Avanços médicos prometem ampliar
em décadas a expectativa de vida humana. Mas – sinal dos tempos – pode ser
apenas para um punhado de super-ricos. Quais as consequências econômicas e
éticas?
Jessica Powel | Outras Palavras | Tradução: Felipe
Calabrez
Você já deve ter lido sobre os
bilionários da tecnologia que estão apoiando pesquisas ambiciosas sobre a
longevidade. Entre eles estão Larry Ellison, que investiu centenas de milhões
de dólares em pesquisa anti-envelhecimento; Larry Page, da Alphabet, que
colocou um bilhão de dólares na Calico, uma misteriosa empresa de extensão de
vida. E há o fundador do PayPal e o senhor das sombras de todos os propósitos,
Peter Thiel, que está sugando o sangue do pescoço de… bem, espere, não está
muito claro o que Peter Thiel está fazendo. Mas ele demonstrou interesse na
parabiose, que envolve a obtenção de transfusões de sangue de jovens.
O interesse da indústria de
tecnologia na imortalidade não é surpreendente: conquistar a morte seria o
último santo graal a romper – e uma nova e fabulosa oportunidade de mercado.
Embora neste caso o interesse provavelmente não seja apenas intelectual e
capitalista. Acessar a eternidade (ou algo próximo disso) seria o ato mais extremo
de auto-exaltação: prova eterna do gênio e superioridade de alguém.
É por isso que muitos dos
esforços empregados na busca da vida eterna têm se concentrado
compreensivelmente na ciência e nas personalidades por trás dela – o vasto
financiamento proveniente de pessoas que construíram suas fortunas fazendo
software e que parecem acreditar que o envelhecimento é um código que pode ser
quebrado.
No entanto, pouco tem sido
escrito sobre as consequências que poderiam surgir se esses bilionários – vamos
chamá-los de Centenários — conseguissem empurrar a si mesmos, e seus amigos
ricos, para o clube de três dígitos.
O contexto é: as estimativas
atuais preveem que a expectativa de vida de alguém nascido em 2050 estará em
torno dos 90 anos – um avanço pequeno, mas importante, devido ao progresso
gradual na pesquisa e combate a doenças específicas. Mas os que buscam projetos
de longevidade muito mais ambiciosos dizem que podemos ir bem além. Alguns
cientistas duvidam que haja um limite absoluto para o corpo humano e outros
afirmam que este limite pode se estender até os 1000 anos (neste caso, ao fim,
chamaremos os Centenários de Milenários)…
Em países como os Estados Unidos,
já existe uma diferença de vida de 20 anos entre diferentes grupos
socioeconômicos, com uma idade média de 66 anos em algumas das comunidades mais
pobres, em comparação com 87 em áreas mais ricas1.
É possível imaginar que, até o final do século, o abismo entre as expectativas
de vida possa aumentar ainda mais, já que os caríssimos avanços em
biotecnologia, nanotecnologia, robótica e outros estão disponíveis apenas para
os verdadeiramente ricos.
Sabemos há muito que a
expectativa de vida não é apenas a combinação de bons genes e vida saudável,
mas que riqueza e meio ambiente também desempenham papéis importantes. A
diferença é que, no futuro, mais ainda do que o presente, uma vida mais longa
pode ser algo que se pode adquirir imediatamente. E o que pode ser adquirido
por uma pessoa é muitas vezes cobiçado por muitos; o que é cobiçado por muitos
em geral se torna uma grande oportunidade de mercado.
Uma oportunidade de mercado, no
setor de tecnologia, é frequentemente expressa como “democratização”. Assim
como o Vale do Silício democratizou publicações, comunicações, informações e
pagamentos, agora os Centenários de tecnologia estariam se preparando para
ajudar a “democratizar a longevidade”.
Como quer que seja chamado —
longevidade, extensão de vida, “melhor envelhecimento” — o campo provavelmente
seguirá os passos da blockchain, realidade virtual e inteligência artificial,
repleto de avanços legitimamente inspiradores, bem como de alegações ilusórias.
Ainda mais do que hoje, provavelmente veremos substâncias bioativas e
suplementos que prometem melhorar a vida em nossos alimentos e bebidas, além de gadgets e
aplicativos que estimulam, lembram ou até mesmo exigem certas modificações no
estilo de vida para manter o usuário saudável. Sob a promessa de vencer a
morte, nossos corpos poderão ser medidos, monitorados e manipulados a cada
momento, numa extensão muito mais impressionante do que um Fitbit primitivo
dizendo quantos passos você dá durante o dia.
Aos poucos, viveremos todos um
pouco mais — não de forma exponencial, mas gradual – com as migalhas das
conquistas obtidas pelos Centenários. E você pode apostar: o mesmo setor que
quer nos ajudar a decifrar a imortalidade terá muitos serviços suplementares
para nos vender, enquanto nos dirigimos suavemente ao túmulo. É apenas o mais
leve ato de futurismo imaginar o setor de tecnologia trazendo fármacos
entregues por drone, cadeiras de rodas terrestres auto pilotadas e dentaduras
que analisam a composição da saliva para alertar, a nós e a nossos médicos
robôs, sobre qualquer mudança preocupante em nossa vida. Podemos esperar algum
sinal desses serviços bem antes do meio deste século.
