quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

“Portugal é o melhor aluno da Europa mas falha quando tem de praticar o que aprendeu”


Dos direitos das pessoas LGBTI aos refugiados, passando pelo combate à violência de género, Portugal anda depressa na consagração legal dos direitos humanos. Mas, num país em que a pobreza ameaça 17,3% da população, a lei não chega para evitar atropelos

Portugal pode ser considerado um bom exemplo na consagração de direitos humanos fundamentais? “É um aluno exemplar na transposição de recomendações e directivas comunitárias, mas falha muitas vezes no passo seguinte que é a concretização desses direitos. E o mundo não se muda só com legislação”, responde Pedro Neves, director executivo da Amnistia Internacional Portugal.

“Portugal é institucionalmente o melhor aluno da Europa mas depois falha quando tem de praticar o que aprendeu”, reforça Pedro Neves, para quem qualquer tentativa de situar Portugal na lista dos 28 estados-membros da União Europeia em termos de respeito pelos direitos humanos obriga a este exercício de relativização, consoante os direitos de que estejamos a falar. Em direitos fundamentais, poder-se-á considerar exemplar um país que soma 25.762 famílias em situação de grave carência habitacional? “Que sociedade é esta que permite que pessoas que trabalham e trabalharam a vida inteira e a tempo inteiro não conseguem sair da pobreza?”, questiona ainda o director executivo da Amnistia Internacional.

Na Constituição, o artigo 65º estabelece o direito inequívoco de todos “a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene, conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. E não vale a pena enumerar os concertos em que Sérgio Godinho pôs multidões a reivindicar “a paz, o pão, habitação, saúde, educação” como pressupostos fundamentais da liberdade para percebermos o quão pouco anacrónica a reivindicação se tornou, apesar de a letra ter sido escrita em 1974. Ainda há menos de dez anos se lembrava, no Parlamento, que a pobreza “conduz à violação dos direitos humanos”. Porém, uma década depois, o poder político continua a mastigar o projecto de desenhar uma estratégia nacional contra a pobreza, que, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística, continua a ameaçar (apesar do desagravamento em um ponto percentual) os 17,3% da população portuguesa que sobrevivem com menos de 468 euros por mês.

Mas pode o país ser reduzido a estes atropelos aos direitos fundamentais que enxameiam as páginas de jornais e fazem esticar os telejornais de todos os dias? De todo. Noutras esferas, no que toca a direitos das pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexuais), por exemplo, Portugal “possui das legislações mais avançadas do mundo”. Foi, aliás, o segundo país do mundo a proibir os tratamentos farmacológicos e as intervenções cirúrgicas não necessárias a menores intersexo até que estes manifestem a sua identidade de género.

Mas já iremos ao copo meio-cheio. Por enquanto, o director executivo da Amnistia Internacional continua no exercício de descobrir as dissonâncias entre um quadro legislativo avançado e uma realidade nem sempre condizente, nomeadamente no que toca às questões de género. “Embora esteja a ser debatida e planeada a lei da igualdade salarial, o país continua a falhar em termos de protecção das mulheres, tendo ficado para trás na correcta transposição da Convenção de Istambul”.

Nem de propósito, a Convenção de Istambul funciona como um bom exemplo da celeridade com que Portugal se predispõe a transpor para o seu quadro legal as orientações da União Europeia mas depois falha na concretização dos seus princípios. O nosso país foi o primeiro estado-membro da União Europeia a ratificar aquele instrumento jurídico do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica. Visando eliminar e criminalizar todas as formas de violência e de discriminação contra a mulher, a Convenção de Istambul vigora entre nós desde Agosto de 2014.

Mas só agora, mais de quatro anos depois, é que o Parlamento discute a possibilidade de adequar o Código Penal português a alguns dos princípios explanados naquele instrumento internacional, nomeadamente no sentido de considerar violação “todo e qualquer acto sexual sem consentimento”, deixando o crime de violação de assentar na existência de violência que implique o uso de força ou coacção sobre a vítima, conforme resulta da proposta apresentada pelo PAN (Pessoas-Animais-Natureza) no Parlamento. Em Outubro, refira-se, a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, tinha-se já referido à intenção do Governo alterar as leis sobre crimes sexuais no sentido de acomodar o disposto na Convenção de Istambul.

E foi muito por conta deste atraso que o país assistiu escandalizado aos dois acórdãos judiciais emanados pelo Tribunal da Relação do Porto. “Num, o juiz desvalorizou a violência doméstica com base em razões [o adultério] que nada tinham que ver com a situação. Noutro, sobre uma rapariga violada enquanto estava inconsciente, o acto hediondo da violação foi desvalorizado porque a rapariga não resistiu e não disse que não”, recorda o responsável da Amnistia Internacional Portugal.

De volta ao quadro geral dos direitos humanos, e à espécie de esquizofrenia existente entre o afã legislativo e a prática quotidiana, Portugal poder-se-ia posicionar no último lugar do ranking se o critério preponderante fosse a proporção de refugiados acolhidos em termos per capita, ainda na opinião de Pedro Neves, que recorre, curiosamente, a um assunto relativamente ao qual Portugal tem sido apontado como exemplo.

“Internamente, temos ouvido o primeiro-ministro dizer-se disponível para acolher refugiados, mas, no campo da diplomacia internacional, e numa altura em que a Europa vive um tempo de clivagem, com muitos governos eleitos a assumirem-se contra a ajuda humanitária a refugiados, essa voz não é tão assertiva. E, por outro lado, quando os refugiados chegam cá, a disponibilização de recursos humanos e materiais não é suficiente”, critica Pedro Neves, para apontar os exemplos concretos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e do Alto-Comissariado para as Migrações, “que não viram aumentados os recursos humanos e materiais” para garantir que o entrosamento efectivo dos refugiados acompanha o fervor discursivo.

E o país podia fazer muito mais. "Portugal é um país de gente tolerante, aberta ao outro e a novas formas de estar, por causa dos portugueses que emigraram mas também dos imigrantes que foram chegando", caracteriza Pedro Neves, para quem, "num país com uma natureza cultural tão expansiva", não seria difícil tornarmo-nos "num oásis dos direitos humanos". 

Nesta perspectiva, o historiador e ex-deputado no Parlamento europeu, Rui Tavares, aponta a Portugal "um problema de falta de liderança política em determinadas áreas que têm que ver com o reforço do espaço de liberdade e de direitos fundamentais na Europa. "Vê-se uma certa ausência da vontade política necessária, ou, pelo menos, uma ausência de entusiasmo e de empenho político, e, eventualmente, de uma visão da importância da construção de um direito europeu de liberdades e de direitos fundamentais", lamenta.

E, lembrando que a Carta dos Direitos Fundamentais continua à espera de ser 'aberta' e 'acordada', o fundador do partido Livre, considera que Portugal poderia aproveitar o facto de se preparar para assumir a presidência da União Europeia, em 2021, para liderar essa reivindicação. "A Carta dos Direitos Fundamentais é um documento inovador, muito avançado na protecção dos direitos - tem a maior parte dos direitos constitucionais que os portugueses prezam -, e, tendo entrado em vigor em 2009, com o Tratado de Lisboa, continua por aplicar, muito por causa do artigo 51º que limita a aplicação dos direitos da carta às matérias que são da ordem da União Europeia. E acho que Portugal poderia ter um papel muito mais interventivo, liderando uma iniciativa em relação à aplicação da carta", defende. 

"À frente da Europa toda"

De volta ao copo meio-cheio, a aprovação, em meados deste ano, da lei que reconhece o direito à autodeterminação da identidade de género, pôs Portugal “à frente da Europa toda” no reconhecimento dos direitos da comunidade LGBTI, aponta Marta Ramos, directora executiva da Ilga Portugal, uma instituição particular de solidariedade social com intervenção na promoção dos direitos da comunidade lésbica, gay, bissexual, transexual e intersexo.

