sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Angola | Deputado do MPLA retoma debate sobre pena de morte


Pena de morte foi abolida em Angola em 1992. Mas pronunciamentos de deputado do MPLA, que defende a sua reintrodução, voltaram a trazer o assunto a debate. Analistas dizem que seria um retrocesso.

Não é a primeira vez que uma figura do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) defende a introdução da pena de morte abolida pela legislação de 1992. Em janeiro de 2016, Luzia Inglês, secretária-geral da OMA, a organização feminina do partido no poder, já tinha defendido esta sentença para crimes sexuais.

Dois anos depois, Monteiro Pinto Kapunga, deputado do MPLA, volta a defender a pena capital, para quem cometer crimes violentos.

Citado pela agência noticiosa angolana ANGOP, o deputado disse que "quem tira a vida de outra pessoa, lhe deve ser aplicada a mesma medida, ao invés de passar longos anos nas cadeias à custa do Estado".

Um "retrocesso"

As declarações de Monteiro Kapunga surgem no âmbito das discussões no Parlamento sobre o novo Código Penal angolano.

Reintroduzir a pena de morte implicaria uma revisão da atual Constituição angolana, aprovada em 2010, "por conta do estatuído nos artigos 59º e 30º da presente Constituição, onde se proíbe a pena de morte e o Estado protege a vida humana, que é inalienável e um dos bens jurídicos mais essenciais da vida em sociedade, se não mesmo o mais essencial", refere o jurista Agostinho Canando.

O investigador e ativista cívico Nuno Álvaro Dala sublinha que se estaria diante de "um retrocesso" no capítulo dos direitos, liberdades e garantias fundamentais em Angola.

CPLP e SADC

Esse retrocesso afetaria igualmente a posição do país nas instituições internacionais de que é membro, avança o jurista Agostinho Canando.

Abolir a pena de morte é um dos requisitos para a entrada na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Há quatro anos, a Guiné Equatorial comprometeu-se a fazê-lo para ingressar como membro de pleno direito na organização.

"Essa introdução não seria abonatória para Angola, para a CPLP, até mesmo para a própria SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral], porque representa o regressar de uma certa fase da História de Angola", comenta Canando.

No país, está em curso a reforma da Justiça e do Direito. O jurista pede à comissão encarregada de o fazer que consulte especialistas de várias áreas, para uma abordagem abrangente: "Deverá não apenas trabalhar com juristas, que são o garante do conhecimento da lei, mas acima de tudo com filósofos, psicólogos, pedagogos, antropólogos, sociólogos e tantos outros profissionais das Ciências Sociais."

Manuel Luamba (Luanda) | Deutsche Welle

Guiné-Bissau | Até onde vai o ardil de José Mário Vaz?


Intenção de Presidente guineense, José Mário Vaz, de rever a Constituição é completamente incoerente com o perfil que tem demonstrado, considera Dautarim da Costa. Analista acha que se trata de uma manobra eleitoralista.

Esta semana, o Presidente da Guiné-Bissau manifestou interesse na realização de um referendo para a revisão da Constituição.

Para José Mário Vaz, o problema do país não reside nas pessoas, mas sim nas instituições e no sistema do Governo. O estadista considera que uma revisão faria com que o chefe do Estado a ser eleito em 2019 "tenha as coisas clarificadas". Sobre esse posicionamento, que surge perto do fim do mandato do Presidente, conversamos com o analista guineense Dautarim da Costa.

DW África: A intenção de José Mário Vaz surge depois de ter ultrapassado, durante quatro anos do seu mandato, as suas competências enquanto Presidente da República e, por consequência, ter esvaziado os poderes do primeiro-ministro. Não vem tarde esta intenção?

Dautarim da Costa (DC): Não só vem tarde, como é completamente despropositada e incoerente. Estamos a falar de um Presidente da República que conseguiu a proeza de fundar um regime presidencialista dentro de um sistema semi-presidencialista. A deturpação do sistema político foi de tal forma que subverteu todas as lógicas que definiram as regras do jogo político na Guiné-Bissau. E dizer isso agora mostra um desconhecimento profundo sobre a importância do funcionamento das instituições e sobre as perceções dos próprios cidadãos guineenses. E é completamente incoerente com o perfil que tem demonstrado ao longo do seu mandato.

DW África: José Mário Vaz entende que uma revisão da Constituição possibilitaria que o chefe de Estado a ser eleito tenha as coisas clarificadas. Estaria ele a assumir que não conhecia os limites do seu poder?

DC: O Presidente da República sempre mostrou um grande desconhecimento do espírito da nossa lei fundamental e também não conseguiu encarnar o seu papel de pacificador da sociedade e de defensor da própria Constituição. Falar agora de referendo mostra-nos duas coisas: o desconhecimento sobre como as coisas devem ser tratadas e um desconhecimento também do timing em que essas coisas devem ser tratadas. O problema do nosso sistema político não está propriamente na Constituição, mas sim na falta de capacidade da generalidade dos nossos atores políticos em colocar o país como prioridade das suas ações. E isto leva sempre a que haja espaço para manobras "reinterpretativas" da Constituição. Mas a nossa Constituição é muito clara no que diz respeito aos papéis e deveres do Presidente da República e aos papéis que cabem ao Governo. Só alguém imbuído de má-fé é que reinterpreta o que está lá disposto.

DW África: O que terá originado a manifestação dessa vontade, será que José Mário Vaz percebeu muito tarde que só a Constituição lhe legitima os poderes que tanto quer? Terá sido pressionado ou não passa de mais um ato sagaz da sua parte?

DC: O Presidente sempre foi bastante intencional nas medidas que foi tomando. Paralelamente ao desconhecimento da lei, havia uma clara intenção desta Presidência da República de deturpar o funcionamento convencionado do sistema político. Para mim, o que está em causa é uma tentativa de higienização da própria imagem política do Presidente. Ou seja, está a entrar no final do seu mandato e vai entrar, provavelmente, numa fase em que quererá apresentar a recandidatura à Presidência da República e agora esforça-se por higienizar a sua imagem, todos esses solavancos que temos assistido durante o período em que tem sido Presidente.

DW África: Está a dizer então que é a continuidade da sua postura ardilosa?

DC: Para mim, é óbvio.

Nádia Issufo | Deutsche Welle

O bicentenário do nascimento de Marx


Socialismo e o ressurgimento da luta de classes internacional


“Nós não dizemos ao mundo: Cessem suas lutas, elas são tolas; nós lhe daremos o verdadeiro lema da luta. Nós meramente mostramos ao mundo pelo que ele está realmente lutando, e consciência é algo que que ele tem de adquirir, mesmo que não queira.” [Karl Marx para Arnold Ruge, Setembro de 1843]

“As armas da crítica não podem, é claro, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria também se torna uma força material uma vez que se apossa dos homens.” [Contribuição para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1844]

“A emancipação do alemão é a emancipação do ser humano. A cabeça dessa emancipação é a filosofia, seu coração é o proletariado. A filosofia não pode se tornar realidade sem a abolição do proletariado, o proletariado não pode ser abolido sem a filosofia ter se tornado uma realidade.” [Contribuição para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1844]

“Não é uma questão do que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado, no momento interpretacomo seu objetivo. É uma questão de o que o proletariado é, e o que, de acordo com seu ser, será historicamente compelido a fazer.” [A sagrada família, 1844]
“Com a profundidade da ação histórica aumentará, portanto, o volume da massa de quem ela constitui a ação.” [A sagrada família, 1844]

“A história de toda a sociedade até nossos dias é a história da luta de classes.” [O Manifesto do Partido Comunista, 1847]