É claro, há muito se afirma que o
envelhecimento da população exercerá enorme pressão sobrea infra-estrutura
social. Basta pensar nas implicações para o meio ambiente, transporte,
assistência médica e a quantidade de espaço alocado para reclamações longas na
seção Cartas ao Editor do único jornal restante. Mas menos atenção tem sido
dada à desigualdade de idade. Embora qualquer discussão sobre o futuro esteja
fadada a ser especulativa, a desigualdade potencial de nossas datas de morte
merece mais atenção.
Em primeiro lugar, a desigualdade
de renda provavelmente piorará. Isso porque a morte tem sido um grande
redistribuidor de riqueza. Sem a morte, para efetivar um pesado imposto sobre
herança, os Centenários concentrarão uma fatia ainda maior do dinheiro do
mundo. Você julga que a distribuição de riqueza é desigual hoje em dia? Pense
sobre como seria quando os ricos morressem muito mais lentamente do que o resto
da população e quando não houvesse imposto sobre o capital para impedi-los de
acumular mais.
O poder é um corolário da
riqueza. É derivado de quanto capital você controla e dos relacionamentos que
você constrói com outras pessoas ricas. Em um futuro de grande desigualdade de
renda, seria possível esperar uma concentração muito maior de poder nas mesmas
mãos (antigas) de antes. Isso pode ser uma benção para o financiamento estatal
de rampas de acesso para cadeiras de rodas, mas um mar de líderes ricos e de
pele enrugada dificilmente representará a população total ou se alinhará com
seus interesses. O que acontece quando um presidente norte-americano de 130
anos determina o orçamento de educação para os alunos que não se aposentam até
um século depois?
Isso pode soar como o prelúdio de
uma revolta do tipo “Os filhos do Comum contra os Centenários”, mas o aspecto
insidioso da desigualdade de idade — como o daa maioria das desigualdades — é
que nós a apoiamos tanto quanto a criticamos. Fazemos o possível para melhorar
nossa posição pessoal, enquanto simultaneamente tentamos lutar porum princípio
maior. E é muito possível que nos lamentemos sobre a desigualdade, porém sejamos
impotentes para revertê-la, porque estaremos comprando todos os Kylie Kollagen
Kits que pudermos ,e as pessoas com poder de enfrentar a situação serão as
mesmas ameaçadas pela revolta.
De todos os bilionários que nos
governaram ao longo da história recente, são os bilionários da tecnologia, em
particular, que não professam nada além de boas intenções quando falam sobre os
problemas que eles próprios criaram. Pode-se imaginar os Centenários da
tecnologia — conhecidos por seus fortes valores e declarações de missão —
fazendo declarações grandiosas sobre o quão profundamente entristecidos estão
com a disparidade de idade. Eles podem fazer promessas para combatê-la; eles
vão encomendar pesquisas para explorar suas causas. Talvez eles até doem
desodorante de célula-tronco ou o Neural
Lace de Elon Musk em cidades de baixa renda.
De fato, podemos imaginar que um
período marcado por grande desigualdade de idade, riqueza e poder também será
marcado por grandes ações na filantropia, permitindo que os Centenários da
tecnologia apresentem-se como forças do Bem. É claro que grande parte de suas
doações pode estar concentrada em aliviar as pressões que seus próprios
negócios de saúde e extensão de vida criaram. As comunidades de aposentados e
os centros de cuidados paliativos poderiam proliferar em número, com o nome do
doador do Centenário estampado na entrada, servindo como um lembrete constante
de sua generosidade. Lembre-se de tudo isso em seus momentos finais, enquanto
eles te levam para o Ambulance Airtube de Travis Kalanick [o fundador do Uber] e
você vê sua cidade – agora conhecida como Zucker Berg — zunindo adiante, a cara
enrugada de homens brancos e enrugados olhando para baixo com benevolência.
Lembre-se de que foi você quem comprou os suplementos e os tratamentos; foi
você quem devorou imagens dos rostos de plástico dos Centenários e corpos
alegres de 120 anos de idade, pulando em um campo de golfe.
Foi você quem quis viver para
sempre. Os Centanários estavam lá para tornar tudo isso possível. Tudo o que
aconteceu depois estava fora do controle deles. Um “efeito colateral”, se
quiser, da imortalidade.
1Sem
falar no Brasil: o Mapa da Desigualdade revela que num único município (São
Paulo), a diferença de expectativa de vida chega
a 23,7 anos – quando se compara, por exemplo, os elegantes Jardins com
o singelo Jardim Ângela [Nota da Tradução].
Na imagem: Vitalik Buterin,
bilionário fundador do Ethereum e estimulador da pesquisa de longeividade
ampliada, retratado em paródia de imagem do Deus cristão, com uma Lamborghini
em mãos
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