Cena de A Grande Beleza (2013),
de Paolo Sorrentino - que faz lembrar o governo Bolsonaro
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No fundo, o Grande Acordo
Nacional – que nasceu com Jucá e Temer – é a “Grande Beleza” das nossas
instituições, a Miami desvairada que atira nas nossas cabeças, nos oferece
abacate para apartar a fome e mulheres aos gringos que quiserem nos visitar
Milagros Casas / Victor
Farinelli, Santiago, Chile | Opera Mundi | opinião
Cinco meses de Bolsonaro no
poder. Sem surpresas, desastre atrás de desastre e a exaltação da não política.
Se aventam impeachment ou renúncia. Contudo, e mesmo que alguma das duas opções
venha a ocorrer, não haverá um reconhecimento do fracasso – a autocrítica é uma
exigência que só se faz à esquerda.
A política deste governo lembra
uma cena de A Grande Beleza (2013), de Paolo Sorrentino, onde um baile de gente
famosa, rica, clerical, numa celebração hedonista que nos afoga na
superficialidade brega (e devota) dos que tudo possuem. A diferença, no caso da
nossa realidade, é que não estamos em Roma, mas numa Sucupira em conexão
Brasil-Miami, com os grandes salões brancos das Ana Hickmann, dos heróis
constituídos de papel-moeda e de um morto-vivo como mestre de cerimônias.
Mas, com a licença de Sorrentino,
esqueçamos um pouco a festa em si, e nos concentremos nos preparativos, que
começaram anos atrás, com o desmantelamento do governo Dilma e o país
surpreendido por uma gravação que chocou parte da sociedade. Não nos referimos
ao grampo reproduzido num ridículo jogral do Jornal Nacional, uma análise
de conjuntura tornada crime político, uma gravação ilegal da presidenta da
República feita por um juiz de primeira instância que a entregou qual mordomo à
principal mídia do país. A gravação que queremos resgatar é outra, embora
também contenha uma análise de conjuntura, além de uma confissão, ao explicar
como se orquestra o Estado – às vezes de maneira criminosa, através de suas
instituições –, e que, porém, não gerou a indignação daqueles que berram por
ética em palestras e programas de tevê. Tratava-se do jogo de poder que culmina
na articulação que preparou o Brasil nascido naquele maio de 2016, e cujos
desdobramentos continuam em pleno processo de desenvolvimento: o famoso diálogo
do Grande Acordo Nacional, entre Romero Jucá (então ministro do Planejamento e
senador afastado) e Sérgio Machado (ex-presidente da Transpetro, subsidiária da
Petrobras).
Jucá chocou não pelo que disse –
não era exatamente uma novidade – e sim pelo incrível didatismo. A Nova
República estava nua: juízes, militares, políticos, empresários, todos foram
descritos em suas posições de poder e influência na derrubada de um governo que
era ruim, porém legítimo. A fala de Jucá era tão pornográfica, neste sentido de
mapear todo o aparelhamento do Estado, que é difícil não rir de tamanha
sinceridade, ou imaginar o sonho dos antipetistas de que tudo aquilo tivesse
saído da boca de um figurão do partido, alguém como José Dirceu, que por
qualquer espirro já é preso novamente. De qualquer modo, o Grande Acordo
Nacional foi tema restrito às bolhas politizadas, abafado pela imprensa
hegemônica e ocultado do grande público. E se chegava aos papos de feira, ou às
filas na padaria, era meio clandestino e/ou distorcido. Nesses lugares, o
antipetismo berrado pela Jovem Pan, pelos programas femininos das nossas
tardes e pelo datenismo cultural vigora até hoje, pleno, forte, violento.
