Sob o poder salazarista, Portugal
perseguiu opositores, torturou civis nas colónias portuguesas e fechou
fronteiras até a década de 1950, quando o regime já entrava em crise
Opera Mundi publica, nesta
semana, um especial sobre fascismo - contado pelos próprios fascistas. São
discursos e entrevistas de Adolf Hitler (Alemanha), António Salazar (Portugal),
Francisco Franco (Espanha), Rafael Videla (Argentina), Benito Mussolini (Itália),
Emílio Garrastazu Médici (Brasil) e Philippe Pétain (França) que mostram como
estas figuras pensavam as sociedades que governavam e justificavam os atos de
seus regimes.
António de Oliveira Salazar
(1889-1979), nasceu em
Santa Comba Dão , Portugal, em uma família simples de
trabalhadores rurais. Na juventude, fez seu primeiro contato com os estudos de
ciências econômicas e financeiras, até, em 1914, ingressar no curso de Direito
na Universidade de Coimbra. Próximo a assuntos políticos, foi eleito deputado
em 1921, no momento em que a república vivia um período de instabilidade. Em
1926, Portugal sofre um golpe militar que põe fim ao governo republicano e
Salazar assume a pasta das Finanças. Em 1932 o regime chega ao fim e o Salazar
assume como primeiro ministro, cargo que viria a ocupar por 36 anos, durante o
período denominado Estado Novo Português.
Assim que assumiu, o ditador
estabeleceu uma nova Constituição e determinou a legalidade de um único
partido. Sob o poder salazarista, Portugal perseguiu opositores, torturou civis
nas colônias portuguesas e fechou fronteiras até a década de 1950, quando o
regime já entrava em crise. A
partir dos anos 1960, a
reação das colônias ao domínio português encabeça a derrocada do Estado Novo,
quando Lisboa perde territórios reconquistados pela Índia e enfrenta uma série
de conflitos de independência em Angola e Moçambique. Salazar deixa o cargo em
1968 após sofrer um derrame. Com a ditadura em franco enfraquecimento, morre
dois anos depois, sendo sucedido por Marcelo Caetano, que conduziu o governo em
declínio até a Revolução dos Cravos, em 1974, que encerrou os 48 anos de
ditadura, restabeleceu o pluripartidarismo e acabou com o instrumento de
repressão do antigo governo.
Três anos antes de deixar a
politica por problemas de saúde, após anos de liderança autoritária e com o
regime próximo do fim, Salazar discursou durante a posse da Comissão Executiva
da União Nacional, em 18 de Fevereiro de 1965. Em uma espécie de panorama de
seu governo, o discurso "Erros e Fracassos na era política"
reafirma a natureza fascista dos ideais salazaristas.
Erros e fracassos da era política
(18/02/1965)
Meus Senhores:
Tomou posse nova Comissão
Executiva da União Nacional e eu dispenso‑me de louvar os que saem e de
apresentar os que entram. Embora coisa devida e justa sabe-se que é sempre
assim, o que tira às palavras parte do seu valor. Peço‑lhes por isso desculpa
que me será concedida, havendo coisas de alguma importância a dizer.
I
A reorganização faz-se num ano
crucial da vida política, não porque terminem as guerras do Ultramar, pois que
os inimigos que as fazem e os que as sustentam, declaram, quererem continuar a
perturbar a vida e o trabalho alheios; não porque tenha de haver eleições de
deputados; ainda que relevantes como são sempre; mas especialmente porque novo
corpo eleitoral tem de reunir-se para escolha do chefe do Estado e de toda a
Nação portuguesa. Seja qual for a evolução dos acontecimentos, não pode haver
dúvida de que é nos sete anos a seguir que por imperativos naturais ou
políticos se não pode fugir a opções delicadas, e, embora não forçosamente a
revisões, à reflexão ponderada do regime em vigor. E é nas mãos do chefe do Estado que virão
a pesar as maiores dificuldades e da sua consciência que dependerão as mais
graves decisões.
O que é um regime político? Um
regime político é a definição dos órgãos da soberania, do modo como se
constituem, participam do poder e colaboram para o bem comum da sociedade
civil. É também a enumeração daqueles direitos que as leis hão de respeitar no
homem e, no nosso caso, ainda a enunciação de princípios morais, sociais e
econômicos que se julgam úteis para dar estabilidade à vida do conjunto humano
e imprimir à vida nacional uma finalidade. O que quer dizer que um regime pode
ser também uma política e não apenas uma constituição. O nosso é uma coisa e
outra.
Ora nós quisemos dar ao país,
assolado pelas devastações da sua anarquia, um regime novo; mas muitos dos
nossos homens públicos, educados na filosofia política do século XIX, têm-nos
considerado sempre um governo à espera de eleições “livres” para uma
“assembleia constituinte” que vote “nova Constituição” e com ela garanta ao
povo “todas as felicidades”. De modo que se verifica o seguinte: abolidas neste
País as instituições tradicionais, não se encontra de 1820 a 1926, através das
Constituições, Carta Constitucional e Atos Adicionais à Carta, entre
revoluções, golpes de Estado, ditaduras ou vida constitucional, não se encontra
regime, dizia, de que possa afirmar-se ter vivido ao menos os quarenta anos que
para o ano perfaremos. Ao mesmo tempo, nenhum foi tão estável, tão pacífico e
eficiente como o atual. E daí provir o absurdo de o provisório ser mais
duradouro que o definitivo e o temporário mais estável que o consagrado para a
eternidade.
A mim o que mais me admira é não
se haver estudado a razão desta sorte de contrassenso. A vida das sociedades
humanas está sujeita a evolução, embora mais lenta do que geralmente se cuida,
quando atentamos nas suas estruturas fundamentais. Acontece, sim, que à superfície
de vez em quando se levantam ondas que mais chamaríamos modas ou efervescências
de opinião, destinadas a cair e a acalmar-se, se não se lhes dá a razão de ser
da própria vida política, como tem sido muitas vezes o caso. De modo que o
essencial é descobrir as linhas mestras da vida nacional que possam adaptar-se,
sem se quebrarem, às contingências dos tempos, e definir a orientação que se
lhes há de imprimir, e muitas vezes não é mais que a linha de continuidade de
um sentimento coletivo. Assim os regimes se firmam e perduram na medida em que
refletem os homens e as Nações - tão diversas umas das outras! - perfilham as
aspirações comuns e suprem mesmo deficiências da coletividade.
Se a experiência vale alguma
coisa, devíamos tirar daqui uma ilação. A força pode fazer revoluções, mas não
pode só por si mantê-las sem o apoio da consciência nacional. A ideia de que a
Nação está hoje cloroformizada pelo medo ou por uma espécie de avitaminose
política é incompatível com o entusiasmo e a confiança com que se bate em três
territórios ultramarinos. Mais correto é pensar que, independentemente dos
governantes, sujeitos a deslizes e deficiências na orientação dos negócios
públicos, se encontrou uma fórmula conforme ao modo de ser da coletividade e
que a todos permite viver em paz e progredir. É de aconselhar que não se
substitua enquanto se revelar eficaz e esteja confiada a quem na mais alta
magistratura a possa defender e fazer cumprir.
Estas considerações deviam bastar
para serenar os ânimos inquietos, exageradamente preocupados com as eleições de
deputados que este ano se hão de também realizar.
A União Nacional apresentará,
como de costume, as suas listas e é de crer que elementos políticos de oposição
ao regime, depois de alguns terem aproveitado o período eleitoral na criação de
um clima subversivo, também apelem para o sufrágio popular. Mas terão aqui
dificuldades, porque representam o passado, e este, se infeliz, não dá
garantias suficientes de aliciar o crédito público. Alguns poderão
apresentar-se conto a radiosa esperança do futuro, mas também estes têm
“passado”, ainda que fora de Portugal, e o comunismo é neste País tão
antinacional e anticristão que uma Nação que se bate a defender a sua
integridade territorial e moral não o apoia, não o suporta, não pode
reconhecê-lo dos seus.
Não há mesmo possibilidade de as
oposições gizarem programas para o futuro imediato, salvo o que nós próprios
temos definido já. Há poucos dias tive a oportunidade de ler o documento em que
numerosos democratas solicitavam autorização para a celebração, de prever
ruidosa, - do 31 de janeiro na cidade do Porto. Na exposição faz-se acerada
crítica da Administração e do Governo, apontando os vários problemas em que a
atuação ou se verificava errada, ou claramente deficiente. E os autores não
tiveram trabalho a documentar os seus assertos, pois se limitaram, para cada
assunto, a citar as passagens correspondentes de discursos proferidos na
Assembleia Nacional. Nós conhecemos os riscos das transcrições fora do
contexto, mas posso glosar o facto em meu proveito. Há anos já o Doutor Marcelo
Caetano, então ministro da Presidência, fazia notar encontrarem-se mais
diferenças ideológicas entre os membros do Governo do que algumas vezes entre
representantes de partidos diferentes. Foi exata a observação e o facto
apontado que a confirma quer dizer duas coisas: a primeira é que, salvaguardada
a unidade no essencial, não nos afrontam as correntes de pensamento que se
manifestem acerca dos problemas nacionais e das suas possíveis soluções; a
segunda é que entre nós o deputado é livre a discutir e a votar, o que não
acontece nos regimes partidários, em que a disciplina não pode deixar de ser
considerada fator essencial à coesão das forças políticas. Por isso, do outro
lado do regime, os que pretendem combater-nos não dispõem de grandes
possibilidades.
II
Apesar de confiante na
experiência e conhecimentos das pessoas mais diretamente encarregadas da ação
política, não quero deixar de referir-me à atmosfera mundial e doméstica em que
a mesma se desenvolverá.
Vivemos uma época que, apesar de
uma verdadeira explosão científica e correspondente progresso em numerosos
sectores da vida, se apresenta excessivamente perturbada na consciência dos
homens e dos povos. Esta perturbação resulta de se terem rompido, com a Segunda
Grande Guerra, numerosos equilíbrios sobre que assentavam a vida social e as
relações dos Estados, e também das ideias admitidas para a criação da sociedade
futura. O mal vem, portanto, dos factos e das situações criadas e também dos
erros de julgamento e de pensar que nos invadiram e constituem veneno corrosivo
da ação.
Hitler prometia com a sua vitória
a paz para mil anos; perdida a guerra, veio prometê-la a ONU, tanto no seu
ideário como no jogo das suas engrenagens, para prazo indefinido. Pois está
sendo difícil encontrar lugar na terra onde não alastrem guerras e conflitos de
toda a ordem. Ou não soubemos estabelecer e garantir a paz ou estamos
equivocados quando a pensamos para sempre possível entre os homens e as Nações.
Aumentam extraordinariamente no
mundo, com o trabalho e os recursos da técnica, os produtos para as
necessidades do homem; talvez pudéssemos dizer que para todos bastariam, em
nível modesto de vida. Pois a pobreza parece apertar cada vez mais
aflitivamente os homens e há miséria por toda a parte, mesmo no seio dos países
mais desenvolvidos e ricos. E assim parece que ou nos extraviamos no supérfluo
em detrimento do necessário ou o nosso coração se perde nos seus anseios de
generosidade e não descobre a fórmula de distribuição de bens que acabe coara
os pobres na terra - se é possível acabarem na terra os pobres.
Nos povos estabilizados de velha
civilização, nos povos que diríamos a caminho de um equilíbrio sadio ou nos que
iniciam a vida como Estados independentes, repetem-se sem descanso as
invocações democráticas, os apelos à liberdade e à igualdade dos homens, à
soberania do povo, à omnipotência justiceira e criadora do voto, à outorga
deste até ao limite extremo de “um a cada cabeça”. Pois no funcionamento das
instituições políticas, assistimos ao mesmo tempo ao envelhecimento dos
princípios que foram dogmas para nossos avós, e depois de século e meio de
domínio nos legam uma sociedade moral e politicamente degradada. Ao aconselhar,
quase diríamos, ao impor a todos os povos essas instituições e princípios, ou
nos enganamos sobre o absoluto do seu valor ou nos iludimos sobre a
precariedade das soluções que se encontraram para os realizar. Isto é, depois de
milênios o homem conclui não saber governar-se nem poder governar-se sem
respeitar o primado da autoridade e da justiça. Ora estas limitam, só porque
existem, a liberdade e a igualdade; e da trilogia revolucionária de 89 a única invocação que
parecia realizável na sua plenitude - a fraternidade será sacrificada ao
egoísmo dos homens e ao materialismo da vida.
Todos terão notado entrar-se numa
época em, que a política está a ser dirigida pela economia. E, ainda que
estejamos no começo da sua influência, já deslizes se notam de profunda
repercussão na vida das Nações. Está generalizada a ideia, que supomos errada,
de que todas as sociedades humanas podem, começar o seu desenvolvimento
econômico pela industrialização e que o grau de industrialização atingível é
igual em todos os povos. Errou-se na avaliação dos capitais disponíveis para o
desenvolvimento do mundo e nalgumas partes se houve de voltar atrás em
programas ambiciosos de créditos e subsídios, para não se alterar a
estabilidade econômica e financeira dos países doadores. Errou-se ao considerar
que a economia se pode basear não no trabalho próprio, não na técnica própria
ou importada, mas na generosidade alheia e em outros valores morais para que
incessantemente se apela. A luz que intensamente se projeta na vida material,
no desenvolvimento econômico, nos aumentos indefinidos dos níveis de vida vai
deixar na obscuridade toda a parte espiritual do homem, do que me parece dever
esperar-se o tempo materialista por excelência, a época dos povos ricos sem alma.
Disse que a economia tende a
dirigir a política; mas a técnica, essa, quer substituí-la. Ora, sendo a
política indispensável ao governo dos povos, o facto só pode verificar-se se a
técnica for em si mesma uma política. Pergunto se é. O avanço das ciências
aplicadas aos processos de trabalho abriu à produção e ao funcionamento dos
serviços larguíssimas perspectivas. Isso é bem, pelas facilidades que cria e a
maior produtividade que dá ao trabalho, e representa um benefício inestimável,
dados os aumentos da população e a crescente complexidade da vida. É duvidoso
que possa ir além disto; é sobretudo pernicioso que se tenda a converter o
homem em engrenagem da própria técnica, que é para onde se caminha. Até aqui a
política definia o que devia fazer-se; a técnica ensinava como se devia fazer.
Mas se à técnica, conduzida pela ambição do desenvolvimento econômico, mediante
o aumento da produção, cabe pronunciar-se sobre a ordem das realizações e sobre
a orientação da vida social, é ela também competente para traçar uma política,
e nós sabemos bem que ideologia em tais termos a inspira. Tem de salvar-se o
homem, da tentação do abismo. Ele continuará a apresentar-se-nos como ser moral
por excelência, embora com necessidades materiais, o que significa haver outro
mundo, dever haver outro mundo para além daquele que a técnica e a economia
podem criar.
Um dos fenômenos mais
embaraçantes do mundo de hoje é a crise do direito internacional que uns
observam como herança da sua civilização e outros desprezam para se instalarem,
a seu gosto na terra. O alargamento da comunidade internacional não devia
ter-se processado à margem da preparação dos Estados para aceitarem e cumprirem
as normas que regulam por consenso geral ou por convenção expressa a vida de
relação entre as nações; mas seguiu-se orientação oposta com o princípio da
universalidade de todas as organizações internacionais, como se o registo de
admissão equivalesse à garantia de observância das normas que as regulam, o que
está demonstrado não ser exato. A Organização das Nações Unidas tem feito -
pecaminosamente - o máximo por condescender com práticas aberrantes e até com a
defesa de supostos interesses de muitos países irrequietos e ambiciosos contra
os legítimos direitos de outros. Apesar disso, o desequilíbrio das situações
apontadas é de tal ordem que nós o podemos ver na base dos numerosos conflitos
que se espraiam pelo mundo. O princípio de que nas épocas de crise a lei
internacional é para cada Estado a que serve o seu interesse, sem respeito pelo
direito alheio, lançou-nos no caminho das grandes confusões e dos máximos
perigos.
Nesta ligeira referência a factos
e erros da nossa era que a tornam desassossegada e infeliz, não podemos
esquecer o maior de todos - a África em fogo.
O nosso ministro dos Negócios
Estrangeiros tem feito numerosas exposições sobre a política externa nas
quais os problemas de África e do Ultramar português têm tido o merecido
relevo. Eu próprio me recordo de haver exposto com alguma largueza o
enquadramento da nossa política ultramarina tanto na evolução contemporânea de
África como no nosso direito constitucional e na política interna. Não me
repetirei; atualizarei apenas as situações, referindo-me aos factos mais
recentes.
Malgrado os esforços da
Organização da Unidade Africana, são cada vez mais vincadas as divisões e
incompatibilidades que uns aos outros opõem os países daquele Continente.
Vários ao sul do Equador dão mostras de não confiar no desinteresse dos árabes
que se propõem conduzi-los. Por outro lado, estes e alguns outros pretendem
chefiar a revolução africana, não já e apenas no sentido da independência dos
territórios coloniais, mas no da adoção de uma política, ideológica e
economicamente sustentada pelo bloco comunista. A revolução de Zanzibar e a
formação da União com o Tanganica cavaram urna brecha difícil de colmatar.
Particularmente por ali, mas também pela costa ocidental, entram as ideias, os
homens, as armas que se propõem atingir o coração de África, para o domínio
comunista desta.
