quarta-feira, 22 de maio de 2019

Venezuela, Irão: Trump e o Estado Profundo


Thierry Meyssan*

Os acontecimentos que se desenrolaram na Venezuela e a subida de tensão entre Washington e Teerão são apresentados de maneira falaciosa pela imprensa dos EUA. Nada do que aí se passa se chega a compreender dadas as declarações contraditórias de cada campo. Importa, pois, aprofundar a análise depois de ter verificado os factos e para isso integrando a oposição entre as diferentes correntes políticas deste país.

A nova conjuntura da Casa Branca e do Pentágono

As eleições parlamentares de 6 de Novembro de 2018 privaram o Presidente Trump da sua maioria na Câmara dos Representantes. O Partido Democrata considerava então inevitável a sua destituição.

É claro, nada havia cometido que a justificasse, mas, exactamente como durante a Guerra de Secessão, um ambiente histérico opunha as duas componentes dos Estados Unidos [1]. Desde há dois anos, os partidários da globalização económica perseguiam a pista russa e esperavam que o Procurador Robert Mueller provasse a alta traição do Presidente Trump.

Robert Mueller sempre colocara o interesse do Estado Federal à frente da Verdade e do Direito. Fora ele que aquando do atentado de Lockerbie inventara a pista líbia com base numa prova que foi, mais tarde, anulada pela Justiça escocesa [2]. Foi ainda ele quem afirmou, após os atentados de 11 de Setembro de 2001, que três aviões tinham sido sequestrados por 19 piratas do ar muçulmanos, dos quais nenhum aparecia nas listas de embarque [3]. Ou seja, as suas conclusões sobre a investigação aos russos eram conhecidas antes dela começar.



Donald Trump negociou, portanto, a sua sobrevivência política com o "Estado Profundo" [4]. Não tinha escolha. Foi combinado que o Plano Rumsfeld/Cebrowski [5] seria posto em marcha com a condição de não embarcar o país numa guerra em larga escala. Em troca do que o Procurador, Robert Mueller, virava a casaca e declarava o Presidente Trump isento de qualquer traição [6].

Nesta onda, os falcões impuseram o regresso dos neoconservadores. Este grupúsculo trotskista nova-iorquino, constituído em torno do American Jewish Comitee (AJC), havia sido recrutado por Ronald Reagan. Ele transformara o seu prévio ideal de «revolução mundial» no do «imperialismo mundial dos EUA». Desde então, participou em todas as administrações, um dia como Republicano, no seguinte como Democrata, de acordo com a cor do presidente no Poder. A única excepção até aqui era a Administração Trump, que não o havia, contudo, sacado das suas agências reservadas, A NED (National Endowment for Democracy) e o USIP (United States Intitute of Peace).

Foi assim que, em 25 de Janeiro de 2019, Elliott Abrams viu ser-lhe confiado o dossier venezuelano na Secretaria de Estado. O seu nome está associado a todo o tipo de mentiras de Estado e de manipulações [7]. Este personagem foi um dos arquitectos da Operação Irão-Contras, em 1981-85, e da guerra contra o Iraque, em 2003. Desde a sua nomeação, ele trabalhou com o Comando Militar dos EUA para a América do Sul (SouthCom) para derrubar o Presidente eleito, Nicolás Maduro.

Acontece que conhecemos tanto a estratégia Rumsfeld/Cebrowski —que vimos aplicar durante quinze anos no Médio-Oriente Alargado— como a sua declinação feita pelo SouthCom [8], redigida, a 23 de Fevereiro de 2018, pelo Almirante Kurt Tidd, e que Stella Calloni revelou em Maio último [9]. Aquilo que hoje se passa é a sua evidente aplicação na Venezuela.

