Dos direitos das pessoas LGBTI
aos refugiados, passando pelo combate à violência de género, Portugal anda
depressa na consagração legal dos direitos humanos. Mas, num país em que a
pobreza ameaça 17,3% da população, a lei não chega para evitar atropelos
Portugal pode ser considerado um
bom exemplo na consagração de direitos humanos fundamentais? “É um aluno
exemplar na transposição de recomendações e directivas comunitárias, mas falha
muitas vezes no passo seguinte que é a concretização desses direitos. E o mundo
não se muda só com legislação”, responde Pedro Neves, director executivo da
Amnistia Internacional Portugal.
“Portugal é institucionalmente o
melhor aluno da Europa mas depois falha quando tem de praticar o que aprendeu”,
reforça Pedro Neves, para quem qualquer tentativa de situar Portugal na lista
dos 28 estados-membros da União Europeia em termos de respeito pelos direitos
humanos obriga a este exercício de relativização, consoante os direitos de que
estejamos a falar. Em direitos fundamentais, poder-se-á considerar exemplar um
país que soma 25.762
famílias em situação de grave carência habitacional? “Que sociedade é esta
que permite que pessoas que trabalham e trabalharam a vida inteira e a tempo
inteiro não conseguem sair da pobreza?”, questiona ainda o director executivo
da Amnistia Internacional.
Na Constituição, o artigo 65º
estabelece o direito inequívoco de todos “a uma habitação de dimensão adequada,
em condições de higiene, conforto e que preserve a intimidade pessoal e a
privacidade familiar”. E não vale a pena enumerar os concertos em que Sérgio Godinho
pôs multidões a reivindicar “a paz, o pão, habitação, saúde, educação” como
pressupostos fundamentais da liberdade para percebermos o quão pouco anacrónica
a reivindicação se tornou, apesar de a letra ter sido escrita em 1974. Ainda há
menos de dez anos se lembrava, no Parlamento, que a pobreza “conduz à violação
dos direitos humanos”. Porém, uma década depois, o poder político continua a
mastigar o projecto de desenhar
uma estratégia nacional contra a pobreza, que, segundo os dados mais
recentes do Instituto Nacional de Estatística, continua a ameaçar (apesar do
desagravamento em um ponto percentual) os 17,3% da população portuguesa que
sobrevivem com menos de 468 euros por mês.
Mas pode o país ser reduzido a
estes atropelos aos direitos fundamentais que enxameiam as páginas de jornais e
fazem esticar os telejornais de todos os dias? De todo. Noutras esferas, no que
toca a direitos das pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e
intersexuais), por exemplo, Portugal “possui das legislações mais avançadas do
mundo”. Foi, aliás, o segundo país do mundo a proibir
os tratamentos farmacológicos e as intervenções cirúrgicas não necessárias a
menores intersexo até que estes manifestem a sua identidade de género.
Mas já iremos ao copo meio-cheio.
Por enquanto, o director executivo da Amnistia Internacional continua no
exercício de descobrir as dissonâncias entre um quadro legislativo avançado e
uma realidade nem sempre condizente, nomeadamente no que toca às questões de
género. “Embora esteja a ser debatida e planeada a lei da igualdade salarial, o
país continua a falhar em termos de protecção das mulheres, tendo ficado para
trás na correcta transposição da Convenção de Istambul”.
Nem de propósito, a Convenção de
Istambul funciona como um bom exemplo da celeridade com que Portugal se
predispõe a transpor para o seu quadro legal as orientações da União Europeia
mas depois falha na concretização dos seus princípios. O nosso país foi o
primeiro estado-membro da União Europeia a ratificar aquele instrumento
jurídico do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra
as mulheres e a violência doméstica. Visando eliminar e criminalizar todas as
formas de violência e de discriminação contra a mulher, a Convenção de Istambul
vigora entre nós desde Agosto de 2014.
Mas só agora, mais de quatro anos
depois, é que o Parlamento discute a possibilidade de adequar o Código Penal
português a alguns dos princípios explanados naquele instrumento internacional,
nomeadamente no sentido de considerar violação “todo e qualquer acto sexual sem
consentimento”, deixando o crime de violação de assentar na existência de
violência que implique o uso de força ou coacção sobre a vítima, conforme
resulta da proposta
apresentada pelo PAN (Pessoas-Animais-Natureza) no Parlamento. Em
Outubro, refira-se, a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa
Monteiro, tinha-se já referido à intenção
do Governo alterar as leis sobre crimes sexuais no sentido de acomodar
o disposto na Convenção de Istambul.
