sábado, 22 de junho de 2019

Brasil | Desfaz-se com a Constituição a fronteira do absurdo


Talvez a Constituição seja mesmo só uma peça de um teatro de hipocrisia em uma sociedade em que crianças recém-nascidas estão no sinal de trânsito pedindo esmola, mas, olhando da minha perspectiva, essa hipocrisia ainda mantinha um ar de limite, uma fronteira nos dividindo da naturalização do absurdo.

Luís Carlos Valois | GGN

Não que eu tenha passado a acreditar em uma ordem constitucional que ampare o trabalhador, nem muito menos a população pobre e miserável, em um sistema que tem a exploração do mesmo trabalhador como fundamento.  As constituições nasceram para a proteção dos proprietários, de suas propriedades. As garantias constitucionais são garantias burguesas, a maioria pensada em um período da história em que os revolucionários liberais ainda temiam a perseguição monárquica.

Mas, mesmo assim, assusta a que ponto chegou o descaso para com a tal Carta Magna. Talvez o meu assombro derive da minha própria posição de privilegiado nessa sociedade tão desigual, o que não tira a necessidade, e talvez até acrescente na importância, de desabafar sobre.

Confesso também que o ânimo para escrever não anda em alta. Aliás, há muito que ele anda em decadência, porque, de absurdo em absurdo, o desespero vai tomando conta de qualquer pessoa sensata nesse país, seja de direita ou de esquerda.

Ainda que com propósitos de classe, o que somos como país, como nação, como comunidade de seres humanos mesmo, sem uma Constituição? E tudo começou com o golpe chamado de impeachment, onde a presidenta Dilma foi derrubada junto com uns dois ou três princípios constitucionais e mais alguns artigos de leis ordinárias.

Apenas para ilustrar o absurdo, porque dificilmente o absurdo tem voz, para que haja impeachment tem que haver crime. Contudo, a presidenta foi afastada, mas não foi denunciada, não foi condenada por crime algum, foi apenas deposta do cargo.

Qualquer leigo que queira ver, percebe que há algo de estranho aí, não precisa ser formado em direito, a presidenta não cometeu crime, tanto que não houve pena, tudo foi um teatro para afastá-la do governo.


Depois prendem o ex-presidente Lula porque havia visitado um apartamento e dormido em um sítio, ou vice-versa, não interessa, o que interessa é que ele era candidato à Presidência da República. Aquela parte da Constituição que diz não haver crime sem lei que o defina também foi para o saco, porque o ex-presidente foi condenado por atos indeterminados, ou seja, indefinidos.

Em seguida o país elege alguém que defende a tortura, crime hediondo expressamente rechaçado na Constituição Federal, faz manifestações racistas, sendo o racismo igualmente crime pelo próprio texto constitucional, homofóbicas, machistas, alguém que se elege proclamando um viva à morte.

Depois esse mesmo presidente eleito, que havia votado no impeachment da presidenta enaltecendo um general notoriamente reconhecido como torturador, nomeia Ministro da Justiça o juiz que havia mandado prender o ex-presidente Lula, impedindo o mesmo de concorrer nas eleições em que era favorito.

Nesse ponto foi a Constituição que não andou bem. Aparentemente nem ela, nem os constituintes, imaginaram a hipótese de um juiz mandar prender um candidato e logo depois ser nomeado ministro pelo candidato beneficiado com o afastamento do outro. Sei lá, é algo até difícil de explicar, talvez contra a constituição do bom senso, algo que devia ser proibido pela lei da natureza.

Mas como há no governo quem defenda que a terra é plana, nada mais surpreende. E para mostrar que não deve surpreender mesmo, o presidente eleito, depois de jurar sobre a Constituição Federal, diz que prometeu ao juiz uma vaga no STF antes de ele assumir o Ministério.

Em seguida surgem as conversas do juiz que prendeu o candidato, já nomeado ministro, com o promotor do processo, e descobre-se que não houve julgamento, mas um acordo de condenação, tudo combinado, tudo discutido sem a participação da defesa.

Aí foram por água abaixo os princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, entre outros que estão implícitos na própria atividade de julgar, todos da tão maltratada e combalida Constituição Federal.

Se antes esses princípios já pareciam desprezados pelo juiz ao mandar conduzir coercitivamente o réu, ao publicar interceptação telefônica que não era de sua competência e ao mandar descumprir ordem de desembargador que entendia pela soltura do ex-presidente, vindo à tona as conversas do promotor com o juiz, desfere-se o golpe fatal em tudo que a Constituição representa em termos de justiça.

A sociedade aplaudindo, porque ela mesma não se vê como um conjunto de cidadãos passíveis de sofrerem a mesma arbitrariedade, ou seja, a de ser julgada por um juiz que dialoga tão somente e em segredo com a outra parte.  A visão individual de cada um anula a visão de coletividade que permite o debate político, é cada um por si. Aliás só a figura de um juiz combatente já devia transparecer o paradoxo, juiz não devia combater nada, juiz devia ser somente juiz.

Talvez a Constituição seja mesmo só uma peça de um teatro de hipocrisia em uma sociedade em que crianças recém-nascidas estão no sinal de trânsito pedindo esmola, mas, olhando da minha perspectiva, essa hipocrisia ainda mantinha um ar de limite, uma fronteira nos dividindo da naturalização do absurdo.

Doce ilusão. Como dizia a faixada de uma penitenciária, “já que veio, seja bem-vindo”. E, nesse ponto, nos encontramos com milhares de brasileiros que nunca puderam se defender com a Constituição Federal, sejamos bem-vindos ao absurdo.

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