O fiasco venezuelano

O fracasso da operação dos EUA, com a descoberta da traição do Director do SEBIN, o General Manuel Figuera, e o Golpe de Estado que ele improvisou na precipitação antes da detenção, a 30 de Abril, atesta a impreparação do SouthCom ou, talvez mais, o seu desconhecimento sobre a sociedade venezuelana. O aparelho do Estado norte-americano, que dispôs de um semestre, não foi capaz de fazer trabalhar em conjunto as suas diferentes agências e os seus homens no terreno. Enquanto que apesar da desorganização do país o Exército bolivariano estava pronto para o defender.

O reconhecimento antecipado por Washington, pelo Grupo de Lima (salvo o México) e pelos seus Aliados, de Juan Guaidó, em vez e no lugar de Nicolás Maduro, como Presidente da Venezuela mergulhou o campo dos EUA em insolúveis problemas. Desde logo, a Espanha foi o primeiro país a inquietar-se ao ficar privada de interlocutor para os Venezuelanos que acolhe e para os Espanhóis que residem na Venezuela. Nunca, mesmo durante uma guerra, se havia recusado reconhecer a legitimidade de um presidente eleito constitucionalmente e da sua administração.

Em algumas semanas, Washington sequestrou o essencial dos bens venezuelanos no estrangeiro [10], exactamente como tinha feiro em 2003 contra o Tesouro iraquiano, em 2005 contra o Tesouro iraniano e em 2011 contra o Tesouro líbio. Esse dinheiro jamais foi recuperado pelos povos proprietários, salvo pelos iranianos durante o acordo do JCPOA. Os regimes iraquiano e líbio foram derrubados e os seus sucessores bem se abstiveram de levar o caso à justiça. Desta vez, a República Bolivariana manteve-se firme e a situação dos EUA é insustentável.

Em menor escala, é interessante observar como Washington vai gerir o caso da embaixada venezuelana na capital dos EUA. Policias (Policiais-br) apareceram lá para expulsar os seus ocupantes e instalar, em seu lugar, uma equipe designada por Juan Guaidó. Mas os ocupantes legítimos recusaram ceder, apesar de lhe terem cortado a água e electricidade. Com o passar do tempo receberam reforços, entre os quais o do pastor afro-americano Jesse Jackson, que lhes veio trazer comida. Finalmente, eles foram expulsos. Agora, Washington não sabe como se justificar.

A diversão iraniana

Apitando para o fim da partida, Donald Trump chamou as tropas ao seu compromisso: derrubar Maduro «sim», envolver-se numa guerra clássica «não». O Presidente Donald Trump é um jacksoniano; o seu Conselheiro de Segurança, John Bolton, é um excepcionalista [11]; e Elliott Abrams, que fez campanha contra eles, é um neoconservador —três ideologias que não existem em nenhum outro país (excepto os neoconservadores em Israel)—. Obviamente, tal associação não pode funcionar.

Procurando safar o seu falhanço na Venezuela, o "Estado Profundo" lançou imediatamente uma manobra de diversão iraniana para salvar Elliott Abrams e livrar-se de John Bolton. A imprensa dos EUA trata de proteger o primeiro acusando o segundo [12].

Sem esperar, constatando a brecha entre o Pentágono e a Casa Branca, os Democratas relançaram a pista da ingerência russa, desta vez atacando o filho mais velho do Presidente, Donald Jr.

O dossier iraniano é muito diferente do precedente. Enquanto na Venezuela, os Estados Unidos realizam múltiplas operações, desde 2002, contra o modelo bolivariano e a sua aura na América Latina, só no ano passado começaram a agir contra o seu Povo. Pelo contrário, desde o início do século XX, o povo Iraniano teve que enfrentar o colonialismo. A fome e as doenças mataram 8 milhões de Iranianos durante a ocupação britânica da Primeira Guerra Mundial [13]. O derrube do Primeiro-ministro nacionalista, Mohammad Mossadegh, pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, em 1953, seguido da sua substituição pelo General nazi Fazlollah Zahedi, que impôs a terrível repressão da Savak, é amplamente conhecido. A prisão de agentes da CIA em flagrante delito, num andar reservado da embaixada dos EUA, continua a ser apresentada no Ocidente como a «tomada de reféns diplomatas» (1979-1981), quando Washington jamais acionou a justiça internacional a este propósito e quando dois Marines (fuzileiros navais-ndT) libertados confirmaram a versão iraniana. Em 1980, os Ocidentais pediram ao Iraque para entrar em guerra contra o Irão. Eles venderam armas aos dois campos para se matarem entre si, e bateram-se ao lado dos Iraquianos assim que a sorte começou a mudar. Um porta-aviões francês participou até nos combates sem que os franceses fossem informados. Esta guerra provocou 600.000 mortos do lado Iraniano. Em 1988, o Exército dos EUA abateu um voo comercial da Iran Air causando 290 vítimas civis, sem jamais apresentar a menor desculpa. Isto, sem falar da inépcia das pesadíssimas sanções sobre o nuclear: os Estados Unidos e Israel pretendem que Teerão prossegue o programa atómico do Xá. No entanto, os documentos mais recentes publicados por Benjamin Netanyahu mostram o que é uma extrapolação. Os Guardas da Revolução imaginaram, quando muito e no máximo, fabricar um gerador de ondas de choque [14] que, é certo, pode entrar na composição de uma bomba, mas não constitui em si uma arma de destruição maciça.

É, portanto, neste contexto que o Irão anuncia deixar de respeitar uma cláusula do acordo sobre o nuclear (JCPOA), tal como este Tratado lhe dá direito, quando a outra parte —os EUA neste caso— não respeita as suas obrigações. Além disso, deu dois meses à União Europeia para ela dizer se pretende ou não respeitar as suas obrigações. Por fim, uma agência de Inteligência dos EUA lançou um alerta segundo o qual uma nota do Guia Supremo, o Aiatola Ali Khamenei, sugeria que ele prepararia atentados contra os diplomatas dos EUA em Erbil e Bagdade.

Em resposta, 

1. Washington enviou o grupo naval militar do USS Abraham Lincoln para o Golfo e retirou o seu pessoal diplomático não-essencial do Iraque. 

2. A Arábia Saudita, que acusa Teerão de ter sabotado as suas instalações petrolíferas, apela a Washington para atacar o Irão. O Barém pediu aos seus cidadãos que deixassem de imediato o Irão e o Iraque. A ExxonMobil retirou o seu pessoal do sítio iraquiano de West Qurna 1.

3. O comandante do CentCom, o General Kenneth McKenzie Jr., pediu reforços. 

4. O New York Times revelou um plano de invasão do Irão por 120. 000 soldados norte-americanos, imediatamente desmentido por Donald Trump que apelou a Teerão para conversações.

Tudo isto não é para ser levado muito sério.

Contrariamente às elucubrações da imprensa: 

1. O relatório de Inteligência dos EUA sobre um possível ataque a diplomatas baseia-se numa nota do Guia Ali Khamenei. Mas os analistas concordam que é possível uma outra interpretação do mesmo documento [15]. 

2. O grupo naval dos EUA não foi ao Golfo para ameaçar o Irão. Já era suposto ele dirigir-se para lá há muito tempo a fim de testar o sistema de defesa anti-misseis navais AEGIS. Um navio espanhol, a fragata Méndez Núñez, que participava neste movimento, recusou prosseguir nesta missão para não se envolver no enredo. Ela não cruzou o estreito de Ormuz e permanece no de Bab el Mandeb [16]. 

3. A retirada do pessoal diplomático do Iraque situa-se dentro do movimento de retirada maciça de pessoal diplomático do Afeganistão, em Março e Abril [17]. Esta reorganização dos postos diplomáticos não anuncia a guerra. Muito pelo contrário, ela foi negociada com a Rússia.

4. Além de que, sem o apoio das milícias iraquianas pró-iranianas (milícias xiitas- ndT), os Estados Unidos perderiam a sua base de sustentação neste país.

