Para sociólogo português,
vazamentos do The Intercept podem provar ingerência na política nacional: em
conflito com a China, EUA teriam usado a Lava Jato para conseguir alinhamento
total do Brasil e liquidar Pré-Sal e Embraer
Boaventura de Souza Santos entrevistado
por Henri Figueiredo, no Sul 21 | em Outras Palavras
O sociólogo e jurista português
Boaventura de Souza Santos, das universidades de Coimbra (Portugal), de
Wisconsin-Madison e de Warwick (EUA), está em visita ao Rio Grande do Sul. No
domingo, 16 de junho, Boaventura participou do debate “Ecologia dos Saberes” na
Casa de Cultura Hip Hop (CCHH) de Esteio e repercutiu as revelações do site The
Intercept que indicam conluio entre o ministro Sérgio Moro, então juiz
federal da Lava-Jato, e o chefe da força-tarefa da operação, procurador Deltan
Dallagnol. “Não há ninguém hoje no sistema judiciário internacional que ponha
Moro como exemplo; ele é o contra-exemplo do que não se deve fazer”, afirma
Boaventura – que é também coordenador científico do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa.
O sociólogo fez questão de
participar da atividade em Esteio também pela estreita relação de amizade,
desde 2012, com o rapper Rafa Rafuagi, coordenador da CCHH. O evento foi uma
promoção conjunta da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS),
da Associação da Cultura Hip Hop de Esteio (ACHE) e do Instituto de Assessoria
às Comunidades Remanescentes de Quilombos (IACOREQ) e integrou uma série de
ações de combate ao trabalho infantil com o apoio do Ministério Público do
Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, a
tarde quente de domingo, reuniu centenas de pessoas no espaço da CCHH para
marcar o encerramento do curso organizado pela Universidade Popular do
Movimento Social (UPMS) Vozes da Periferia, do qual Boaventura é um entusiasta
e colaborador.
Sul21 – As recentes revelações do
site The Intercept, que indicam conluio entre os procuradores e o juiz da
Lava-Jato, mostram também o modus operandi que o senhor descreveu, em
recente artigo, tanto como “manipulação da opinião pública” quanto “táticas de
desinformação”. O senhor também já tinha comentado que talvez demorasse 50 anos
para o Brasil ver de fato o que ocorreu na Operação Lava-Jato. Acredita que os
fatos recentes podem ser o início desse esclarecimento da opinião pública?
Boaventura: Olhando mais para
aquilo que tem de ser feito, precisamos voltar a credibilizar o sistema
judiciário brasileiro – que passa por uma crise gravíssima. Sobretudo porque o
sistema judiciário é muito heterogêneo. Mas, normalmente, aqueles que têm um
perfil mais elevado e que, a certa altura, protagonizam a voz do Judiciário, se
cometerem algo de errado, isso repercute em toda a classe. E, portanto, neste
momento estou é preocupado com os juízes, os magistrados e os procuradores que
não têm nada a ver com esta vergonha desta manipulação – que é realmente um
estudo, um caso de laboratório. Um caso de manipulação, destruição, confusão de
papéis, violação de todos os procedimentos legais que mostra que o direito,
neste país, deixou de ser a ordem jurídica para ser a desordem jurídica.
Os juízes e os magistrados que se
envolveram nisso criaram uma desordem jurídica de consequências que, neste
momento, não podemos plenamente avaliar. E talvez leve os tais 50 anos a tentar
saber, efetivamente, qual foi o dano que se criou. Eu e aqueles que têm
formação jurídica e sociológica, e que leram as sentenças, há muito tempo
sabíamos que o presidente Lula estava inocente. Portanto, não havia realmente
prova que pudesse condená-lo. Aliás, cometeram-se atropelos de todo tipo que,
mesmo sem essas revelações, já mostrava que se o sistema judiciário brasileiro
estivesse a funcionar normalmente, os tribunais hierarquicamente superiores
haveriam de neutralizar o dano que se estava a criar ao nível de primeira
instância.
O que aconteceu foi a primeira
grande enfermidade, distorção do sistema judiciário: as instâncias superiores,
por pressão dos militares, ou não, passaram a ser subsidiárias das instâncias
inferiores. Passaram, assim, a ratificar praticamente todos os erros. Isto
criou uma desordem extraordinária e fragmentou o STF – que era uma instituição
extremamente credibilizada no Brasil e hoje está pelas horas da amargura. Ainda
é a última esperança, mas é uma esperança desesperada em função dos
acontecimentos que ocorreram nos últimos tempos.