Como nenhum país africano tem ao
presente desenvolvimento econômico e social que permita a realização do
comunismo, o apoio do referido bloco representará sobretudo a substituição das
posições ocidentais, no que respeita à Europa, e um perigo para a independência
da África no que respeita àquele Continente. O chamado socialismo africano não
pode ser mais no nosso tempo que a expropriação e em muitos casos a espoliação
dos bens, meios de trabalho e empreendimentos que os europeus ali fizeram
surgir. O racismo negro, no que tem de irredutível cora a presença do branco,
pode ser visto como a explosão duma incompatibilidade étnica, um desagravo ou
um desforço, mas, aos olhos de muitos agitadores, é também uma operação
econômica, aliás fracamente reprodutiva pela dificuldade de organizar o trabalho
e manter o nível da produção com, elementos locais.
Assim as nações europeias que
cederam as posições políticas mas entendiam que, apesar de tudo, lhes seria
possível continuar a guiar os povos africanos independentes, pela superioridade
da técnica, pela força do capital emprestado ou gratuitamente cedido, pelo
brilho da cultura, têm de haver-se agora com concorrentes difíceis e estranhos
ao Continente africano que, além de implicações econômicas e políticas,
comprometem a obra ali empreendida.
Há semanas a esta parte elementos
subversivos vindos do Tanganica, diretamente ou através do Malawi, romperam em
Moçambique com as ações anunciadas de sabotagens e morticínios dos portugueses
negros. Tentam que os casos da Guiné e de Angola se repitam ali com o auxílio e
colaboração do Tanganica, embora até ao presente sem intensidade comparável aos
primeiros, porque nos encontraram preparados e atentos. Constituindo aquele
território um Estado membro da Comunidade britânica, somos levados a crer que a
Inglaterra, sem falar em obrigações de alianças, entende não estar em condições
de dizer uma palavra de moderação a um membro da Comunidade que se comporta tão
ao arrepio da correção jurídica e política devida a Estados vizinhos. Em
compensação a defesa contra ataques, protegidos nos países de onde partem,
começa a ser aceite pelas potências, como comportamento normal e inteiramente
justificado.
Este o teor em que vai o mundo e
é dentro deste quadro que havemos de defender os territórios nacionais. É uma
pena que os três milhões e meio de contos gastos anualmente nesta defesa, além
dos muitos centos de milhares que as grandes Províncias despendem com o mesmo
fim, não possam ser aplicados aqui e lá em estradas, portos, escolas,
hospitais, aproveitamento de terras, instalação de indústrias ou exploração de
minas. Com tais somas se podia fazer a relativa felicidade de muita gente em
vez de lhe perturbar e sacrificar a vida, alimentando a - vaidade de ideólogos
ou de aventureiros que um dia sonharam com impérios afinal inacessíveis às suas
ambições.
Estas importâncias assim gastas
nas províncias ultramarinas não serão mal-empregadas? O problema não pode
pôr-se-nos assim, mas só em face da imperiosidade do dever político e das
possibilidades nacionais. O cumprimento do dever não tem de ser contabilizado;
as possibilidades são as do nosso trabalho que, se tiver de ser mais penoso e
longo, o será sem hesitações.
Sei que em espíritos fracos o
inimigo instila um veneno subtil com afirmar que estes problemas não têm
solução militar e só política e que todo o prolongamento da luta é ruinoso para
a Fazenda e inútil para a Nação. Eu responderei que o terrorismo que somos
obrigados a combater não é a explosão do sentimento de povos que, não, fazendo
parte de uma nação, conscientemente aspirem à independência, mas tão-só de
elementos subversivos, estranhos na sua generalidade aos territórios, pagos por
potências estrangeiras, para fins da sua própria política. Como elementos
alheios à coletividade nacional estiolar-se-ão no momento de lhes ser recusado
o território em que se organizam, e treinam, o apoio político recebido e os
subsídios cru armas e dinheiro. De modo que a tal solução política, se não
prevê a desintegração nacional (que todos fingem repelir), não se encontra em
nós próprios mas nos países vizinhos, aos quais, pelos meios ao nosso alcance,
possamos ir fazendo compreender melhor os seus deveres de Estados responsáveis
para conosco e para com uma pobre gente que estupidamente se faz sacrificar a
interesses alheios. Mas neste entendimento a defesa militar é o único meio de
chegar à solução política que no fundo é a ordem nos territórios e o progresso
pacífico das populações, como o vínhamos prosseguindo.
