sábado, 23 de fevereiro de 2019

Agressão à Venezuela: um roteiro com três anos


José Goulão | AbrilAbril | opinião

Há exactamente três anos, em 25 de Fevereiro de 2016, o almirante Kurt W. Tidd, chefe do Comando Sul (SouthCom) dos Estados Unidos da América, escreveu a seguinte recomendação: «Nas actuais circunstâncias, tem grande interesse impor a matriz segundo a qual a Venezuela entra numa etapa de CRISE HUMANITÁRIA [destaque do próprio] por falta de alimentos, água e medicamentos»; por isso «há que continuar a manipular o cenário em que a Venezuela está “à beira do colapso e da implosão”, pedindo à comunidade internacional uma intervenção humanitária para manter a paz e salvar vidas».

Este trecho citado faz parte de um documento secreto intitulado «Venezuela Freedom-2 Operation», apresentado pelo almirante Tidd numa reunião que envolveu a junta de comandos e a componente de operações especiais do SouthCom – United States Southern Command (USSOUTHCOM), Joint Task Force-Bravo (JTF-Bravo, JTF-B) e Joint InterAgency Task Force-South (JIATF-S). O relatório do comandante faz um balanço da primeira fase da operação «Venezuela Liberdade-2» e alinha um conjunto de 12 recomendações para a segunda fase e sobre as quais ninguém dirá que tenham passado três anos, tal a sua gritante actualidade.

A leitura do documento faz pressupor que, por circunstâncias várias, as etapas nele previstas para «fazer sair Maduro» não foram cumpridas nas alturas calculadas, sendo um dos picos Julho e Agosto de 2016. O texto é omisso quanto às razões para o protelamento das fases decisivas – que não o abandono dos objectivos pretendidos – porque o balanço se limita a enumerar «êxitos alcançados». A única alusão que pode encontrar-se em termos de obstáculos concretos aos desígnios norte-americanos parece ser, conforme é reconhecido “ipsis litris”, «o poderio do governo (de Maduro) e a sua base social, com milhões de aderentes que podem ganhar em coesão e expandir-se politicamente».


Um longo caminho de golpe

O balanço da primeira fase da operação apresentado pelo almirante Tidd confirma que a mudança de regime «chavista» ou «populista», como vai sendo designado ao longo do documento, é há muito tempo uma obsessão de Washington.

Entre os «êxitos» alcançados no percurso de conspiração permanente, o comandante do SouthCom destaca a derrota governamental nas eleições parlamentares de 6 de Dezembro de 2015 e «a decomposição interna do regime populista e anti-norte-americano».

O documento salienta ainda a boa aplicação «das leis norte-americanas» ao caso da Venezuela, designadamente a declaração como «uma ameaça invulgar e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos da América representada pela situação na Venezuela»; o «isolamento interno e a desqualificação como regime democrático» ainda a capacidade «ara por em evidência o carácter violador dos direitos humanos do governo de Maduro».

Outra das pedras de toque dos progressos alcançados pela estratégia norte americana foi «a colocação em agenda da premissa de uma crise humanitária que permita uma intervenção com apoio de organismos multilaterais, incluindo a ONU».

«A nossa intervenção oportuna permitiu traçar um rumo para uma saída rápida do regime» lê-se no documento. E fez «crescer a convicção de que é necessário pressionar com mobilizações de rua, tentando fixar e paralisar importantes contingentes militares que se terão de dedicar a garantir a ordem interna e a segurança do governo, situação que se tornará insustentável na medida em que se multipliquem conflitos e pressões deste tipo».

Os passos dados permitem assim, segundo o almirante Kurt W. Tidd, estabelecer um «conjunto de recomendações concebidas como uma operação de amplo espectro, conjunta e combinada». Esta alusão diz explicitamente respeito à importância do trabalho integrado da Agência de Informações de Defesa (Defense Intelligence Agency, DIA) e «dos outros membros da Comunidade de Informações» (United States Intelligence Community, IC).

As recomendações

São doze as «recomendações» propostas pelo comandante do SouthCom há três anos – parecendo que foi hoje.

Embora defina a importância de «um cenário abrupto através da continuação das acções de rua e o emprego gradual de violência armada», o documento considera que, em simultâneo, deve aproveitar-se o texto constitucional «para mobilizar e organizar uma massa crítica de confrontação». Nesse âmbito, aconselha a «invocar os artigos 333.º e 350.º, que legitimam a rebelião». E acrescenta que «não assumiremos os custos de uma intervenção armada, mas empregaremos os diferentes recursos e meios para que a oposição possa levar por diante as políticas para fazer sair Maduro».

Nesse quadro, realça o documento, a parte norte-americana estabeleceu uma «agenda comum» com a Mesa de Unidade Democrática (MUD) – coligação de oposição que junta grupos de extrema-direita que é um dos alicerces do edifício de «recomendações».

«Com o enfoque de “cerco e asfixia”, acordámos com os parceiros da MUD utilizar a Assembleia Nacional como tenaz para obstruir a governação: convocar eventos e mobilizações, interpelar os governantes, negar créditos, derrogar leis», lê-se na recomendação b).