Sul21 – O senhor considera que
essa situação pode ser uma inflexão do que chamou de “orgia de opinião” ou dos
“fluxos de opinião unânime” contra e a favor, que correm paralelos nas redes
sociais e tendem a intensificar a polarização política?
Boaventura: É evidente de
que há revelações que são do tipo daquelas de Edward Snowden, senão ainda mais
bombásticas. E até mais numerosas. E estão algumas ainda por revelar. E, ao que
sei, as que estão por revelar ainda vão causar muito mais dano a quem se
envolveu em tudo isto.
Obviamente que eles vão ver se
conseguem minimizar o dano por aquilo que fizeram até agora. E o que fizeram
até agora? Foi exatamente através das fake news que puderam criar os
tais “rios de opinião unânime” – mas já comecei a detectar que a divergência já
está no terreno.
Há os que dizem que tem de
defender o Moro, que o que ele fez é normal – e é impossível de imaginar que
alguém pense que é normal um juiz dar ordens ao procurador; dizer-lhe como ele
dever organizar seu manifesto para a imprensa para liquidar a defesa. Criou-se
um sistema em que as pessoas deixaram de dialogar. Criou-se muito o elemento do
amigo versus inimigo. Temos hoje no Whatsapp as duas tendências: os
que dizem que isso é o descalabro e Moro devia renunciar; e os que dizem que
foi nada de mau, que é normal, e nada vai acontecer.
Sul21 – Quais os riscos que o
senhor identifica em relação a uma possível sanha persecutória contra o
jornalista Gleen Greenwald, de The Intercept, com o uso de rule of
law como acontece com Julian Assange – cuja situação, neste sentido, o
senhor já comparou a de Lula? E como o senhor vê, hoje, o uso do lawfare e
a interferência dessa prática nas nossas últimas eleições, em 2018?
Boaventura: Glenn é um grande
jornalista. Deveria lhe ser concedido, tal como já defendi para Assange, o
Prêmio Nobel da Paz. Tem que se cuidar porque, obviamente, está na mira das
milícias e de todos aqueles que não querem que a verdade seja apurada. Os dados
já não estão no Brasil apenas, os dados estão a salvo. Portanto se matarem o
Glenn, não matam os dados – e teria um custo político muito grande. Podem
atacar pessoas relacionadas com o Gleen. Ele é um homem muito experiente e,
desde que tornou públicos os dados de Snowden, sabe bem como funciona o
sistema, portanto também sabe defender-se. Mas ninguém, obviamente, é isento de
qualquer fragilidade que o possa levar a um erro. Ele está a ter muito cuidado
na estratégia de publicação.
Agora, o dano principal está
feito: revelou-se internacionalmente que tudo foi uma fraude com todo o apoio
dos Estados Unidos, de onde vieram os dados da Lava-Jato. Todo o apoio foi para
que isso tivesse o efeito político de eleger Bolsonaro. Ninguém mais na direita
tinha garantido que o Pré-sal seria privatizado – que era o grande objetivo dos
EUA –, que a Embraer fosse vendida e que a Previdência fosse privatizada. Os
objetivos dos EUA são os objetivos do capital financeiro internacional e estes
só eram satisfeitos por alguém que mostrasse toda a disponibilidade, como
Bolsonaro.
Estamos num momento de grande
rivalidade entre os EUA e a China e os EUA querem alinhamentos totais para quem
está próximo; e queria o Brasil totalmente alinhado. O impeachment da
presidente Dilma foi parte deste processo. A condenação do presidente Lula,
também. Portanto, agora vamos ver se as forças democráticas deste país
finalmente se levantam diante deste enorme atropelo da justiça que está a fazer
da democracia uma ditadura.
Penso que Moro está apoiado pelos
militares e isto talvez seja a sua segurança – já que não tem prestígio
internacional nenhum. Este homem foi duas vezes, em dois meses, a Portugal
vender a delação premiada. Não foi aplaudido como queria e foi criticado pela
nossa ministra da Justiça e pela ex-procuradora-geral. Portanto, falhou nos
seus objetivos internacionais. Não há ninguém hoje no sistema judiciário
internacional que ponha Moro como exemplo; ele é o contra-exemplo do que não se
deve fazer.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário