Historiadora norte-americana
descreve, em livro, a louca propensão das sociedades a insistir em seus
próprios erros, ignorando os fatos “incômodos”. Algo a ver com o Brasil de
2018?
Ladislau Dowbor | Outras
Palavras | Imagem: Louise Williams
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Resenha de:
The March of Folly: from Troy to Vietnam [“A marcha da Insensatez: de Troia ao Vietnã”]
De Barbara W. Tuchman – Random House, New York, 2014 – 470 p.
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Resenha de:
The March of Folly: from Troy to Vietnam [“A marcha da Insensatez: de Troia ao Vietnã”]
De Barbara W. Tuchman – Random House, New York, 2014 – 470 p.
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A minha idade e a minha confiança
na racionalidade do ser humano têm evoluído em sentidos inversos. Mas como
somos animais sofisticados, quanto mais absurdo o que defendemos, mais
argumentos racionais inventamos. E, sobretudo, quando já fomos identificados
com uma posição ou atitude política completamente absurda, conseguimos apenas
nos aprofundar na burrice. Segundo as sábias palavras de Barbara Tuchman, a
propósito de como os norte-americanos foram se afundando no Vietnã, ao custo de
imenso sofrimento daquele povo, e desgaste político de quatro sucessivos
presidentes, “uma vez que uma política foi adotada e implementada, toda
atividade subsequente se transforma num esforço para justificá-la.” (263)
Qualquer semelhança com o golpismo no Brasil insistir numa política que empurra
o país para trás, mesmo depois de 4 anos de desastre, não é evidentemente uma
coincidência, é a regra. No túnel da burrice, os que a perpetram sempre
imaginam que logo adiante surgirá a proverbial luzinha. Se a política sacrifica
em vez de ajudar, dirão que o sacrifício não foi suficiente, é só aprofundar um
pouco mais.
Não perceber a nossa irracionalidade
é simplesmente perigoso. E obviamente pouco inteligente. Nada como a história
para substituir o conceito de homo sapiens pelo de homo demens. Já
pensaram que em nenhum momento da história registrada da humanidade deixamos de
nos massacrar uns aos outros? Em cada guerra ou massacre que estudamos,
buscamos definir quem eram os bons e quem eram os maus. E se a própria
incapacidade de vivermos em paz e colaboração, o que sem dúvida seria mais
proveitoso para todos, fosse objeto da nossa análise? Eu gosto muito do texto
de Frans de Waal, Our Inner Ape (O Primata Dentro de Nós), em que
surge com toda clareza o quanto nos comportamos, quanto à defesa dos nossos
territórios, como os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés [leia resenha].
Guerras tribais, guerras nacionais, guerras mundiais, alguma delas tem algum
sentido?
Um outro belíssimo texto, The
Righteous Mind (a mente moralista), Jonathan Haidt analisa as nossas
motivações, e em particular como as conseguimos embelezar [leia resenha].
O Ku-Klux-Klan massacrava para proteger as virgens brancas e queimava casas
para civilizar os negros. Os nazistas estavam limpando a raça. As guerras das
religiões mataram e torturam em toda parte segundo as ordens expressas dos
respectivos deuses. A inquisição torturava mulheres, de preferência nuas, para
extirpar o demônio que se apossara das suas almas. No Vietnã mataram dois
milhões, na Argélia um milhão, na II Guerra Mundial 60 milhões, o Oriente Médio
está aumentando a conta a cada dia. Tudo em nome dos mais elevados ideais. O que
Haidt deixa claro é como é agradável, profundamente satisfatório, dar livre
vazão do que há de mais podre dentro de nós, em nome dos mais elevados ideais.
É o orgasmo supremo. O ódio justificado gera um gozo irreprimível. É
ignorância? Sem dúvida, mas não falta de diplomas. Metade dos médicos da
Alemanha aderiu ao partido nazista.
Barbara Tuchman escreve muito
bem, e isso não é secundário. Mas em particular faz uma análise maravilhosa da
burrice no poder, da imensa capacidade de coletivos humanos de gente bem
informada, e com poder de decisão, se enterrar em políticas que não só
representam interesses egoístas, mas que ao fim e ao cabo prejudicam os
próprios agentes que as implementam. É o que ela chama de folly,
insensatez: “a implementação de políticas contrárias ao próprio interesse da
instituição ou do Estado envolvido. Auto-interesse é qualquer política que
conduz ao bem estar ou vantagem do grupo sendo governado: insensatez é uma
política que nestes termos é contraprodutiva.” (6) A exploração colonial por
parte da Grã-Bretanha era uma violência inadmissível, mas pelo menos
compreensível pelas vantagens. A extorsão que tentaram impor à sua colônia
americana foi tão burra que conseguiram obter o impensável: a unificação
indignada dos tão diversos segmentos do que hoje são os Estados Unidos, e uma
guerra fadada ao desastre. É o que resumimos no Brasil com a expressão “dar um
tiro no próprio pé.” Haja tiro, e haja burrice.
As patéticas políticas da
Grã-Bretanha frente aos Estados Unidos foram em grande parte devidas ao que
podemos chamar de solidariedade da ”patota”, que permite avançar gloriosamente
até a evidente derrota. Tentando entender a marcha da insensatez dos
britânicos, Tuchman lembra como era a composição dos ministérios: “Eles provêm
de cerca de 200 famílias incluindo 174 nobres em 1760. Conheciam-se da escola e
da universidade, eram relacionados por meio de cadeias de primos, alianças de
casamentos, sogros e familiares de segundos e terceiros casamentos. Casavam com
as irmãs, filhas e viúvas uns dos outros, e regularmente trocavam amantes (uma
tal Senhora Armstead serviu neste papel ao lorde George Germain; ao seu
sobrinho, o duque de Dorset; ao lorde Derby; ao príncipe de Wales e a Charles
James Fox, com quem viria a casar), nomeavam-se uns aos outros em posições de
autoridade e asseguravam uns aos outros posições e aposentadorias”. (145) Soa
familiar? Com duques e lordes a menos, patotas semelhantes empurram o mundo
para o desastre nas mais variadas circunstâncias.
