Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
Uma esquadra acusada de deter
pessoas ilegalmente, de disparar a eito e sem motivo, de brutalizar e injuriar
cidadãos e de mentir nos autos de notícia. E um procurador que faz questão em
dizer que não é a PSP que está em julgamento - podia lá ser.
A primeira vez que me interessei
pelo tema violência policial foi há mais de 30 anos, quando, estagiária no
Expresso, fui parar ao julgamento de um guarda fiscal - corpo policial depois
integrado na GNR - que tinha matado, a tiro, um adolescente. Impressionou-me
tudo - tinha morrido um miúdo por motivos completamente espúrios, que se
prendiam com a incapacidade daquele agente de perceber em que circunstâncias
estava autorizado a sequer usar a força, quanto mais letal, com a óbvia falta
de noção do seu papel como polícia e o facto de achar que a sua única fonte de
autoridade era a da violência, consubstanciada na arma que lhe fora atribuída.
Mais que isso, que já era muito,
impressionou-me ver superiores e colegas cerrar fileiras para defender a sua
conduta e a forma como o tribunal lidou com o caso. Ali, como em muitos
outros processos de homicídio cometido por polícias que depois segui, percebi
que os tribunais tendiam não só a assumir como verídicas as versões dos agentes
e as suas razões - ou, em caso de ser evidente que mentiam, a não os punir por
isso - como a desculpabilizar-lhes os crimes por serem polícias, ao invés de,
como a lei prevê, puni-los mais severamente pelo especial dever de os não
cometer. E, sempre, frisando que não eram as corporações que estavam em causa
nos atos de agentes - mesmo se estas iam a tribunal defendê-los, aos agentes e
aos atos, mesmo se tinham na comunicação dos factos em apreço assumido como
boas as versões dos envolvidos e até, em vários casos, cozinhado encobrimentos
e falsificações.
Gostaria de poder dizer que estas
observações deixaram de fazer sentido; não deixaram. E, tal como sucede
com o problema do racismo e o discurso institucional sobre ele, a insistência
no desvio da discussão para as responsabilidades individuais, para a ideia das
"maçãs podres", mantém incólumes a estrutura, a mentalidade e a
cultura que promovem quer o racismo quer a violência policial.
Aliás o que me ficou claro
de décadas de investigação em casos de violência policial - não raro
coincidindo com racismo - é que são as instituições que estão podres e
apodrecem as maçãs. E que sim, são a PSP e a GNR que estão em julgamento de
cada vez que há um caso de excesso do uso da força, de abuso de autoridade, de
desrespeito pelos mais elementares direitos dos cidadãos.
Em poucas situações isso fica tão
claro como na da esquadra de Alfragide, por ser evidente não só que aquilo que
se passou ali não se poderia ter passado sem a cumplicidade de todos os agentes
que estavam presentes como pela forma como a PSP comunicou sobre o assunto,
difundindo a tese da invasão da esquadra (que, para não variar, foi
acriticamente propagada pelos media).
Dir-me-ão que estou a dar como
provadas coisas que ainda o não foram, porque o julgamento ainda não terminou.
É certo que ainda não terminou - aliás, mesmo se o procurador Manuel das Dores,
que em tribunal representa o Estado (o que quiçá o induz em erro), deixou cair parte da acusação elaborada pelo MP, isso nada implica
quanto à deliberação da juíza que preside. Porém, há factos inquestionáveis:
houve duas cidadãs habitantes do bairro da Cova da Moura atingidas por balas de
borracha; um dos detidos também o foi; todos os detidos foram agredidos na
esquadra. E nenhuma justificação aceitável - ou seja legal - há para isso.
Podemos, claro, discutir se é ou
não tortura polícias agredirem pessoas detidas e manietadas (o procurador acha
que não, mesmo se não discute que houve agressões, e criminosas); se houve ou
não insultos racistas (não estávamos lá nem há gravação, pelo que se trata de
crer ou não; o procurador crê que houve insultos, mas não motivados por racismo
- o que os motivou não aventa); se faz sentido que um grupo de seis negros a
dirigirem-se, desarmados, a uma esquadra seja encarado pelos agentes como
"uma invasão" e portanto determinando uma resposta violenta - o
procurador admite que sim.
Podemos como o procurador considerar que houve excesso de uso
da força, detenção ilegal, sequestro e falsificação do auto de notícia no que
respeita à atuação dos agentes na rua, onde estavam muitas testemunhas, e que
quanto ao que se passou entre as paredes da esquadra aquilo que os agentes
dizem já é digno de crédito e quem mente são as vítimas. E podemos, claro,
como o procurador, achar que aquelas quase duas dezenas de polícias que se não
participaram assistiram aos crimes que o próprio acusa terem existido não representam
a PSP, nem dizem nada sobre a cultura de desrespeito pelos direitos dos
cidadãos, impunidade e encobrimento da instituição.
Que não só foi um acaso o
ocorrido como também que nenhum dos agentes presentes tenha intervindo no
sentido de repor a legalidade (é essa a obrigação de um polícia, ou estarei
equivocada?) ou feito uma participação superior para que se pusesse cobro aos
crimes. Se calhar até podemos admitir - será isso que acha o procurador? - que
os agentes nem sabiam que de crimes se tratava, ou que consideram que da sua
missão não faz parte impedir ou denunciar crimes desde que sejam colegas a
cometê-los.
Custa é a perceber que alguém
ache que tudo isto admitir, e portanto permitir, contribui para "manter o
prestígio da PSP". Mas espantar não, não espanta.
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