Vamos em quatro anos de lutas e
ganhou-se alguma coisa com o dinheiro do povo, o sangue dos soldados, as
lágrimas das mães? Pois atrevo-me a responder que sim. No plano internacional,
começou por condenar-se sem remissão a posição portuguesa; passou depois a
duvidar-se da validade das teses que se lhe opunham e acabaram muitos dos
homens mais responsáveis por vir a reconhecer que Portugal se bate afinal não
só para firmar um direito seu, mas para defender princípios e interesses comuns
a todo o Ocidente. No plano africano, quatro anos de sacrifícios deram tempo a
que se esclarecesse melhor o problema das províncias ultramarinas portuguesas,
a diversidade das instituições criadas em séculos naquele Continente e os
ganhos ou perdas, em todo o caso as dificuldades que a independência, tão
ambicionada por poucos, trouxe a todos os mais e os dirigentes não sabem ainda
como resolver. Assim, bastantes povos africanos nos parecem mais compreensivos
das realidades e mais moderados de atitudes. Eis o ganho positivo desta batalha
em que - os portugueses europeus e africanos combatemos sem espetáculo e sem
alianças, orgulhosamente sós.
III
Agora umas palavras sobre o
ambiente político interno que adivinho denso e carregado de dúvidas e
preocupações. Eu compreendo isso e, ao aflorar certas causas da perturbação
mundial, de algum modo e em parte o explico também. Devido a jogo inextricável
de interdependências, uma parte da vida da Nação sofre as pressões externas -
doutrinárias, econômicas ou políticas - a que não tens possibilidade de
esquivar-se. E assim, correndo mal os tempos no mundo, difícil seria que
pudessem correr aqui inteiramente bem. Mas, além disso, temos causas privativas
de mal-estar.
Enfrentamos guerras no Ultramar
que não se sustentam nem hão-de vencer sem sacrifícios de sangue e de dinheiro.
Por isso os impostos tiveram de ser agravados e é ainda possível que, nas
vastas reformas publicadas, algumas incidências não realizem a justiça e por
isso mesmo não correspondam à vontade do legislador.
Uma série de maus anos agrícolas
havia de saldar-se por perdas vultosas tanto para o proprietário da terra como
para o agricultor. Atravessamos um ano excepcionalmente seco que prenuncia, a
continuar assim, urra estio sem águas de rega e graves dificuldades no
abastecimento para o próprio consumo corrente. A indústria, que trabalha ao
abrigo das irregularidades climatéricas, tem-se multiplicado e progredido
satisfatoriamente, mas, devido ao excesso de população que trabalha nos campos,
o progresso daquela não beneficia proporcionalmente os homens da terra que se
refugiara na emigração, aliás em desordem muitas vezes e em excesso
injustificado, originando crises de mão-de-obra em vastos setores rurais. O
abastecimento público tem podido manter-se em termos quase normais, mas muitos
preços têm subido, com os correspondentes gravames para as economias mais
débeis.
Quando estes fenómenos se
verificam e nestas proporções, a população tem a tendência para intensificar e
acelerar pressões no sentido de ver aumentadas as remunerações do trabalho,
pensando esquivar-se às dificuldades comuns. A experiência largamente vivida
pelos povos é a da inutilidade ou nocividade desses remédios, porque as altas
salariais se refletem nos preços e estes no valor da moeda, tudo voltando ao
começo. A obra de maior vulto realizada pelos Ministros das Finanças dos
últimos quarenta anos foi exatamente conseguir manter o equilíbrio financeiro e
a estabilidade monetária, que estão na base do nosso progresso e é necessário
conservar para podermos subsistir; e por esse motivo, salvo nos casos de
ajustamentos impostos por imperiosa justiça, não devemos aceder à onda de
aparentes facilidades que aliviam o dia de hoje, comprometendo o futuro. A mim
se me afigura especialmente absurdo que, tendo como Nação, de fazer face a
maiores despesas, queiramos sempre, na imitação desequilibrada de modas alheias,
ganhar mais e desejemos ao mesmo tempo trabalhar menos.
Durante a última grande guerra me
aconteceu algumas vezes receber altas personalidades britânicas para negócios
graves, e notar-lhes o fato velho, coçado, fimbriado nas mangas. Chegava a
comover-me observar esses sinais de pobreza que não havia pejo em mostrar,
porque representavam afinal o sacrifício conscientemente feito ao fim supremo
da luta em que a sua nação se empenhara. Sei que não estamos em termos
comparáveis e talvez por essa razão não vemos isso aqui, antes em certos casos
o espetáculo da riqueza que se alardeia e quase afronta pelo exagero com que se
manifesta. Por mim desejaria que fôssemos mais modestos e, sobretudo nestes
momentos de crise, mais discretos também.