Infelizmente, o governo iraniano recusa qualquer contacto com o Presidente Trump e a sua equipa. Deve ter-se em mente que o Xeque Hassan Rohani, quando era deputado, foi o primeiro contacto dos Ocidentais no caso Irão-Contras.

Ele conhece Elliott Abrams pessoalmente. Ele pôs o "Estado Profundo" dos EUA em ligação com o Aiatola Hashemi Rafsanjani —que se tornou o mais rico bilionário do Irão graças a esse tráfico de armas—. Foi com base nesse serviço prestado que os Estados Unidos favoreceram a sua vitória contra a equipe de Mahmoud Ahmadinejad —a qual foi impedida de participar nas eleições e cujos principais membros estão hoje presos—. Ele considera, com ou sem razão, que a saída de Donald Trump do acordo sobre o nuclear visa usar o descontentamento popular, de Dezembro de 2017, para o derrubar. Persiste em crer que a União Europeia lhe é favorável, muito embora o Tratado de Maastricht e os seguintes impeçam Bruxelas de se dissociar da OTAN. Foi, portanto, dentro de toda a lógica que ele rejeitou, por duas vezes, a oferta de conversações de Donald Trump e espera o retorno dos mundialistas à Casa Branca.

Claro, com este péssimo elenco, não se pode excluir que esta encenação derrape e provoque uma guerra. Na realidade, a Casa Branca e o Kremlin conversam. Nem o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, nem o seu homólogo russo, Serguei Lavrov, desejam deixar-se arrastar para esta engrenagem.


*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] “Os Estados Unidos vão reformar-se, ou dilacerar-se?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 26 de Outubro de 2016.
[2] « Lockerbie : vers une réouverture de l’enquête », « L’AFP réécrit l’affaire de Lockerbie », Réseau Voltaire, 29 août 2005 et 20 mai 2012.
[5] “O projecto militar dos Estados Unidos pelo mundo”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Agosto de 2017.
[6] Report On The Investigation Into Russian Interference In The 2016 Presidential Election, Special Counsel Robert S. Mueller III, March 2019.
[7] « Elliott Abrams, le "gladiateur" converti à la "théopolitique" », par Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 14 février 2005.
[8] “Plan to overthrow the Venezuelan Dictatorship – “Masterstroke””, Admiral Kurt W. Tidd, Voltaire Network, 23 February 2018.
[9] “O “Golpe de Mestre” dos Estados Unidos contra a Venezuela (Documento do Comando Sul)”, Stella Calloni, Tradução Alva, Rede Voltaire, 13 de Maio de 2018.
[10] #Trump desbloquea Venezuela, Gabinete de Ministros de Venezuela, 2019.
[11] “A ONU minada pelo «excepcionalismo» norte-americano”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 2 de Abril de 2019.
[12] “White House Reviews Military Plans Against Iran, in Echoes of Iraq War”, Eric Schmitt and Julian E. Barnes, New York Times, May 13, 2009. “Trump, frustrated by advisers, is not convinced the time is right to attack Iran”, John Hudson & Shane Harris & Josh Dawsey & Anne Gearan, Washington Post, May 15, 2019.
[13The Great Famine and Genocide in Persia, 1917–1919, Majd, Mohammad Gholi, University Press of America (2003).
[14Shock Wave Generator for Iran’s Nuclear Weapons Program: More than a Feasibility Study David Albright & Olli Heinonen, Fondation for the Defense of Democracies, May 7, 2019. (PDF - 4.3 Mo)
[15] “Intelligence Suggests U.S., Iran Misread Each Other, Stoking Tensions”, Warren P. Strobel & Nancy A. Youssef & Vivian Salama, The Wall Street Journal, May 16, 2019.
[17] “Pequim, Moscovo e Washington acordam em segredo sobre o Afeganistão”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 30 de Abril de 2019.

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