“Que as classes dominantes tremam com uma revolução comunista. Os proletários não tem nada a perder exceto suas correntes. Eles tem o mundo a ganhar. PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS!” [O Manifesto do Partido Comunista, 1847]

***
1. Este ano (2018) marca os 200 anos do nascimento de Karl Marx, o criador da concepção materialista da história, autor de Das Kapitale, com Friedrick Engels, fundador do movimento socialista revolucionário moderno. Nascido em 5 de Maio de 1818 na cidade de Trier, na Prússia, Marx era, citando Lenin, “o gênio que continuou e consumou as três correntes ideológicas principais do século XIX, que eram representadas pelos três países mais avançados da humanidade: a filosofia alemã clássica, a economia política inglesa clássica e o socialismo francês combinado com as doutrinas revolucionárias francesas em geral.” [1]

2. Marx morreu em Londres em 14 de Março de 1883 aos 64 anos de idade. Até aquele momento, ele e Engels tinham colocado as aspirações socialistas utópicas em uma fundamentação científica e criado as bases para um movimento político revolucionário da classe trabalhadora internacional. Entre 1843 e 1847, Marx executou uma revolução no pensamento teórico que superou tanto as limitações do materialismo predominantemente mecânico do século XVIII e as mistificações idealistas da lógica dialética de Hegel.

3. Estendendo o materialismo filosófico ao domínio da história e das relações sociais, Marx provou que a necessidade do socialismo surgia das regras do desenvolvimento das contradições inerentes do sistema capitalista. Ele não alegou ter descoberto a luta de classes como a força motivadora na história. Sua contribuição inovadora para o entendimento da história, como o próprio Marx explicou em 1852, foi: “1. mostrar que a existência de classes está ligada apenas a certas fases históricas do desenvolvimento da produção; 2. que a luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado; 3. que essa ditadura em si constitui nada mais do que uma transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes.” [2]

4. Tivesse Marx largado sua caneta depois de escrever o Manifesto Comunista, seu lugar na história ainda estaria garantido. Mas o que o elevou à estatura de uma figura histórico universal foi a escrita de Das Kapital, que fundamentou a concepção materialista da história. Nos 150 anos que se passaram desde a publicação do seu primeiro volume em 1867, várias gerações de economistas burgueses dedicaram suas vidas profissionais a refutar o trabalho de Marx. Em vão! Seus esforços foram frustrados não apenas pela força da metodologia dialética e a clareza histórica de Marx, mas também, e ainda mais, pela realidade da crise capitalista. Por mais que os professores possam protestar, o mundo capitalista “move-se”, como Marx explicou. Cada ataque sobre Das Kapital tem sido inevitavelmente seguido por uma nova demonstração prática das contradições econômicas e sociais insolúveis do sistema capitalista.

5. A última dessas lições, válida até hoje, começou com a quebra financeira global de 2008. As categorias e conceitos essenciais de economia política marxista – como força de trabalho, capital constante e variável, mais valia, a taxa de lucro em declínio, exploração, o fetichismo das mercadorias, o exército industrial de reserva e o empobrecimento relativo e absoluto do proletariado – são exigidos não apenas para um entendimento científico do capitalismo, mas mesmo para uma compreensão básica dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais diários.

6. Pode-se ter a certeza de que o bicentenário do nascimento de Marx será marcado por numerosos seminários acadêmicos em que professores cutucarão as teorias de Marx. Muitos deles focarão no que acreditam ser seus erros ou omissões. Haverá outros, uma pequena minoria, que elogiarão o trabalho de Marx. Mas a apreciação mais verdadeira e mais objetiva da vida de Marx acontecerá fora das salas de aula.

7. Este ano novo de 2018 – o bicentenário do nascimento de Marx – será caracterizado, acima de tudo, por uma enorme intensificação das tensões sociais e uma escalda dos conflitos de classes ao redor do mundo. Por várias décadas, e especialmente desde a dissolução da União Soviética em 1991, a resistência da classe trabalhadora à exploração capitalista foi suprimida. Mas as contradições essenciais do sistema capitalista – entre uma economia globalmente interdependente e arcaico sistema de estado-nação burguês; entre uma rede mundial de produção social, envolvendo o trabalho de bilhões de seres humanos, e a propriedade privada dos meios de produção; e entre as necessidades essenciais da sociedade de massas e os interesses egoístas dos ganhos individuais capitalistas – estão agora chegando rapidamente ao ponto em que uma maior supressão da oposição das massas de trabalhadores ao capitalismo é impossível.

8. A concentração de riqueza em uma pequena camada da população alcançou níveis nunca antes vistos. E isso é uma processo global. O 1% mais rico possui metade da riqueza do mundo. [3] Os 500 indivíduos mais ricos tinham, até Dezembro de 2017, uma riqueza somada de 5,3 trilhões de dólares, 1 trilhão de dólares a mais do que em 2016. [4] Nos Estados Unidos, três pessoas – Jeff Bezos, Bill Gates e Warren Buffett – possuem mais dinheiro do que a metade mais pobre da população. Na China, 38 bilionários aumentaram em 177 bilhões de dólares suas riquezas pessoais em 2017. Apesar das sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, os 27 bilionários da Rússia aumentaram sua riqueza em 29 bilhões de dólares. Carlos Slim, o homem mais rico no México, aumentou sua riqueza para 62,8 bilhões de dólares, um aumento de 12,9 bilhões de dólares em relação ao ano anterior.

9. A característica distintiva dessas enormes fortunas é que estão ligadas ao estarrecedor crescimento dos mercados acionários nos últimos 35 anos, e especialmente desde a quebra de Wall Street de 2008. A política do Banco Central americano de “flexibilização quantitativa” e as políticas de baixas taxas de juros dos bancos centrais ao redro do mundo levaram a um aumento de quase quatro vezes do índice Dow Jones ao longo da década passada. Em 2017, o aumento explosivo no valor de ações dos EUA esteve conectado com a expectativa – que desde então foi realizada – de um corte de impostos massivo para os ricos.

10. O enriquecimento daqueles do topo da oligarquia capitalista vem acompanhado do empobrecimento da ampla massa da população do mundo. De acordo com um relatório publicado pelo Credit Suisse, “Na outra ponta do espectro, os 3,5 bilhões de adultos mais pobres do mundo possuem cada um bens de menos de 10.000 dólares. Coletivamente, essas pessoas, que constituem 70% da população em idade de trabalho do mundo, respondem por apenas 2,7% da riqueza global”. [5]

11. Essa brutal disparidade de riqueza não é meramente uma mancha infeliz e acidental no rosto do capitalismo contemporâneo. A extrema desigualdade social é a expressão consumada da falência do sistema social existente. Em meio a todas as urgentes necessidades da moderna sociedade de massas – educação, moradia, cuidados para os idosos, cuidados médicos de alta qualidade, desenvolvimento de sistemas de transporte de massas avançados, proteção do ecossistema global em risco, etc. – recursos incompreensivelmente vastos estão sendo desperdiçados para satisfazer os impulsos obscenos e insensatos dos super-ricos e seus descendentes. Recursos que deveriam ser aplicados para construir escolas, moradias baratas, plantas de tratamento de água e hospitais, ou para financiar museus, orquestras e outras instituições culturais vitais, estão sendo jogados fora em mansões, iates, joias e outras incontáveis extravagâncias banais.

