceção da “distração” em Cuba) ao longo de todo o século XX. A perda de controle continha agora dois perigos para a segurança dos EUA: o questionamento do acesso ilimitado aos imensos recursos naturais e a presença cada vez mais preocupante no continente da China, o país que, muito antes de Trump, fora considerado a nova ameaça global à unipolaridade internacional conquistada pelos EUA depois da queda do Muro de Berlim.

A bomba começou então a ser construída, não apenas com os tradicionais mecanismos da CIA e da Escola Militar das Américas, mas sobretudo com novos mecanismos da chamada defesa da “democracia amiga da economia de mercado”. Isto significou que, além do governo dos EUA, a intervenção poderia incluir organizações da sociedade civil vinculadas aos interesses econômicos dos EUA (por exemplo, as financiadas pelos irmãos Koch). Portanto, uma defesa da democracia condicionada pelos interesses do mercado e por isso descartável sempre que os interesses o exigissem. Esta bomba-relógio mostrou que já estava operacional no Brasil a partir dos protestos de 2013. Foi melhorada com a oportunidade histórica que a corrupção política lhe ofereceu.

O grande investimento norte-americano no sistema judicial vinha do início dos anos de 1990, na Rússia pós-soviética e também na Colômbia, entre muitos outros países. Quando a questão não é de “regime change”, a intervenção tem de ser despolitizada. A luta contra a corrupção é isso. Sabemos que os dados mais importantes da operação Lava-Jato foram fornecidos pelo Departamento de Justiça dos EUA. O resto foi resultado da miserável “delação premiada”. O juiz Sergio Moro transformou-se no agente principal dessa intervenção imperial. Só que a luta contra a corrupção por si só não seria suficiente no caso do Brasil. Era suficiente para neutralizar a aliança do Brasil com a China no âmbito dos BRICS, mas não para abrir plenamente o Brasil aos interesses das multinacionais. É que, em resultado das políticas dos últimos quarenta anos (e algumas vindas da ditadura), o Brasil teve até há pouco imensas reservas de petróleo fora do mercado internacional, tem duas importantes empresas públicas e dois bancos públicos, e 57 universidades federais completamente gratuitas. Ou seja, é um país muito longe do ideal neoliberal, e para dele o aproximar é preciso uma intervenção mais autoritária, dada a aceitação das políticas sociais do PT pela população brasileira. E assim surgiu Jair Bolsonaro como candidato “preferido dos mercados”. O que ele diz sobre as mulheres, os negros ou os homossexuais ou a tortura pouco interessa aos “mercados”. Pouco interessa que o clima de ódio que ele criou esteja a incendiar o país. Na madrugada de segunda feira dia 8 o conhecido mestre de capoeira Moa do Katende foi assassinado em Salvador por um apoiante do Bolsonaro que não gostou de ouvir o mestre manifestar o seu apoio a Haddad. E isto é só o começo. Nada disto interessa aos “mercados” desde que a sua política econômica seja semelhante à do Pinochet no Chile. E tudo leva a crer que será porque o seu economista-chefe tem conhecimento direto dessa infame política chilena. O político de extrema-direita norte-americano Steve Bannon apoia Bolsonaro, mas é apenas o balcão da frente do apoio imperial. Os analistas do mundo digital estão surpreendidos com a excelência da técnica da campanha bolsonarista nas redes sociais. Inclui microdirecionamento, marketing digital ultrapersonalizado, manipulação de sentimentos, fakenews, etc. Quem assistiu na semana passada na televisão pública norteamericana (PBS) ao documentário intitulado “Dark Money”, sobre a influência do dinheiro nas eleições dos EUA, pode concluir facilmente que as fakenews (sobre crianças, armas e comunismo, etc.) no Brasil são tradução em português das que o “dark money” faz circular nos EUA para promover ou destruir candidatos. Se alguns dos centros de emissão de mensagens estão sediados em Miami e Lisboa é pouco relevante (apesar de verdadeiro).

A vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno significará a detonação simultânea destas três bombas-relógio. Dificilmente a democracia brasileira sobreviverá à destruição que causarão. Por isso, o segundo turno é uma questão de regime, um autêntico plebiscito sobre se o Brasil deve continuar a ser uma democracia ou passar a ser uma ditadura de tipo novo. Um livro meu muito recente circula hoje bastante no Brasil. Intitula-se Esquerdas do Mundo, uni-vos! Mantenho tudo o que digo aí, mas o momento obriga-me a um outro apelo mais amplo: Democratas brasileiros, uni-vos! É certo que a direita brasileira revelou nos últimos dois anos um apego muito condicional à democracia ao alinhar com o comportamento descontrolado (mas bem controlado noutras paragens) de parte do judiciário, mas estou certo de que largos setores dela não estarão dispostos a suicidar-se para servir “os mercados”. Têm de unir-se ativamente na luta contra Bolsonaro. Sei que muitos não poderão recomendar o voto em Haddad, tal é o seu ódio ao PT. Basta que digam: não votem em Bolsonaro. Imagino e espero que isso seja dito publicamente e muitas vezes por alguém que em tempos foi um grande amigo meu, Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil e, antes disso, um grande sociólogo e doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra, de quem eu fiz o elogio. Todos e todas (as mulheres não vão ter nos próximos tempos um papel mais decisivo para as suas vidas e a de todos os brasileiros) devem envolver-se ativamente e porta-a-porta. E é bom que tenham em mente duas coisas. Primeiro, o fascismo de massas nunca foi feito de massas fascistas, mas sim de minorias fascistas bem organizadas que souberam capitalizar nas aspirações legítimas dos cidadãos comuns a viverem com um emprego digno e em segurança. Segundo, ao ponto que chegámos, para assegurar um certo regresso à normalidade democrática não basta que Haddad ganhe, tem de ganhar por uma margem folgada.

* Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.

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