Depois de reconhecer «o poderio do governo e da sua base social», o almirante Tidd considera «fundamental insistir em debilitar doutrinariamente Maduro, colocando a sua filiação castrista e comunista como eixo propagandístico em oposição à liberdade e à democracia, contrária à propriedade privada e ao mercado livre; ainda doutrinariamente», acrescenta, «há que responsabilizar o Estado controlador como causador da estagnação económica, da inflação e da escassez».

A propaganda é, como se percebe em todo o ambiente que envolve a crise artificialmente criada na Venezuela, um dos principais recursos da operação.

Por isso, recomenda o documento, há que «manter a campanha ofensiva no terreno propagandístico, fomentando um clima de desconfiança, incutindo temores, tornando ingovernável a situação». Daí a importância de «destacar tudo o que tenha a ver com desgoverno: falhas administrativas, problemas gerados pelos elevados índices de criminalidade, a insegurança pessoal».

«Particular importância», prossegue o almirante Tidd, «têm temas como a escassez de água, alimentos e de electricidade. […] Devemos preparar-nos para explorá-los ao máximo do ponto de vista político, reforçando a matriz mediática que liga a crise eléctrica à responsabilidade exclusiva de Maduro». A seca de 2015 tivera efeitos gravíssimos na Venezuela, esvaziando barragens e provocando grandes perturbações no abastecimento de energia.

A «crise humanitária»

Ontem como hoje, a exploração da «crise humanitária» continua na ordem do dia como arma do golpe, conforme se percebe da leitura do relatório do SouthCom, em texto já citado anteriormente: «a Venezuela entra numa etapa de CRISE HUMANITÁRIA por falta de alimentos, água e medicamentos; há que continuar a manipular o cenário em que a Venezuela está “à beira do colapso e da implosão”, pedindo à comunidade internacional uma intervenção humanitária para manter a paz e salvar vidas».

Portanto, «há que conjugar o conceito de “emergências humanitárias” com a insistência na «aplicação da Carta Democrática” da Organização de Estados Americanos (OEA), de forma a «permitir alianças com outros países que estão na área de influência do Comando Sul». Nesse quadro, recomenda o almirante Kurt Tidd, «é relevante a coordenação entre a Comunidade de Inteligência e outras agências com as ONG’s e as corporações privadas de comunicação». E para esse efeito, «com a cobertura da Embaixada em Caracas», estão disponíveis «o elo de ligação com a DIA, Tenney Smith, juntamente com Rita Buck Rico, que devem ser apoiados por um grande contingente de inteligência».

Outra frente de ataque recomendada: «esforços para vincular Maduro à corrupção e lavagem de dinheiro», para os quais devem mobilizar-se comissões, peritos e agências intergovernamentais, além das declarações de «testemunhas protegidas».

«Anular» os militares

Na frente militar, o almirante Tidd não deposita grandes esperanças na traição de «comandos identificados com o chavismo» e, «sobretudo, das unidades de elite». E recomenda: «é preciso debilitar essa liderança e anular a sua capacidade de comando».

O mesmo é aconselhável em relação «às milícias e colectivos armados», corpos com «pessoal combatente e fanatizado» que representam obstáculos «para as mobilizações de rua das forças aliadas e para o controlo de instalações estratégicas». Por isso, «há que fazer neutralizações operacionais».

No terreno militar, dizia o almirante Kurt Tidd há três anos, «não podemos actuar abertamente». No entanto, as forças especiais do Comando Sul «são para colocar em condições de actuar em arco estratégico apoiadas pelas bases militares de “controlo e monitorização” nas ilhas antilhanas de Aruba (Rainha Beatriz) e Curacao (Hot Rey), em Arauca, Larandia, Três Esquinas, Puerto Leguízamo, Florencia e Letícia, na Colômbia».

O objectivo principal das operações incidirá sobre a região central da Venezuela, «onde se concentra o poder militar». Quanto a meios, o almirante desvenda que «estão disponíveis sistemas de vigilância electrónica, inclusive através de incursões de aviões RC-135 Combat». Além disso, deve «estar OK, próximo do terreno, o 1º batalhão do 228º Regimento Aéreo com 18 aviões, helicópteros UH-60 Black Hawk e CH-47, preferencialmente em Hot Rey».

Em termos gerais, lê-se no documento, «devemos continuar a construir alianças e a proteger os nossos interesses, defender o nosso território, o bem comum mundial, progredir em termos de segurança e bom governo frente às ameaças como o regime da Venezuela».

Tudo isto, explica o chefe do Comando Sul dos Estados Unidos da América, porque «queremos uma Venezuela próspera para todos, assente numa base de valores partilhados, com um governo eficiente, uma democracia representativa e uma economia de mercado aberta».

Valores que se alcançam, nunca será excessivo recordá-lo, «explorando ao máximo do ponto de vista político, reforçando a matriz mediática, a escassez de água, alimentos, medicamentos e de electricidade», «ligando a crise à responsabilidade exclusiva de Maduro»; e «pedindo à comunidade internacional uma intervenção humanitária para manter a paz e salvar vidas».

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