12. As elites dominantes capitalistas modernas tornaram-se elas próprias um obstáculo absoluto ao desenvolvimento progressivo da sociedade humana. O crescimento de riqueza pessoal das elites dominantes adquiriu um caráter sombriamente cancerígeno, que provoca repulsa popular e sinaliza a queda do sistema. O estado atual da situação mundial é irracional, exatamente no sentido que foi empregado por Engels para descrever a monarquia francesa na véspera da revolução que varreria a aristocracia do poder:

Em 1789 a monarquia francesa havia se tornado tão irreal, ou seja, sem qualquer necessidade, tão irracional, que ela tinha de ser destruída pela Grande Revolução, da qual Hegel sempre fala com o maior entusiasmo. Nesse caso, portanto, a monarquia era o irreal e a revolução era o real. E assim, ao longo da trajetória do desenvolvimento, tudo o que era previamente real se torna irreal, perde sua necessidade, seu direito de existência, sua racionalidade. E diante da realidade moribunda surge uma nova, viável realidade – de maneira pacífica se a velha tem bom senso suficiente para aceitar sua morte sem resistência; à força se resistir a essa necessidade. [6]

13. Não é necessária grande clareza política para prever que os oligarcas corporativos e financeiros farão de tudo para defender sua riqueza. Acostumados a impor sua vontade sobre a sociedade, eles responderão a qualquer sinal de resistência popular com violenta repressão. Ainda assim, não há qualquer questão política e social atual – incluindo o desemprego em massa, pobreza, desigualdade social, ataques cada vez maiores aos direitos democráticos fundamentais, o perigo crescente de uma catástrofe ecológica, militarismo imperialista sem restrições e a ameaça de guerra nuclear – que podem ser resolvidas dentro do quadro do capitalismo. De fato, qualquer tentativa séria de implementar reformas sociais desesperadamente necessárias requereria, no mínimo, a expropriação de enormes fortunas privadas e uma redistribuição ampla da riqueza. Enquanto a classe capitalista mantiver o poder do estado, entretanto, tais reformas são impossíveis. Assim, a luta da classe trabalhadora para defender seus interesses leva, como Marx previu, à revolução social.

14. A conquista do poder do estado pela classe trabalhadora russa em Outubro de 1917 confirmou a concepção materialista da história e a perspectiva política elaborada por Marx e Engels no Manifesto Comunista. Mas a Revolução de Outubro não foi simplesmente o resultado de um processo histórico objetivo. A vitória da classe trabalhadora dependia da liderança de um partido político marxista que se baseasse em uma estratégia revolucionária internacional. Sem tal liderança, a revolução socialista não pode conquistar a vitória, não importa quão grande seja a crise do sistema capitalista. No Segundo Congresso da Internacional Comunista em 1920, Lenin advertiu os delegados de que não existem situações “absolutamente sem esperança” para a classe dominante.

A tentativa de “provar” desesperança “absoluta” de maneira adiantada é pedantismo vazio ou malabarismo com conceitos e palavras. Apenas a experiência pode oferecer uma “prova” real dessa ou de questões similares. A ordem burguesa está agora enfrentando uma crise revolucionária excepcional ao redor de todo o mundo. Nós precisamos agora “provar” através da prática dos partidos revolucionários que eles são suficientemente conscientes, que eles possuem organização suficiente, ligações com as massas exploradas, determinação e entendimento para utilizar essa crise para uma revolução bem sucedida e vitoriosa. [7]

15. A advertência de Lenin foi confirmada tragicamente. Nos anos e décadas que se seguiram à Revolução de Outubro, não faltaram situações revolucionárias que criaram a possibilidade da classe trabalhadora tomar o poder. Apesar de duas guerras mundiais devastadoras, revoltas populares em massa ao redor do globo e numerosos episódios de severa instabilidade econômica e colapso total do sistema, a sobrevivência do capitalismo no século XX pode ser atribuída, o limite, à ausência de uma necessária liderança política revolucionária na classe trabalhadora.

16. Com o início da Primeira Guerra Mundial, os partidos sociais-democratas da Segunda Internacional passaram para o lado do imperialismo, aceitaram o programa de “defesa nacional” e traíram o levante revolucionário pós-guerra da classe trabalhadora. Na União Soviética, o crescimento da burocracia stalinista levou à destruição da Terceira Internacional (Internacional Comunista). O programa stalinista de “socialismo em um país”, desvelado em 1924, levou à subordinação da Terceira Internacional aos interesses nacionais do estado soviético conforme determinado pela burocracia dominante.

17. A transformação dos partidos sociais-democratas e stalinistas em agências políticas do imperialismo levou à derrotas devastadoras da classe trabalhadora internacional nos anos 1920 e 1930. As piores dessas derrotas foram a destruição do Partido Comunista Chinês em 1927, a vitória dos nazistas em 1933 e o esmagamento do movimento socialista na Alemanha, e a traição da Revolução Espanhola e a chegado ao poder do regime fascista de Franco (1936 – 1939).

18. Em 1938, Leon Trotsky fundou a Quarta Internacional. A fundação da Quarta Internacional foi a culminação de sua luta política, iniciada em 1923, contra a perversão nacionalista do socialismo pelo regime stalinista, a supressão da democracia dos trabalhadores, e o abandono do programa da revolução socialista mundial. No documento de fundação da nova Internacional, Trotsky identificou a “crise da liderança revolucionária” como o problema central da transição do capitalismo ao socialismo.

19. Oitenta anos depois, em um novo período de crescente crise global do sistema capitalista e uma cada vez maior militância da classe trabalhadora, a questão precisa ser levantada: quais são as possibilidades para a resolução da crise da liderança revolucionária? É possível que a Quarta Internacional conquiste a confiança das seções avançadas da classe trabalhadora, da juventude socialmente consciente e dos elementos mais progressivos entre a intelligentsia, e lidere as lutas de massa da classe trabalhadora para a vitória na revolução socialista mundial?

20. A resposta a essa questão requer que o estudo do problema seja colocado em um contexto histórico mais amplo.

21. Outro aniversario será comemorado este ano: os 50 anos dos eventos de Maio-Junho de 1968, a greve geral em massa que trouxe a França capitalista à beira de uma revolução socialista. Os eventos de 1968 ainda ressoam na imaginação popular: além dos protestos em massa e a greve geral na França, foi o ano da Ofensiva do Tet no Vietnã, extrema instabilidade nos Estados Unidos (expressa em dois assassinatos políticos e no surgimento de revoltas em grandes cidades americanas), e a Primavera de Praga anti-stalinista na Checoslováquia, que foi suprimida em Agosto pela intervenção armada da URSS e o Pacto de Varsóvia.

22. Os eventos de 1968 colocaram em movimento um processo de radicalização da classe trabalhadora internacional. O período entre 1968 e 1975 foi marcado pelo maior movimento revolucionário internacional da era pós-Segunda Guerra Mundial, incluindo ondas de greves na Itália, Alemanha, Grã-Bretanha, Argentina e nos Estados Unidos. Os sociais-democratas formaram seu primeiro governo na Alemanha desde a vitória dos nazistas de Hitler. O governo de Allende chegou no poder no Chile em Setembro de 1970. Uma greve de mineiros na Grã-Bretanha no inverno de 1973-74 forçou a renúncia do governo conservador Tory. A junta militar grega foi derrubada em Julho de 1974. Encarando o impeachment, Richard Nixon renunciou a presidência americana em Agosto de 1974. O regime fascista que havia estado no poder em Portugal desde 1926 entrou em colapso em Abril de 1975. A morte de Franco em Novembro de 1975 expôs a fragilidade, não apenas da velha ditadura, mas do governo capitalista na Espanha. Movimentos anti-imperialistas poderosos de libertação nacional varreram o Oriente Médio e a África.