O facto de ter-se anunciado e
começado a executar um plano que se chamou de reconversão agrária, alertou a
muitos, porque não foram inteiramente compreendidos os fins, os métodos, as
cautelas a ter na longa transição: nada, a não ser a incompreensão, devia
causar receios ao nosso meio agrícola. Eu sou um rural e, embora em situação
diferente, vivi duas guerras, uma em que interviemos ativamente nos quadros de
uma aliança, outra em que não batalhamos, mas houvemos que organizar a defesa
nos quatro cantos do mundo. Daí vem compreender o campo e conhecer as
necessidades vitais que o campo tem de satisfazer. Independentemente do que se
possa chamar a poesia campestre, que atrai os sorrisos um tanto desdenhosos da
economia industrial, por mim, e se tivesse de haver competição, continuaria a
preferir a agricultura à indústria; mas se quereis ser ricos não chegareis lá
pela agricultura, ainda que progressiva, e industrializada, neste País de solos
pobres e climas vários. A terra é humilde, tanto que se deixa a cada momento
pisar; o trabalho da terra é humilde, porque o homem a cultiva, humildemente
debruçado sobre as leivas; o fruto do trabalho ria terra é pobre porque está
rio início de um ciclo de operações comerciais ou industriais destinadas a
valorizá-lo ou a enriquecê-lo. Assim a faina agrícola, sujeita à torreira do
sol ou à impertinência das chuvas, é acima de tudo uma vocação de pobreza; mas
o seu orgulho vem de que só ela alimenta o homem e lhe permite viver. Quando se
governa um país, e se nos deparam os mercados difíceis, os mares impraticáveis,
as bocas famintas sem saber de onde há-de vir um bocado de pão, a terra pobre,
a terra humilde sobe então à culminância dos heroísmos desconhecidos e dos
valores inestimáveis.
Ao afirmar-se a necessidade de
corrigir o fácies agrícola do País, alargando a floresta às serras nuas e aos
campos que cobrimos de searas pobres, não se pensou em desertar da
cerealicultura, mas na possibilidade de ter searas mais rendosas ou culturas
mais ricas noutros terrenos e deixar ao mesmo tempo que as árvores cresçam onde
o trigo não grada. Deste modo mais intensa florestação do País não significa a
diminuição das culturas, o êxodo dos trabalhadores, o abandono do pão que
cultivamos, aliás, sem grandes condições para isso, e teremos de pagar, mesmo
se caro, como quem paga um seguro de guerra.
Tem-se falado muito nos defeitos
da nossa estrutura agrária, que são evidentes e mais evidentes se tornarão a
todos os interessados na medida em que pudermos corrigi-los. Mas, talvez por
não termos bem definido os termos da questão fundamental que é a relação da
cultura com a propriedade, houve sobressaltos injustificados, pois logo se
enxergaram repercussões na pequena horta familiar ou na herdade extensa de bem
equilibrada cultura. Isso nasceu do amor à terra que gira no sangue das nossas
veias, mas não se justificava nem em face das intenções nem de quaisquer
providências tomadas.
Grandes e pequenas coisas se têm
acumulado a empecer-nos o caminho, umas apenas na imaginação sobressaltada,
outras nos factos reais da vida. Mas o que houver, que rever-se há-de sê-lo,
não na precipitação, mas na calma do nosso melhor entendimento.
IV
Compreende-se bem que, neste
emaranhado de problemas e de soluções possíveis, de adversidades que nos chovem
como castigo do céu e de dificuldades nascidas da política mundial, seja fácil
criar aqui dentro ambientes de dúvida e de perturbação. Disse que uma parte da
vida nacional flui das interdependências externas; mas outra parte, a mais
importante e grave, somos nós a determiná-la, a tomar dela a responsabilidade
plena. E um povo que toma, diante de, si mesmo e à face dos imperativos da sua
história, a decisão viril de resistir, porque sabe que precisa de resistir para
sobreviver, há-de tirar desta mesma decisão as forças necessárias para enfrentar
as dificuldades. Penso assim que o Ultramar não pode ser para nós fonte de
desânimos, mas, ao contrário, do mais sadio optimismo.