E foi muito por conta deste
atraso que o país assistiu escandalizado aos dois acórdãos judiciais emanados
pelo Tribunal da Relação do Porto. “Num, o juiz desvalorizou
a violência doméstica com base em razões [o adultério] que nada tinham
que ver com a situação. Noutro, sobre uma rapariga violada enquanto estava
inconsciente, o acto
hediondo da violação foi desvalorizado porque a rapariga não resistiu e
não disse que não”, recorda o responsável da Amnistia Internacional Portugal.
De volta ao quadro geral dos
direitos humanos, e à espécie de esquizofrenia existente entre o afã
legislativo e a prática quotidiana, Portugal poder-se-ia posicionar no último
lugar do ranking se o critério preponderante fosse a proporção de
refugiados acolhidos em termos per capita, ainda na opinião de Pedro
Neves, que recorre, curiosamente, a um assunto relativamente ao qual Portugal
tem sido apontado como exemplo.
“Internamente, temos ouvido o
primeiro-ministro dizer-se disponível para acolher refugiados, mas, no campo da
diplomacia internacional, e numa altura em que a Europa vive um tempo de
clivagem, com muitos governos eleitos a assumirem-se contra a ajuda humanitária
a refugiados, essa voz não é tão assertiva. E, por outro lado, quando
os refugiados chegam cá, a disponibilização de recursos humanos e materiais não
é suficiente”, critica Pedro Neves, para apontar os exemplos concretos do
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e do Alto-Comissariado para as Migrações,
“que não viram aumentados os recursos humanos e materiais” para garantir que o
entrosamento efectivo dos refugiados acompanha o fervor discursivo.
E o país podia fazer muito mais.
"Portugal é um país de gente tolerante, aberta ao outro e a novas
formas de estar, por causa dos portugueses que emigraram mas também dos
imigrantes que foram chegando", caracteriza Pedro Neves, para quem, "num
país com uma natureza cultural tão expansiva", não seria difícil
tornarmo-nos "num oásis dos direitos humanos".
Nesta perspectiva, o historiador
e ex-deputado no Parlamento europeu, Rui Tavares, aponta a Portugal "um
problema de falta de liderança política em determinadas áreas que têm
que ver com o reforço do espaço de liberdade e de direitos fundamentais na
Europa. "Vê-se uma certa ausência da vontade política necessária, ou, pelo
menos, uma ausência de entusiasmo e de empenho político, e, eventualmente, de
uma visão da importância da construção de um direito europeu de liberdades e de
direitos fundamentais", lamenta.
E, lembrando que a Carta dos
Direitos Fundamentais continua à espera de ser 'aberta' e 'acordada', o
fundador do partido Livre, considera que Portugal poderia aproveitar o facto de
se preparar para assumir a presidência da União Europeia, em 2021, para liderar
essa reivindicação. "A Carta dos Direitos Fundamentais é um documento
inovador, muito avançado na protecção dos direitos - tem a maior parte dos direitos
constitucionais que os portugueses prezam -, e, tendo entrado em vigor em 2009,
com o Tratado de Lisboa, continua por aplicar, muito por causa do artigo 51º
que limita a aplicação dos direitos da carta às matérias que são da ordem
da União Europeia. E acho que Portugal poderia ter um papel muito mais
interventivo, liderando uma iniciativa em relação à aplicação da carta",
defende.
"À frente da Europa toda"
De volta ao copo meio-cheio, a
aprovação, em meados deste ano, da lei que reconhece o direito à
autodeterminação da identidade de género, pôs Portugal “à frente da Europa
toda” no reconhecimento dos direitos da comunidade LGBTI, aponta Marta Ramos,
directora executiva da Ilga Portugal, uma instituição particular de
solidariedade social com intervenção na promoção dos direitos da comunidade
lésbica, gay, bissexual, transexual e intersexo.