23. E ainda assim, apesar do escopo internacional dessas lutas de massas, o sistema capitalista não apenas sobreviveu às revoltas, como foi capaz de infligir derrotas (como na derrubada do regime de Allende no Chile em 1973) e criar a base para um contra-ataque sobre a classe trabalhadora. Isso foi iniciado pela classe dominante no final dos anos 1970 com a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido (seguida logo depois pela eleição de Ronald Reagan nos EUA).

24. A sobrevivência do capitalismo em meio às mudanças globais entre 1968 e 1975 dependeu, acima de tudo, do fato de que os partidos stalinistas e sociais-democratas e os sindicatos ainda eram forças dominantes nos movimentos de trabalhadores de massas da época. Com milhões de membros, eles empregaram seu poder burocrático para restringir, desviar, minar, e, onde necessário, orquestrar a derrota das lutas da classe trabalhadora. O regime stalinista na União Soviética e o regime maoísta na China falsificaram sistematicamente o marxismo e usaram todos os recursos à sua disposição para subverter movimentos revolucionários que ameaçavam seus esforços para melhorar as relações com os Estados Unidos e outras potências imperialistas. Nos países atrasados, os regimes stalinistas e maoístas buscaram manter a influência de vários movimentos burgueses nacionais sobre a classe trabalhadora, assim minando a luta contra o capitalismo e o imperialismo.

25. Durante esse período crítico, o Comitê Internacional da Quarta Internacional lutou contra a influência política do stalinismo, da social-democracia e do nacionalismo burguês. Mas o fez sob condições de extremo isolamento político que foram impostas sobre o Comitê Internacional não apenas pelas grandes organizações burocráticas dos sociais democratas e dos stalinistas, mas também pelo papel político sinistro das organizações oportunistas que haviam rompido com o Trotskismo nos anos 1950 e no começo dos anos 1960.

26. Nomeadas em referência ao principal teórico do revisionismo anti-trotskista, as organizações Pablistas rejeitaram especificamente a necessidade de construir partidos revolucionários independentes da classe trabalhadora baseados no programa da Quarta Internacional. Michel Pablo e seu principal companheiro político, Ernest Mandel, rejeitaram a caracterização de Trotsky da burocracia stalinista como contrarrevolucionária. Eles defendiam que a burocracia soviética, sob pressão dos eventos objetivos e do movimento espontâneo das massas, poderia ser compelida à levar adiante políticas revolucionárias. Da mesma maneira, a pressão de eventos objetivos poderia compelir os sociais-democratas e os nacionalistas burgueses a assumirem um papel revolucionário.

27. A conclusão que seria tirada desse amplo revisionismo do Trotskismo era de que não seria necessário construir a Quarta Internacional. Os Pablistas encontraram e glorificaram incontáveis “alternativas” ao Trotskismo, como Fidel Castro em Cuba e Ben Bella na Argélia. Por se recusar a aceitar a liquidação política da Quarta Internacional, os Pablistas denunciaram o Comitê Internacional como sendo “sectários de extrema-esquerda”.

28. Cinquenta anos atrás, os sociais-democratas, os stalinistas, os maoístas, e vários formas do nacionalismo burguês exerciam enorme influência sobre a classe trabalhadora e movimentos anti-imperialistas de massas. Mas o que resta dessas organizações hoje?

29. A União Soviética não existe mais, e a rede global de partidos stalinistas em grande medida desapareceu. Na China, o Partido Comunista é a organização política e de estado da elite dominante capitalista. Os partidos sociais-democratas são praticamente indistinguíveis dos partidos burgueses mais de direita. Em lugar nenhum os trabalhadores os veem como defensores dos seus interesses. Na medida em que os sociais-democratas tentam preservar um pingo de credibilidade executando um blefe para a esquerda (i.e., Corbyn na Grã-Bretanha), esse movimento fraudulento será exposto como uma farsa assim que alcançar o poder político, como ocorreu na Grécia.

30. Com relação aos movimentos nacionalistas burgueses, nada resta de suas pretensões anti-imperialistas e anti-capitalistas. A evolução do Congresso Nacional Africano, que se tornou o partido governante da África do Sul – defendendo implacavelmente os interesses dos ricos e fuzilando trabalhadores em greve –, é a expressão mais ilustrativa da trajetória histórica e da essência de classe do nacionalismo burguês.

31. Finalmente, as organizações Pablistas, junto com os vários movimentos que compõem a pseudo-esquerda, integraram-se ao establishment político burguês. O Syriza (A Coalizão Radical de Esquerda), na Grécia, é a maior expressão dessa integração, que desde sua chegada ao poder, em 2016, impõe as medidas de austeridade e as políticas anti-imigrantes exigidas pelos bancos europeus.

32. A explicação para o colapso político e o fim dessas organizações se encontra na contradição profundamente enraizada entre seus programas nacional-reformistas provinciais e o desenvolvimento do capitalismo como um sistema econômico globalmente integrado.

33. O elemento político comum das organizações stalinistas, maoístas, sociais-democratas, burguesas nacionalistas e Pablistas oportunistas era a dependência de seus programas da possibilidade de alcançar reformas dentro do quadro econômico do estado nacional. Conforme o processo de globalização econômica se acelerou nos anos 1980, a perspectiva e o programa dessas organizações nacionais perdeu toda sua viabilidade.

34. O potencial para a resolução bem-sucedida da crise da liderança da classe trabalhadora reside no alinhamento do programa do Comitê Internacional da Quarta Internacional com o processo objetivo de desenvolvimento econômico global e o desenvolvimento internacional da luta de classes. Essa é a base real para a vasta mudança, desde 1968, na relação de forças políticas entre o Trotskismo, conforme representado pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional, e todos os representantes políticos do anti-marxismo e do pseudo-esquerdismo.

35. Trinta anos atrás, depois da expulsão dos remanescentes finais do oportunismo Pablista da Quarta Internacional, o Comitê Internacional desenvolveu a análise política internacional que guiaria seu trabalho nas décadas que se seguiram. Essa perspectiva, publicada em 1988, insistia que partidos revolucionários da classe trabalhadora poderiam ser desenvolvidos apenas através de um programa internacional que correspondesse às tendências objetivas do desenvolvimento capitalista. Ela explicava que o “desenvolvimento massivo das corporações transnacionais e a integração global resultante da produção capitalista produziram uniformidade sem precedentes nas condições dos trabalhadores do mundo”. [8]

36. O Comitê Internacional tirou dessa análise a seguinte conclusão estratégica:

Há muito tempo tem sido um princípio básico do marxismo que a luta de classes é nacional apenas em sua forma, mas que é, em essência, uma luta internacional. Entretanto, dadas as novas características do desenvolvimento capitalista, mesmo a forma da luta de classes precisa assumir um caráter internacional. Mesmo as lutas mais elementares da classe trabalhadora colocam a necessidade de coordenar suas ações em uma escala internacional. [9]

37. No Décimo Terceiro Congresso Nacional da Liga dos Trabalhadores (antecessora do Partido Socialista pela Igualdade nos Estados Unidos) em Agosto de 1988, as implicações práticas dessa análise foram explicadas:

A busca por soluções nacionais para a crise internacional leva inevitavelmente à subordinação de cada movimento nacional trabalhista às políticas de guerra comercial da burguesia. Não há saída para esse impasse exceto através do internacionalismo revolucionário, e nós dizemos isso não como uma frese de efeito. A suprema tarefa estratégica que enfrenta o movimento Trotskista é a unificação da classe trabalhadora de todo o mundo no que Trotsky uma vez se referiu como “uma única organização internacional proletária de ação revolucionária possuindo um centro mundial e uma orientação política mundial”.