Além dos portugueses de África
que combatem nas fileiras ou defendem portuguesmente naquelas terras as suas
aldeias e lavras, teremos já entre nós dezenas de milhares de homens e, não sei
quando, centenas de milhares que viveram nos matos, se arriscaram nos mares e
nas selvas, jogaram a vida pela Pátria e viram no Ultramar projetada a Nação na
sua verdadeira grandeza. Que podem significar para estes homens umas oposições
que conspiram com o comunismo em, Paris ou em Argel para lhe entregar Portugal,
ou aquelas, mais moderadas embora, que se limitam a ver se podem conquistar o
poder, sabendo todos, pela imprecisão da sua linguagem, que perder a batalha
aqui ou lá é tudo a mesma coisa? E não estaremos nós à altura dos que se batem,
não só por eles e por nós, mas pela justiça que nos assiste e pelo bem dos
povos a que nos devotamos?
Quando a União Indiana se apossou
de Goa, o que internacionalmente se concluiu foi que obteve minas ricas de
ferro e manganês e ficara com um porto como não havia outro em todas as suas
costas; e parece não ter acudido à mente de ninguém que havia ali também, uma
alma e uma cultura indo-portuguesa, amorosa criação de quatro séculos e meio de
trabalhos e sacrifícios. Pois por este motivo já quase não trabalham as minas,
nem se desenvolve o porto de Mormugão; e a União Indiana, para aumentar de uma
polegada o seu imenso território, forjou, cravando-o no seu seio, mais um fator
de divisão na profunda divisão que a agita. Nunca houve tantos portugueses nem
tão elevado sentimento português em Goa a enfrentar autoridades tirânicas, no
mesmo território que a hipocrisia de muitos diz “libertado da opressão”
portuguesa.
Esta lição que o mundo agora
colhe do nosso sofrimento, não queremos que levianamente a tire dos outros
territórios que constituem a Nação portuguesa. Mas este não querer tem um
segredo que é sabermos bem, porque nos batemos, isto é, as razões da nossa luta
nacional.
Humildemente confesso não ter
conseguido em tantos anos duas coisas que aliás se me afiguravam essenciais:
convencer os governos de que precisavam de um apoio político para a sua ação e
de que esse apoio só podia advir-lhes da União Nacional; convencer a União
Nacional de que a formação política não pode ser abandonada a acasos de
leituras ou de influências familiares mas a uma doutrinação sistemática e
persistente.
Em face de nós só dois
agrupamentos levam na devida conta a formação dos seus adeptos - a Igreja e o
comunismo. Embora, conforme a frase de Tertuliano, a alma humana seja
naturalmente cristã, desde sempre entendeu a Igreja não poder existir sem uma
doutrinação ativa que ilustrasse os entendimentos no dogma, e afeiçoasse as
consciências às práticas da sua moral. Assim a Igreja pode cristianizar a nação
e pode até cristianizar o Estado; e parece-me dever ficar por aí, pois não pode
substituir este nem conduzir os negócios daquela na ordem material ou profana.
E se, esquecendo amargas experiências históricas, se sentisse tentada a
intervir na ação política, não devia fazê-lo, porque, à medida que vemos
materializar-se a vida, se torna mais e mais absorvente a missão espiritual da
Igreja.
O comunismo que também quer ser à
sua moda religião, trabalha como uma igreja, doutrinando e formando os seus
adeptos, com largueza de meios e base científica dignos da melhor escola, mas
tão eficientes que, sendo a doutrina comunista antinatural, mesmo contra a
natureza consegue fiéis que se lhe entregam inteiramente e por ela morrem, se
necessário.
Na carência a que me referi e no
que é essencial, o que nos tem valido é o fundo ainda consistente da lusitanidade,
as lições da história e o exemplo dos seus valores, a sã tradição de nossos
maiores que os acontecimentos políticos dos últimos séculos não conseguiram
obliterar. Mas para conquistar uma adesão firme, formar um soldado de uma causa
desinteressada, granjear-lhe a dedicação incondicional, é precisa a ação
constante de uma doutrinação esclarecida. Quando o inimigo sentiu que
organizações nossas podiam ser o fermento duma nova sociedade ou forças de
estabilização necessária na época agitada em que se tem vívido, logo iniciou a
campanha necessária ao seu descrédito. E muito bem, diante da nossa indecisão,
porque ele sabia o que lhe convinha e nós dávamos provas de ignorar o de que
tínhamos necessidade.
Pois bem, se o Centro de Estudos
Políticos que existe aqui fizer irradiar de si a luz que ilumine, o calor que
aqueça sobretudo as almas jovens, naturalmente generosas e sedentas, nós
podemos estar certos de que não serão abalados os alicerces nem com eles o
futuro desta Nação.
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