Tuchman nos traz uma análise
detalhada dos seis papas que conseguiram, entre 1470 e 1530, e sempre em nome
dos mais sagrados ideais, se comportar de maneira tão corrupta e indecente, que
liquidaram o imenso poder que a instituição representava, abriram portas
escancaradas para a reforma protestante e para as sucessivas guerras das
religiões. Não eram inconscientes. Mas tinham gerado uma dinâmica que não
permitia a volta. Como se os grandes erros buscassem justificativas em erros
ainda maiores. Voltar atrás significaria admitir demasiados erros para que
fosse possível. Constitui-se um processo irreversível de autodestruição.
Particularmente interessante é a
análise detalhada de como se montou e manteve durante décadas uma narrativa
completamente surrealista que justificaria o aprofundamento do envolvimento dos
EUA na guerra do Vietnã. Com o fim da II Guerra Mundial, a França queria
retomar o seu papel colonial neste país. Levaram uma surra homérica na batalha
de Dien-Bien-Phu, apesar do apoio aéreo norte-americano. Mas tinha sentido os
americanos se envolverem numa guerra pela manutenção de um poder colonial
francês na Ásia? Como parlamentares bem informados fizeram discursos, em
público, explicitando aos colegas e aos cidadãos que se o Vietnã ganhasse a
guerra, os Estados Unidos se veriam “irremediavelmente cercados”!! Quando os franceses,
depois da surra, se tornaram mais sábios e voltaram para a França, repassaram a
bola para os americanos, que nunca conseguiram se desvencilhar da herança – até
que levassem eles também uma surra, décadas e milhões de mortos depois.
As grandes burradas exigem
grandes narrativas, que de tanto repetidas acabam sendo aceitas até por quem as
inventa. É tão agradável poder se justificar de forma simples e compreensível
para si e para os outros. Imaginar que países asiáticos como Vietnã, Laos,
Cambodia, Tailândia e outros fossem pedras de dominó, caindo uma cairiam as
outras, aparece hoje como ridículo. No entanto, tantos acreditaram, e em
particular os americanos. “Confundir vários países da Ásia do Leste como se não
tivessem individualidade, nem história, nem diferenças ou circunstâncias
próprias foi o pensamento – desinformado, superficial ou ainda conscientemente
falso – que criou a teoria do dominó, e permitiu que se tornasse dogma. Porque
os orientais no conjunto pareciam tão semelhantes aos olhos dos ocidentais,
esperava-se que agissem de forma idêntica e atuassem com a uniformidade de
dominós.” (271) Algum americano conhecia os séculos de lutas do Vietnã por sua
independência relativamente aos vizinhos? Os GIs que desembarcavam em Saigon
não falavam nem francês, nem vietnamita. O racismo implícito nesta visão do
“perigo amarelo” teve sem dúvida um papel importante. (296)
A autora usa um conceito
rico, cognitive dissonance, que poderíamos traduzir como dissonância
cognitiva, em que o conjunto da narrativa criada se mantém apesar de os fatos a
desmentirem de maneira escandalosa. Entre a realidade e a narrativa, dane-se a
realidade. “Para o governante é mais fácil, uma vez que entrou num casulo
político (a policy box), permanecer dentro dele. Para um político em nível
hierárquico inferior é melhor, para o bem da sua posição, não gerar marolas,
não pressionar com evidências que o chefe acharia penoso aceitar. Os psicólogos
chamam esse processo de filtrar evidências discordantes de ‘dissonância
cognitiva’, uma forma fantasiosa para o acadêmico dizer ‘não me confundam com
fatos’.” (322) Em outros termos, o apego aos erros torna-se mais rígido. Como é
possível que com mais de 1,5 milhões de toneladas de bombas, mais do que na II
Guerra Mundial, os vietnamitas não se convencem que devem negociar? Mais
bombas! (367)
Tuchman, claramente, não tem
muita confiança na lógica do poder ou na inteligência dos grupos que o manejam.
“A ausência de pensamento inteligente no exercício do poder é outro dado
universal, que levanta a questão de a que ponto, nos Estados modernos, há algo
na vida política e burocrática que reduz o funcionamento do intelecto em favor
de ‘manejar as alavancas’ sem considerar as expectativas racionais. Isso parece
ser uma prospectiva que se mantêm.” (398) A filosofia que permeia os escritos
de Barbara Tuchman resulta sem dúvida dos seus próprios estudos da História,
mas o seu ceticismo relativamente ao exercício do poder tem raízes mais
antigas. A autora lembra Platão: “Ele também teve de aceitar que os seus
colegas humanos estavam ancorados na vida de sentimentos, agitados como bonecos
pelos fios dos desejos e medos que os fazem dançar. Quando o desejo não está de
acordo com o julgamento da razão, disse ele, há uma doença na alma. E quando a
alma se opõe ao conhecimento, ou opinião ou razão que são as suas leis
naturais, isso eu chamo de insensatez.” (404)
Uma belíssima leitura. Boa
tradução em português, disponível por exemplo em Estante Virtual.
*Ladislau Dowbor é professor de
economia nas pós-graduações em economia e em administração da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das
Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org
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