Portugal já se situava num honroso 6º lugar na lista de países da Europa que mais protegem os direitos das pessoas LGBTI, segundo o ranking elaborado pela Ilga Europa, num lugar conseguido muito à custa das conquistas legislativas dos últimos anos. Entre estas, Marta destaca “o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o respectivo direito à adopção, e a consagração expressa no Código do Trabalho da identidade de género no âmbito do direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho”.

Mais recentemente, em 2016, a procriação medicamente assistida tornou-se igualmente possível para mulheres sós ou casadas com outras mulheres. E, em Agosto, entrou em vigor a lei nº 38/2018 que abriu as portas à possibilidade de mudança de menção do sexo no registo civil e da consequente alteração do nome próprio logo a partir dos 16 anos de idade, mediante relatório médico que ateste que o pedido é feito de forma livre e esclarecida. O pedido passou a poder ser feito em qualquer conservatória do registo civil, sem necessidade de cirurgia de reatribuição do sexo.

Mas a lei foi ainda mais longe: proibiu todo e qualquer tratamento e intervenções cirúrgicas e farmacológicas que interfiram com as características sexuais das pessoas menores intersexo “até ao momento em que se manifeste a sua identidade de género”. Com este artigo, “Portugal tornou-se no segundo país do mundo – o primeiro é Malta - a banir as cirurgias não necessárias em crianças intersexo”, sublinha Marta Ramos.

Quando a Agência dos Direitos Fundamentais, um organismo independente, financiado pelo Orçamento da União Europeia, para proporcionar aos estados-membros assistência e competências no domínio dos direitos fundamentais olhou para a realidade portuguesa para sentir pulso aos problemas relacionados com homofobia e discriminação com base na orientação sexual e na identidade de género, várias destas conquistas no plano legal estavam ainda por fazer.

Ainda assim, o balanço era claramente positivo, com Portugal a destacar-se no esforço de dar reconhecimento legal à proibição da discriminação com base na orientação sexual e identidade de género. Apesar disso, notava-se então, como ainda hoje, uma insuficiente protecção legal contra este tipo de discriminação no que diz respeito a bens e serviços. “O escasso número de casos envolvendo pessoas LGBT pode indicar eventuais dificuldades destas pessoas no acesso à lei e aos tribunais”, escreviam os relatores, denunciando ainda o que consideravam ser a escassez de políticas públicas orientadas especificamente para a luta contra a homofobia e contra a discriminação em razão da orientação sexual e da identidade género.

Feitas as conquistas “básicas e essenciais”, Marta Ramos aponta o muito que ainda está por fazer em termos de mudança de mentalidades. “Muitas destas conquistas resultaram de recomendações ou de directivas comunitárias que Portugal estava obrigado a acatar. O reconhecimento legal dos direitos foi fundamental, mas uma sociedade mede-se pelas suas práticas do dia-a-dia, pela convivência, mais do que pelo plano legal. E sabemos que a prática não está a acompanhar o plano legal. Se houvesse um ranking que medisse o respeito e a igualdade em termos sociais, Portugal estaria muito abaixo do 6º lugar”, lamenta Marta Ramos.

Porque “os direitos, para serem efectivados, precisam de educação”, a directora executiva da Ilga aponta a necessidade de políticas de educação sobre estas matérias a começar pelo pré-escolar. “A informação que nos chega mostra que a maioria das pessoas ainda encontra problemas por gostar de quem gosta. As pessoas ainda têm necessidade de se esconderem, desde logo da família e dos locais de trabalho que continuam a não estar preparados para acolher a diversidade”, denuncia, dizendo-se esperançada de que “os novos programas do Governo de educação para a cidadania impulsionem a mudança nas escolas”. Não à toa, uma tese de doutoramento cujos resultados foram divulgados em Outubro mostrava que, entre uma amostra de quase 500 estudantes, a maioria se sentia menos predisposta a ajudar vítimas de bullying homofóbico. Porquê? “Há um certo médio de contágio social”, respondeu a autora do estudo, Raquel António, isto é, de serem eles próprios tomados por gays ou lésbicas. 

Natália Faria | Público

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