Mas as grandes obras são sempre
redescobertas. Eis que o Grande Acordo Nacional volta a nos assombrar, na forma
da série O Mecanismo, criada para ressignificar o Acordo, e dar a ele o uso
social que as elites queriam, que as hordas protobolsonaristas queriam. Um
diretor aclamado (José Padilha), contratado por uma plataforma de streaming
americana (Netflix), entregaram o fan service mais ansiado pelo imaginário
fascista: botar a fala de Jucá na boca do Lula. Um Lula ficcional, mostrado
como um gangster ao estilo Al Capone tupiniquim, uma figura na medida do que
esse imaginário queria. O Grande Acordo Nacional, em sua versão Padilha, é A
Grande Beleza de Sorrentino, o antipetismo hedonista, do champagne nas
manifestações e dos camisas negras dos tempos em que Dilma, para tentar salvar
seu governo, tentou fazer de Lula ministro da Casa Civil. As pessoas comentam a
série nas ruas, se sentem esclarecidas através de uma escandalosa falsificação
histórica. Sentado em seu trono, montado sobre seu ego, Padilha desdenha de
quem o contesta, diz ser a única coisa que os petistas apontam como problema de
sua série, fazendo ouvidos surdos às distorções históricas e até mesmo à
pobreza e extremo simplismo da sua narrativa – que, novamente, está adequada ao
público que pretende atingir.
A grande beleza, para Padilha,
está nos heróis aventados por uma classe média violenta: é o “bom” policial que
usa uma calibre 12 para que seu aprendiz estoure a cara de um traficante que
pede para não estragar o enterro, é o juiz-batman que desvenda a origem do mal
de um Brasil em crise, que, por fim, se mostra ética. Não importa se Padilha
tenta corrigir seus erros e suas culpas não confessadas nas cenas dos capítulos
seguintes, ou como tenta fazer nesta segunda temporada de O Mecanismo, com a
mesma desfaçatez com a que tentou transformar o fascista Capitão Nascimento do
primeiro Tropa de Elite no paladino dos direitos humanos que vimos na parte
dois – aliás, se unirmos as duas caras do Capitão Nascimento, encontramos o
arquétipo do herói policial que alenta o bolsonarismo. Por mais que negue, o
diretor sabe que sua obra é celebrada justamente pelos frequentadores das
festas Brasil-Miami, os grã-finos que posam de liberais, mas que no fundo são
tão idênticos aos ostentadores chefes milicianos que estes são seus cúmplices e
aliados políticos, numa aliança que também agrega o nosso fundamentalismo
religioso mais charlatão e os fazendeiros escravocratas.
Agora estamos cá, com esse
imaginário louco, falso e irracional com o qual temos que lidar aqui no andar
de baixo: o PT como o grande demônio da corrupção – embora todos digam que “o
mecanismo envolve todos os partidos”, sem jamais admitir quem são os outros,
algo que a própria série repete, também em sintonia com a ladainha do seu
público –, e qualquer um que contesta essa visão sendo taxado de comunista,
petista, mortadela, burro, analfabeto, etc. O Grande Acordo Nacional alcançou a
arte através da versão de Padilha, para se legitimar no imaginário antipetista,
como costumava fazer Stalin, reescrevendo a História para ela caber dentro de
um projeto de poder. É uma versão canalha, como a de Reinaldo Azevedo, o
sujeito que construiu sua fama abusando do termo “petralha”, de sua autoria, e
agora tenta se erguer como inimigo do antipetismo e paladino de uma suposta
civilidade política. Ambos são responsáveis diretos pelo nascimento disso que
chamamos de bolsonarismo. Hoje, tentam recompor suas posições ideológicas acima
da atual ruptura entre os setores governistas, acreditando que a dinâmica do
mundo moderno permite ocultar o que antes era soberba, e agora se tornou
vergonha. Contudo, sempre haverá os que não esquecem, e os que não perdoam. Um
dia, a História que tentam falsificar, os cobrará, e rindo de suas caras,
eventualmente.