Nós não concebemos isso como algum tipo de missão utópica. Nossa análise científica da época e da natureza da crise mundial atual nos convence não apenas que essa unificação do proletariado é possível; mas também que apenas um partido cujo trabalho diário é baseado nessa orientação estratégica pode se tornar enraizado na classe trabalhadora. Nós antecipamos que o próximo estágio das lutas proletárias vai se desenvolver inexoravelmente, sob a pressão combinada das tendências econômicas objetivas e a influência subjetiva dos marxistas, através de uma trajetória internacionalista. O proletariado vai tender cada vez mais a se definir na prática como uma classe internacional; e os internacionalistas marxistas, cujas políticas são a expressão dessa tendência orgânica, cultivarão esse processo e darão à ele forma consciente. [10]

38. A partir dessa análise, o Comitê Internacional implementou mudanças significativas no seu trabalho organizacional e prático. Até 1995 as seções do Comitê Internacional existiam como ligas. Em Junho daquele ano, a Liga dos Trabalhadores nos Estados Unidos estabeleceu o Partido Socialista pela Igualdade, uma mudança na forma organizativa que expressava, em meio à crise e o colapso das velhas organizações burocráticas de massas, a emergência de uma nova relação entre a tendência marxista revolucionária e a classe trabalhadora. A escolha do nome para o novo partido identificou a luta pela igualdade como o grande objetivo do socialismo e antecipou a raiva popular contra a desigualdade capitalista. Nos meses que se seguiram, todas as seções do Comitê Internacional realizaram a mesma reorganização política. Seguindo a transformação das velhas ligas em partidos, o Comitê Internacional adotou uma nova forma de trabalho político, utilizando a tecnologia de comunicações associada com o desenvolvimento da internet. O lançamento do World Socialist Web Site, quase exatamente vinte anos atrás, em Fevereiro de 1998, foi uma iniciativa política verdadeiramente revolucionária. Como o Comitê Internacional explicou:

Nós estamos confiantes de que o WSWS se tornará uma ferramenta sem precedentes para a educação política e a unificação da classe trabalhadora em escala internacional. Ele ajudará trabalhadores de diferentes países a coordenar suas lutas contra o capital, assim como as corporações transnacionais organizam sua guerra contra o trabalho através das fronteiras nacionais. Ele facilitará a discussão entre trabalhadores de todas as nações, permitindo-os comparar suas experiências e elaborar uma estratégia comum.

O CIQI espera que a audiência mundial do World Socialist Web Site cresça conforme a internet se expanda. Como uma forma rápida e global de comunicação, a internet tem implicações democráticas e revolucionárias extraordinárias. Ela pode permitir a uma audiência em massa ganhar acesso aos recursos intelectuais do mundo, desde bibliotecas e arquivos até museus. [11]

39. A publicação diária do World Socialist Web Site ao longo de um período de 20 anos é, por qualquer medida objetiva, uma conquista política extraordinária. A capacidade do quadro do Comitê Internacional de sustentar a publicação por um período tão extenso, sem perder um único dia programado de publicação, atesta sua clareza teórica e política e sua grande união e força organizacional. Não há outra publicação no mundo que relembre mesmo remotamente o World Socialist Web Site. Ele é não apenas a única publicação socialista de referência, analisando e comentando sobre os eventos principais do dia. É também o estrategista e a tribuna da classe trabalhadora em luta.

40. Ao longo do ano passado, o Google tentou colocar em uma lista negra e censurar o World Socialist Web Site. Esses esforços não estão dando certo. O número de leitores do WSWS continua aumentando. Ele está ganhando força do movimento emergente da classe trabalhadora e da juventude.

41. O passado é prólogo. Todo o trabalho teórico, político e prático do Comitê Internacional foi a preparação para o ressurgimento da luta de classes internacional. A tarefa mais importante é a de construir uma liderança revolucionária, sistematicamente, conscientemente e agressivamente. É sobre essa tarefa que uma resolução progressiva para a questão básica encarando a humanidade – socialismo ou barbárie – depende. O desafio de 2018 é de expandir o trabalho do Comitê Internacional da Quarta Internacional, estender o alcance de suas seções entre trabalhadores e a juventude que começam a lutar, conquistar novas forças para o programa da Revolução Socialista Mundial, e assumir a educação deles a partir da história e da perspectiva científica mundial do marxismo. O Comitê Internacional da Quarta Internacional celebrará o bicentenário do nascimento de Karl Marx de acordo com a sua máxima mais famosa:

“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o objetivo, entretanto, é transformá-lo”.

*Publicado originalmente em 03 de Janeiro de 2018

Referências:
[1] Karl Marx, em Collected Works, Volume 20 (Moscou, 1964), p. 50
[2] Carta de Karl Marx para Joseph Weydemeyer, 5 de Março de 1852, publicada em Marx-Engels Collected Works (Nova Iorque, 1983), Volume 39, pp. 64–65
[3] “Richest 1% own half the world’s wealth, study finds”, publicado em https://www.theguardian.com/inequality/2017/nov/14/worlds-richest-wealth-credit-suisse
[4] “World’s Wealthiest Became $1 Trillion Richer in 2017”, publicado em https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-12-27/world-s-wealthiest-gain-1-trillion-in-17-on-market-exuberance
[5] https://www.theguardian.com/inequality/2017/nov/14/worlds-richest-wealth-credit-suisse
[6] Ludwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy, publicado em Marx-Engels Collected Works, Volume 26 (Moscou, 1990), pp. 358-59
[7] The Second Congress of the Communist International, Volume 1 (Londres, 1977), p. 24
[8] “The World Capitalist Crisis and the Tasks of the Fourth International”, Fourth International, Volume 15, Nos. 3-5, Julho-Dezembro 1988, p. 4
[9] Ibid
[10] David North, “Report to the Workers League Thirteenth National Congress”, Fourth International, Vol. 15, Nos. 3-4, Julho-Dezembro 1988, pp. 38-39
[11] https://www.wsws.org/en/special/about.html


Os EUA recusam bater-se para os financeiros transnacionais


Thierry Meyssan*

A retirada dos EUA da Síria e do Afeganistão, assim como a demissão do General Mattis, atestam a viragem em curso na ordem mundial. Os Estados Unidos já não são os primeiros. Nem no plano económico, nem no plano militar. Eles recusam continuar a bater-se exclusivamente pelos interesses de financeiros transnacionais. As alianças que encabeçavam vão começar à desmoronar-se sem que, no entanto, os seus antigos aliados admitam a subida de poderio da Rússia e da China.

anúncio da retirada parcial das forças norte-americanas do Afeganistão, e total da Síria, soou como um trovão, a 19 de Dezembro de 2018. Ele foi seguido, no dia seguinte, pela demissão do Secretário da Defesa, James Mattis. Contrariamente às afirmações dos opositores do Presidente Trump, os dois homens estimam-se e a sua divergência não tem a ver com estas retiradas, mas, antes com a maneira de gerir as suas consequências. Os Estados Unidos estão perante uma escolha que vai marcar uma ruptura e fazer bascular o mundo.

Antes de mais, para não se entrar num contra-senso, convêm lembrar as condições e o objectivo da colaboração de Trump e Mattis.

