O que Adolf Hitler diria do
disparate de que o nazismo “é de esquerda”, como afirmam o presidente Jair
Bolsonaro, o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, e o guru do
bolsonarismo Olavo de Carvalho? Ele provavelmente iria rir alto.
De fato, gargalhar era o que
Hitler e seus colegas nazistas faziam quando eram confundidos com os
“vermelhos”, com quem disputaram na porrada o poder durante os turbulentos anos
que antecederam o início do Terceiro Reich. Quem conta é o próprio Hitler, em
“Minha Luta”, o misto de autobiografia e manifesto de ódio lançado em 1925 no
qual a ideologia nazista foi consolidada.
Em um capítulo devidamente
intitulado “A Luta com os Vermelhos”, Hitler narra como seu partido era muitas
vezes confundido com o do seus inimigos da esquerda, principalmente pelos
“burgueses comuns” que, escreveu Hitler, “ficavam muito chocados por nós termos
também recorrido à simbólica cor vermelha do bolchevismo”.
Segundo ele, muitas pessoas “nos
círculos nacionalistas sussurravam que éramos apenas uma variação de marxistas,
talvez marxistas disfarçados ou, melhor, socialistas.” Mais do que a cor
vermelha, escreveu o futuro Führer, esses “nacionalistas” pareciam preocupados
com a linguagem usada pelos nazistas, que chamavam um ao outro de “camaradas”,
como comunistas faziam.
Hitler afirma que a confusão – em
certa medida incitada pelos próprios nazis como estratégia publicitária – era,
para ele, hilária.
“Quantas boas gargalhadas demos à
custa desses idiotas e poltrões burgueses, nas suas tentativas de decifrarem o
enigma da nossa origem, nossas intenções e nossa finalidade! A cor vermelha de
nossos cartazes foi por nós escolhida, após reflexão exata e profunda, com o
fito de excitar a esquerda, de revoltá-la e induzi-la a frequentar nossas
assembleias; isso tudo nem que fosse só para nos permitir entrar em contato e
falar com essa gente.”
Anos depois de ter escrito o
livro, Hitler usaria esse mesmo horror da “burguesia” nacionalista ao marxismo
para arregimentar apoio da elite industrial alemã ao seu projeto autoritário. Uma
vez empossado chanceler, em 1933, Hitler usou o incêndio
no Reichstag como prova que de os comunistas estavam conspirando
contra o seu governo. E, em 1934, ordenou a destruição das chamadas SA, uma
facção paramilitar nazista comandada por Ernst Röhm, mais simpático às ideias
comunistas. O violento expurgo, no qual centenas foram assassinados, foi
apelidado de a Noite
dos Longos Punhais.
O completo absurdo das
declarações de Bolsonaro e companhia fica imediatamente claro para qualquer
leitor mediano que tenha estômago para consultar o “Minha Luta” – proibido em
vários países, mas facilmente encontrável na internet. Desde o início do livro,
Hitler explicita que o anti-marxismo era, para ele, inseparável do
antissemitismo e que ambos são o motivo fundante do nazismo. Em uma passagem em
que explica seu processo de politização em Viena, Hitler chega a listar o
primeiro antes do segundo: “Meus olhos se abriram para dois perigos, cujos
nomes e significado terrível para a existência do povo alemão eu mal conhecia.
Esses dois perigos eram o marxismo e o judaísmo”.
Mais do que essa imaginada
conexão entre marxistas e judeus, Hitler tinha repulsa ao ideário igualitário
universal comunista. Com razão, já que ele contradiz o núcleo ideológico
nazista, segundo o qual a “raça” ariana seria inerentemente superior, tendo,
portanto, direito sobre as demais. Como escreveu o propagandista do Reich,
Joseph Goebbels, num famoso livreto de propaganda de 1926: “O marxismo, cujas
teorias são fatais para os povos e raças, é exatamente o oposto do [nacional]
socialismo.”
Ao longo de sua autobiografia,
Hitler descreve o marxismo diversas vezes como uma doença pestilenta, uma
doutrina irracional e um risco existencial à Alemanha, que deveria ser
combatido e aniquilado. Diz ele:
“Nos anos de 1913 e 1914,
expressei minha opinião pela primeira vez em vários círculos, alguns dos quais
agora são defensores do movimento nacional socialista, de que o problema sobre
como o futuro da nação alemã pode ser assegurado é o problema sobre como o
marxismo pode ser exterminado”.
Depois, reafirma: “No dia em que
o marxismo for quebrado na Alemanha, os grilhões que nos prendem serão
esmagados para sempre”. Disse ainda, ao rememorar eventos de 1923: “A primeira
tarefa em um governo verdadeiramente nacionalista era procurar e achar as
forças que estivessem decididas a lutar uma guerra de aniquilação contra o
marxismo e, em seguida, dar liberdade de ação a essas forças.”
Não surpreende que os marxistas
tenham sido um dos primeiros grupos a ser levados para campos de concentração,
nos quais foram assassinados às centenas de milhares. Nem que todos os grupos
neonazistas do pós-guerra mantenham o ódio à esquerda como ponto
ideológico central.
Ninguém, no Brasil ou no
exterior, precisa acreditar em jornalistas ou em historiadores para saber que o
nazismo se opunha frontalmente ao comunismo. Basta ler as palavras de Hitler.
The Intercept Brasil
Imagem: Adolf Hitler (1989-1945)
sendo recebido por apoiadores em Nuremberg. em 1933. Foto: Hulton
Archive/Getty Images
-----
Dependemos do apoio de leitores
como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós
Sem comentários:
Enviar um comentário