Agora, maio de 2019, estamos
entre os escombros do que já fomos um dia. Vivendo o absurdo político. Ao
contrário do que se pensa, as instituições continuam funcionando normalmente. O
problema é o que restou de nós. Vivemos um momento inédito, o qual podemos
comentar com uma citação, possivelmente mal aplicada, de Game of Thrones,
(assistiremos depois do hype, foi mal pessoal), que virou meme e tendência nas
redes sociais: “já tivemos reis cruéis, e já tivemos reis idiotas, mas não sei
se algum dia fomos amaldiçoados com um rei cruel e idiota”.
Talvez esta fala do personagem
Tyrion não esteja exata, mas a direção é essa: o puro caldo do bolsonarismo é a
idiotia cruel. A tal carta, compartilhada via Twitter pelo presidente, é
reflexo disso. Não há qualquer elaboração ao estilo Jânio Quadros, ou Getúlio
Vargas – que, inclusive, escreveram suas próprias cartas. A elaboração está na
boca de outros, dos Jucá, dos Padilha, dos Reinaldos, das Mirians, dos Datenas.
Não de Bolsonaro, que nada mais é que a personificação de uma elite desvairada,
ignorante, que passa a vida lamentando a sorte de ser brasileira, e foge para
Miami como quem busca consolo em um bordel (pobres putas). Em nossa festa
hedonista, feliz daquele que conquista a dupla nacionalidade europeia, um green
card, um prêmio dado em algum salão de festas ianque.
Já que vamos de Roma a Westeros
sem maiores cerimônias, lancemos mais uma inspiração ficcional, nosso
morto-vivo: Jair, o Frankenstein com o que o antipetismo sempre sonhou no
“qualquer coisa é melhor que o Lula e a Dilma”. Seus esquemas de corrupção tão
ridiculamente simples e tradicionais, a tão conhecida (e de longa data) ligação
com as milícias, suas declarações de bêbado de boteco glorificadas como “a voz
da simplicidade do povo”, a conformação de um ministério cheio de personagens
tão caricatas, como vilões de histórias em quadrinhos, até mesmo nos nomes
pitorescos (Ônix, Damares, Vélez, Abraham), cujas ações são sua imagem e
semelhança... É curioso como seu corpo e sua família reproduzem os crimes, as
condutas e a psicopatia que nossa tosca elite sempre se esforçou em ver e
apontar no PT, incluindo até as lendas dos filhos do ex-presidente.
E assim chegamos a um Brasil em
meio a uma situação absolutamente caricata da festa romana de Sorrentino, que
no nosso caso mais parece um roteiro para um sketch de Hermes e Renato, onde
Frankenstein se tornou presidente e apareceu bebendo champanhe na festa de ano
novo no salão da Ana Hickmann, e que começou sendo bem atendido, quando era
conveniente aos anfitriões, até que passou a ser mais incômodo do que se
esperava.
No fundo, o Grande Acordo
Nacional – que nasceu com Jucá e Temer – é a “Grande Beleza” das nossas
instituições, a Miami desvairada que atira nas nossas cabeças, nos oferece
abacate para apartar a fome e mulheres aos gringos que quiserem nos visitar. O
poder político e econômico nas mãos daqueles que odeiam o Brasil, mas que não
podem ser tão ricos, cruéis e idiotas sem ele. A psicopatia e a irracionalidade
como norma que rege as decisões do país.
No filme de Sorrentino, o
protagonista vê um grupo de velhos ricaços fazendo um trenzinho na pista de
dança, e diz a uma amiga, em tom de piada pastelão, que aquele é o trem mais
belo do mundo, porque não vai a lugar nenhum. Depois, olha de novo para os
fanfarrões e diz: “olhe para esta gente... esta é a minha vida, e ela não é
nada”.
Pois o trenzinho dos ricaços
brasileiros, os que celebram diariamente o banquete do bolsonarismo, talvez não
seja tão belo, já que tem um rumo: a nossa comédia que é sempre tragédia.
Olhemos para esta gente... isto é o que querem fazer do nosso país, e se
tiverem sucesso, em breve, ele não será nada.
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