Aquando do seu acesso à Casa Branca, Donald Trump havia tratado de se rodear de três altos militares dispondo de suficiente autoridade para reorientar as Forças Armadas. Michael Flynn, John Kelly e, sobretudo, James Mattis, partiram ou estão na porta de saída. Todos eles três, são grandes soldados que em conjunto chocaram com a hierarquia na era Obama [1]. Não aceitavam a estratégia, implementada pelo Embaixador John Negroponte, de criação de grupos terroristas encarregues de fomentar uma guerra civil no Iraque [2]. Os três comprometeram-se com o Presidente Trump a retirar o apoio de Washington aos jiadistas. No entanto, cada um deles tinha a sua própria visão sobre o papel dos Estados Unidos no mundo e acabaram por entrar em choque com o Presidente.
A tempestade que as eleições intercalares haviam adiado chegou [3]. É chegado o momento de repensar as Relações Internacionais.

A Síria

Quando em Abril, de acordo com as seus promessas, Donald Trump evocara a retirada dos EUA da Síria, o Pentágono tinha-o convencido a ficar. Não que alguns milhares de homens pudessem inverter o curso da guerra, mas porque a sua presença era um contrapeso à influência russa e um apoio a Israel.

No entanto, a transferência para o Exército Árabe Sírio de armas de defesa russas, nomeadamente mísseis S-300 e radares ultra-sofisticados coordenados por um sistema de gestão automatizada Polyana D4M1, alterou o equilíbrio de forças [4]. Agora, desde há três meses, dia a dia, o espaço aéreo sírio mostrou-se inviolável. Como resultado, a presença militar dos EUA torna-se contraproducente: não mais qualquer ataque terrestre dos mercenários pró-EUA poderá ser apoiado pela aviação norte-americana sem esta correr o risco de perder aeronaves.

Ao retirar-se agora, o Pentágono evita a prova de força e a humilhação de uma inevitável derrota. Com efeito, a Rússia recusou dar sucessivamente aos Estados Unidos e a Israel os códigos de segurança dos mísseis fornecidos à Síria. Quer dizer que Moscovo, após anos de arrogância do Ocidente, recusou a partilha do controle da Síria que havia aceite aquando da primeira conferência de Genebra, em 2012, e que Washington violara algumas semanas mais tarde.

Por outro lado, Moscovo afirmou, há já muito tempo, que a presença dos EUA é ilegal à luz do Direito Internacional e que a Síria pode legitimamente defender-se.

As suas consequências

A decisão de retirada da Síria tem sérias consequências.

1— O pseudo-Curdistão

O projeto ocidental de criação de um Estado colonial, no Nordeste da Síria, que seria atribuído aos Curdos não verá a luz do dia. Além disso, cada vez menos Curdos o apoiavam, considerando que essa conquista seria comparável à proclamação unilateral de um estado, Israel, pelas milícias judias, em 1948.

Como já explicamos bastantes vezes, o Curdistão apenas é legítimo dentro das fronteiras que lhe foram reconhecidas em 1920 pela Conferência de Sèvres, isto é, na actual Turquia e não em outro lugar [5]. Os Estados Unidos e a França encaravam, há algumas semanas ainda, criar um pseudo-Curdistão em terra árabe e em fazê-lo administrar, sob mandato da ONU, pelo antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Bernard Kouchner [6].

2— A estratégia Cebrowski

O projecto prosseguido pelo Pentágono, desde há dezassete anos, no «Médio-Oriente Alargado» não verá a luz do dia. Concebido pelo Almirante Arthur Cebrowski, visava destruir todas as estruturas estatais desta região, à excepção das de Israel, da Jordânia e do Líbano [7]. Este plano, que se lançou do Afeganistão à Líbia e ainda funciona, começa a terminar no solo sírio.

Está completamente fora de questão que os Exércitos dos EUA se batam, às custas do contribuinte, para interesse exclusivo dos financeiros globais, mesmo que norte-americanos.

3— A supremacia militar norte-americana

A ordem do mundo pós-soviético, fundada sobre a superioridade militar norte-americana está morta. Que tal seja difícil de admitir nada muda aos factos. A Federação da Rússia é agora mais poderosa, tanto em termos convencionais (desde 2015) como nucleares (desde 2018 [8]). O facto de os Exércitos russos serem um terço menores que os dos Estados Unidos e de apenas disporem de poucas tropas no estrangeiro descarta a hipótese de um imperialismo de Moscovo.

Vencedores e vencidos

A guerra contra a Síria vai terminar nos próximos meses por falta de mercenários. O fornecimento de armas por certos Estados coordenados pelo fundo KKR pode fazer durar o crime, mas não oferece esperança de mudar o curso dos acontecimentos.

Sem dúvida nenhuma, os vencedores desta guerra são a Síria, a Rússia e o Irão, enquanto os vencidos são os 114 Estados que aderiram aos «Amigos da Síria». Alguns não esperaram pela derrota para corrigir a sua política externa. Assim, os Emirados Árabes Unidos acabam de anunciar a reabertura próxima da sua embaixada em Damasco.

O caso dos Estados Unidos é, no entanto, mais complexo. As Administrações Bush Jr. e Obama carregam a responsabilidade total por esta guerra. Foram elas que a planearam e realizaram no quadro de um mundo unipolar. Pelo contrário, o candidato Donald Trump acusou estas Administrações de não defender os cidadãos norte-americanos, mas, antes de servir a finança transnacional. Tornado Presidente, Trump não descansou em cortar o apoio do seu país aos jiadistas e de retirar os seus homens do Médio-Oriente Alargado. Ele deve, portanto, ser também considerado como um dos vencedores desta guerra e poderá logicamente descartar a obrigação do seu país em pagar danos de guerra para as corporações transnacionais envolvidas [9]. Para ele, deve-se agora reorientar as Forças Armadas para a defesa do território, pôr fim ao conjunto do sistema imperial e desenvolver a economia dos EUA.

O Afeganistão

Desde há vários meses, os Estados Unidos negoceiam discretamente com os Talibã as condições da sua retirada do Afeganistão. Uma primeira ronda de contacto, por intermédio do Embaixador Zalmay Khalilzad, realizou-se no Catar. Uma segunda ronda acaba de começar nos Emirados Árabes Unidos. Para além das duas delegações, dos EUA e dos Talibã, participam nela a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Paquistão. Uma delegação do governo afegão chegou ao local na esperança de participar.

Faz dezassete anos desde que os Estados Unidos e o Reino Unido invadiram o Afeganistão, oficialmente em retaliação pelos atentados do 11-de-Setembro. Na realidade, esta guerra deu seguimento às negociações de 2001, em Berlim e Genebra. Ela não visa estabilizar este país para o explorar economicamente, antes aí destruir qualquer forma de Estado organizado para controlar a sua exploração. O que é conseguido pois a cada dia que passa a situação está pior do que antes.

Lembremos que as desgraças do Afeganistão começaram durante a presidência Carter. O Conselheiro de Segurança Nacional, Zbigniew Brzeziński, apelou aos Irmãos Muçulmanos e a Israel para lançarem uma campanha de terrorismo contra o governo comunista [10]. Apertado, este fez apelo aos Soviéticos a fim de manter a ordem. Seguiu-se uma guerra de quatorze anos continuada por uma guerra civil, depois pela invasão anglo-americana.

Depois de quarenta anos de destruições ininterruptas, o Presidente Trump afirma que a presença militar dos EUA não é a solução para o Afeganistão, é antes o problema.

O lugar dos Estados Unidos hoje em dia no mundo

Ao retirar metade das tropas dos EUA legalmente estacionadas no Afeganistão, e a totalidade das que ocupam ilegalmente a Síria, o Presidente Trump cumpre uma das suas promessas eleitorais. Ainda lhe restará retirar os 7.000 homens que permanecerão no local.