Portugal já se situava num
honroso 6º lugar na lista de países da Europa que mais protegem os direitos das
pessoas LGBTI, segundo o ranking elaborado pela Ilga Europa, num lugar
conseguido muito à custa das conquistas legislativas dos últimos anos. Entre
estas, Marta destaca “o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo
e o respectivo direito à adopção, e a consagração expressa no Código do
Trabalho da identidade de género no âmbito do direito à igualdade no acesso a
emprego e no trabalho”.
Mais recentemente, em 2016, a procriação
medicamente assistida tornou-se igualmente possível para mulheres sós ou
casadas com outras mulheres. E, em Agosto, entrou em vigor a lei nº 38/2018 que abriu as portas à
possibilidade de mudança de menção do sexo no registo civil e da consequente
alteração do nome próprio logo a partir dos 16 anos de idade, mediante
relatório médico que ateste que o pedido é feito de forma livre e esclarecida.
O pedido passou a poder ser feito em qualquer conservatória do registo civil,
sem necessidade de cirurgia de reatribuição do sexo.
Mas a lei foi ainda mais longe:
proibiu todo e qualquer tratamento e intervenções cirúrgicas e farmacológicas
que interfiram com as características sexuais das pessoas menores intersexo
“até ao momento em que se manifeste a sua identidade de género”. Com este
artigo, “Portugal tornou-se no segundo país do mundo – o primeiro é Malta - a
banir as cirurgias não necessárias em crianças intersexo”, sublinha Marta
Ramos.
Quando a Agência dos Direitos
Fundamentais, um organismo independente, financiado pelo Orçamento da União
Europeia, para proporcionar aos estados-membros assistência e competências no
domínio dos direitos fundamentais olhou para a realidade portuguesa para sentir pulso aos
problemas relacionados com homofobia e discriminação com base na
orientação sexual e na identidade de género, várias destas conquistas no plano
legal estavam ainda por fazer.
Ainda assim, o balanço era
claramente positivo, com Portugal a destacar-se no esforço de dar
reconhecimento legal à proibição da discriminação com base na orientação sexual
e identidade de género. Apesar disso, notava-se então, como ainda hoje, uma
insuficiente protecção legal contra este tipo de discriminação no que diz
respeito a bens e serviços. “O escasso número de casos envolvendo pessoas LGBT
pode indicar eventuais dificuldades destas pessoas no acesso à lei e aos
tribunais”, escreviam os relatores, denunciando ainda o que consideravam ser a
escassez de políticas públicas orientadas especificamente para a luta contra a
homofobia e contra a discriminação em razão da orientação sexual e da
identidade género.
Feitas as conquistas “básicas e
essenciais”, Marta Ramos aponta o muito que ainda está por fazer em termos de
mudança de mentalidades. “Muitas destas conquistas resultaram de recomendações
ou de directivas comunitárias que Portugal estava obrigado a acatar. O
reconhecimento legal dos direitos foi fundamental, mas uma sociedade mede-se
pelas suas práticas do dia-a-dia, pela convivência, mais do que pelo plano
legal. E sabemos que a prática não está a acompanhar o plano legal. Se houvesse
um ranking que medisse o respeito e a igualdade em termos sociais,
Portugal estaria muito abaixo do 6º lugar”, lamenta Marta Ramos.
Porque “os direitos, para serem
efectivados, precisam de educação”, a directora executiva da Ilga aponta a
necessidade de políticas de educação sobre estas matérias a começar pelo
pré-escolar. “A informação que nos chega mostra que a
maioria das pessoas ainda encontra problemas por gostar de quem gosta. As
pessoas ainda têm necessidade de se esconderem, desde logo da família e dos
locais de trabalho que continuam a não estar preparados para acolher a
diversidade”, denuncia, dizendo-se esperançada de que “os novos programas do
Governo de educação para a cidadania impulsionem a mudança nas escolas”. Não à
toa, uma tese de doutoramento cujos resultados foram divulgados em Outubro
mostrava que, entre uma amostra de quase 500 estudantes, a maioria se sentia
menos predisposta a ajudar vítimas de bullying homofóbico. Porquê? “Há um certo
médio de contágio social”, respondeu a autora do estudo, Raquel António, isto
é, de serem eles próprios tomados por gays ou lésbicas.
Natália Faria | Público
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