É neste contexto que o General Mattis colocou uma questão de fundo na sua carta de demissão [11]. Escreveu ele : «Uma das minhas convicções fundamentais sempre foi a de que a nossa força enquanto nação está intrinsecamente ligada à força de nosso sistema único e completo de alianças e parcerias. Muito embora os Estados Unidos continuem a ser a nação indispensável no mundo livre, nós não podemos proteger os nossos interesses, nem desempenhar eficazmente este papel, sem manter sólidas alianças e fazer prova de respeito em relação a estes aliados. Tal como vós, eu digo desde o princípio que as Forças Armadas dos Estados Unidos não deveriam ser o gendarme do mundo. Em vez disso, devemos utilizar todas as ferramentas do Poder Americano para garantir a defesa comum, nomeadamente assegurando para tal uma liderança eficaz às nossas alianças. Esta força foi demonstrada por 29 democracias com o seu compromisso em se baterem ao nosso lado após o atentado do 11-de-Setembro contra a América. A coligação (coalizão-br) de 74 nações contra o Daesh (E.I.) é outra prova disso» [12].

Por outras palavras, James Mattis não contesta o bom fundamento da retirada das tropas dos EUA do Afeganistão e da Síria, mas, sim o que vai provavelmente seguir-se: o desfazer de alianças em torno dos Estados Unidos e, por fim, o possível desmantelamento da OTAN. Para o Secretário da Defesa, os Estados Unidos devem tranquilizar os seus aliados dando-lhes a impressão que sabem o que fazem e que são os mais fortes. Pouco importa que isso seja verdadeiro ou não, trata-se de manter, custe o que custar, a coesão entre os aliados. Enquanto que para o Presidente, o perigo está em casa. Os Estados Unidos perderam já a sua posição cimeira na economia, em proveito da China, e agora a sua posição cimeira militar para a Rússia. É preciso deixar de ser o zarolho a guiar os ceguinhos e ocupar-se antes de mais dos seus.

Neste assunto, James Mattis age como um soldado. Ele sabe que uma nação sem aliados está derrotada à partida. Enquanto Donald Trump pensa como um líder de negócios. Deve-se, antes de mais, sanear as subsidiárias deficitárias que ameaçam falir a nossa empresa.


*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] Cobra II: The Inside Story of the Invasion and Occupation of Iraq, Michael Gordon & Bernard Trainor, Atlantic Book, 2006.
[2] ISIS is US: The Shocking Truth Behind the Army of Terror, George Washington’s Blog, Wayne Madsen, Webster Griffin Tarpley, Syrian Girl Partisan, Progressive Press, 2016.
[3] “Relações internacionais: a calma antes de que tempestade?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 9 de Outubro de 2018.
[4] “Por que os Estados Unidos estão de repente se retirando da Síria?”, Valentin Vasilescu, Tradução Marisa Choguill, Rede Voltaire, 21 de Dezembro de 2018.
[5] “Os projectos de Curdistão”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Setembro de 2016.
[6] “Bernard Kouchner entra ilegalmente na Síria”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 12 de Dezembro de 2018.
[7] The Pentagon’s New Map, Thomas P. M. Barnett, Putnam Publishing Group, 2004. “O projecto militar dos Estados Unidos pelo mundo”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Agosto de 2017.
[8] “Excerto do discurso pronunciado por Vladimir Putin referente à Defesa”, Vladimir Putin, Tradução Maria Luísa de Vasconcellos, 1 de Março de 2018. “O novo arsenal nuclear russo restabelece a bipolaridade do mundo”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, 7 de Março de 2018. “Os meios russos de defesa hipersónica”, Valentin Vasilescu, Tradução Alva, Rede Voltaire, 15 de Junho de 2016.
[9] “Penhorar transnacionais para reconstruir a Síria ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 14 de Agosto de 2018.
[10] « Brzezinski : "Oui, la CIA est entrée en Afghanistan avant les Russes …" », par Zbigniew Brzeziński, Le Nouvel Observateur (France) , Réseau Voltaire, 15 janvier 1998. Charlie Wilson’s War: The Extraordinary Story of the Largest Covert Operation in History, George Crile III, Atlantic Monthly Press, 2003.
[11] “Resignation letter from James Mattis”, by James Mattis, Voltaire Network, 20 December 2018.
[12] “One core belief I have always held is that our strength as a nation is inextricably linked to the strength of our unique and comprehensive system of alliances and partnerships. While the US remains the indispensable nation in the free world, we cannot protect our interests or serve that role effectively without maintaining strong alliances and showing respect to those allies. Like you, I have said from the beginning that the armed forces of the United States should not be the policeman of the world. Instead, we must use all tools of American power to provide for the common defense, including providing effective leadership to our alliances. 29 democracies demonstrated that strength in their commitment to fighting alongside us following the 9-11 attack on America. The Defeat-ISIS coalition of 74 nations is further proof.”

Um Grande Júri chamado a pronunciar-se sobre a presença de explosivos no WTC a 11-de-Setembro


Comité de juristas para uma investigação sobre o 11-de-Setembro (Lawyers Committee for 9/11 Inquiry) foi criado em Nova Iorque, em Fevereiro de 2018. Em Abril, ele depôs uma petição de 52 páginas, e 57 elementos de prova, perante o Procurador do Distrito Sul de Nova Iorque. No fim do prazo regulamentar de seis meses, este designou um Grande Júri para analisar a queixa.

Nesta fase, o Comité de Juristas não põe em causa a versão Bushiana dos atentados do 11 de Setembro de 2001. Ele não se pronuncia sobre o impacto dos dois aviões que atingiram dois dos três prédios destruídos. Ele concentra-se, exclusivamente, sobre a presença de explosivos nas torres WTC1, WTC2 e WTC7. Ele constata que o papel que desempenharam naquele dia constitui um crime federal que não foi, até ao momento, inquirido.

No passado, o Procurador (Promotor-br) Geoffrey S. Berman foi, durante dois anos, sócio de Rudy Giuliani, Presidente da Câmara (Prefeito-br) de Nova Iorque na altura dos acontecimentos. Giuliani havia apelado aos seus concidadãos para que evacuassem as torres WTC1 e WTC2 depois de elas terem sido atingidas pelos aviões de passageiros, tendo em vista os riscos de desmoronamento que, a seu ver, elas apresentavam. Ora, os edifícios tinham sido construídos para resistir a choques muito mais violentos.

A reunião do Grande Júri deverá ter lugar em 2019. Esta será a primeira vez, dezoito anos após os crimes, que a justiça civil (e não a militar) norte-americana se debruçará sobre um aspecto dos atentados de 11-de-Setembro.

Voltaire.net.org | Tradução Alva

Reino Unido | Polícia alerta para riscos de segurança com Brexit sem acordo


A responsável da Metropolitan Police, comissária Cressida Dick, alertou para os custos e os efeitos potencialmente prejudiciais para a segurança pública de uma saída do Reino Unido da União Europeia sem acordo.

Cressida Dick, que é dos mais graduados oficiais de polícia do país, considerou que uma saída sem acordo poria em risco o acesso às bases de dados criminais da União Europeia e dificultaria a extradição de suspeitos do estrangeiro.

"Seria muito difícil no curto prazo. Teríamos de substituir algumas das coisas que atualmente usamos em termos de acesso a bases de dados, bem como a forma como podemos extraditar e prender suspeitos rapidamente", disse, citada pela comunicação social do Reino Unido.

Cressida Dick adiantou que será preciso substituir o acesso a essas bases de dados "o mais eficientemente possível".

"Será indubitavelmente mais caro, mais moroso e aumentará potencialmente os riscos para a segurança pública", acrescentou.

A responsável da Metropolitan Police disse ainda estar em conversações com as outras forças policiais na Europa sobre eventuais planos de contingência e manifestou a esperança de que seja possível ao Reino Unido implementar sistemas de combate ao crime como aqueles de que dispõe e a que tem acesso atualmente.

O acordo de saída da UE esteve para ser votado a 11 de dezembro, mas a primeira-ministra britânica, Theresa May, decidiu adiar o voto dada a elevada probabilidade de ser chumbado por uma "margem significativa" na Câmara dos Comuns.

Um novo debate no parlamento britânico sobre o acordo de Brexit está agora previsto para começar a 09 de janeiro, estando a votação marcada para a semana de 14 a 18 de janeiro.

O Reino Unido deverá sair da União Europeia em 29 de março de 2019.

Depois do Brexit, o país deixará de ser membro das agências europeias Europol e Eurojust e do Sistema Europeu de Mandados de Detenção, que permite aos países membros acelerar a extradição de suspeitos e condenados.

O acordo sobre as relações futuras compromete os dois lados a estabeleceram planos recíprocos para tentar harmonizar a aplicação da lei e a cooperação judicial.

Jornal de Notícias

Imagem: Responsável da Metropolitan Police, comissária Cressida Dick / Foto: Hannah McKay/Reuters

Forças Armadas alemãs querem recrutar europeus


Permissão de ingresso de cidadãos de outros países da UE na Bundeswehr parece mais perto de se concretizar. Recrutamento de profissionais altamente qualificados é analisado para suprir falta de mão de obra na tropa.

O governo alemão está concretizando seu plano de permitir o ingresso de cidadãos de outros Estados-membros da União Europeia às Forças Armadas do país (Bundeswehr), para contornar a falta de pessoal. 

O recrutamento de pessoal estrangeiro de áreas específicas, como médicos e especialistas em informática, é uma opção que está sendo estudada, segundo o inspetor-geral das Forças Armadas alemãs, Ebehard Zorn, em entrevista publicada nesta quinta-feira (27/12) pelos jornais da empresa alemã Funke Mediengruppe.

"A Bundeswehr precisa de pessoal”, ressaltou Zorn. "Temos que procurar em todas as direções numa época de falta de mão de obra qualificada", afirmou o oficial.

De acordo com as publicações da Funke Mediengruppe, o governo alemão já teria consultado parceiros da UE sobre tais planos. A maioria dos países, entretanto, teria recebido a ideia com reserva, especialmente no Leste Europeu. Bulgária, Romênia, Eslovênia e Grécia teriam expressado temor da evasão de potenciais soldados, atraídos por um melhor pagamento. 

Na Alemanha vivem, segundo a reportagem, cerca 530 mil cidadãos da UE de idades entre 18 e 30 anos, que representariam um potencial adicional para recrutamento pela Bundeswehr.

A ministra alemã da Defesa, Ursula von der Leyen, afirmou em entrevista ao jornal Rheinischen Postque o número de soldados das Forças Armadas alemãs cresceu cerca de 3,6% nos últimos dois anos. "Atingiremos no fim deste ano a marca dos 182 mil soldados", frisou. "Isso é 2.500 a mais do que há um ano e um aumento de  6.500 em comparação ao ponto mais baixo, que foi 2016."

Desde a sua criação, em 1955, a Bundeswehr só permite a entrada de cidadãos alemães. Mas após o fim do serviço militar obrigatório em 2011, a Bundeswehr passou a enfrentar dificuldades em recrutar novos membros para suas fileiras.

Von der Leyen lembrou que o tamanho que as Forças Armadas devem atingir depende da situação de segurança e das tarefas da tropa. Segundo ela, o atual planejamento a médio prazo prevê que até 2025 deve ser alcançada a marca de 203 mil soldados, incluindo muitos novos recrutamentos para as áreas de segurança cibernética e para projetos no âmbito da União Europeia.

A possibilidade de permitir o ingresso de cidadãos de outros países da UE está sendo estudada desde 2011, mas nos últimos dois anos vem ganhando força no governo. Em 2016, a hipótese foi pela primeira vez incluída no chamado Livro Branco da política de segurança da Bundeswehr, que estabelece diretrizes estratégicas para o futuro das Forças Armadas.

MD/afp/ap | Deutsche Welle

Portugal | A “boca” da ministra


Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião

Apesar da época bastante propícia a dormências, há quem não admita passar o Natal sem uma boa polémica, numa espécie de surto que abale as frutas cristalizadas e aqueça o réveillon para o ano que aí vem.

Um bolo que se transforma em bola de neve. A nova ministra da Saúde parece ser uma das convivas predilectas quando pensamos em animação viral para épocas de paz e amor instauradas por decreto.

Enquanto equaciona "todas as fórmulas" - caso permaneça o desacordo e a falta de consenso com os enfermeiros -, Marta Temido não anestesia os outros profissionais da saúde. Pelo contrário. Abre uma guerra, a corte de bisturi, com os médicos anestesiologistas à boleia de uma "boca" à velocidade de 500 euros/hora. Surpreendente, não fosse esta ministra a mesma que, poucos dias antes, pedira desculpa aos enfermeiros após considerar que encetar o diálogo com a classe grevista seria beneficiar "o criminoso, o infractor". Por melhores que sejam as intenções da ministra, uma anestesia para contenção verbal até era coisa para não ter preço.

A justa luta dos enfermeiros vem de longe e está para durar: os três pré-avisos de greve mantêm-se e são suportados por recolhas de fundos dentro do sector. A carência de médicos anestesiologistas é já ancestral: de acordo com os Censos de Anestesiologia do ano passado, o SNS vivia com 541 médicos a menos. Entre Janeiro e Outubro, o Infarmed indeferiu 391 pedidos de autorização dos hospitais para a utilização excepcional de medicamentos inovadores no âmbito oncológico (em absoluto contraste com os 96 indeferimentos de 2017). Perante tantas doses de realidade sem sombra de anestesia, porque escolhe esta ministra o caminho da especulação? A hipotética recusa por parte de um anestesista (requisitado pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central ou por uma empresa de prestação de serviços) em trabalhar por 500 euros/hora na Maternidade Alfredo da Costa é uma historieta repleta de dúvidas e insinuações que - mesmo a ser verdade - não passa de um caso singular com dezenas de justificações.

A greve dos enfermeiros nos blocos operatórios de cinco hospitais públicos, iniciada a 22 de Novembro, já adiou entre 5000 a 7000 cirurgias. Tantas pessoas que não podem continuar a ser tratadas com respostas de suspeição por parte do Estado. É precisamente esta enviesada ideia de um Estado mau e não protector que potencia a mentira oportunista da falência do sector público da saúde, tão conveniente para muitos. Convirá mesmo que os mais altos responsáveis governativos deixem os casos únicos para abraçar os casos exemplares.

*Músico e jurista

- O autor escreve segundo a antiga ortografia

Os pobrezinhos

Dedicamos este post à Dra. Isabel Jonet, Antreus

António Lobo Antunes [*]

"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres.

Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam.

Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

– Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da menina Teresinha.

O plural de pobre não era "pobres". O plural de pobre era "esta gente".

No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre.

Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão: 

– Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres dinheiro, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável.

O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

– Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

O atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

– Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu.

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros:

– O que é que o menino quer, esta gente é assim.

E eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais.

A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

– Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar, e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado "Almanaque da Sãozinha", se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis".

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