domingo, 2 de junho de 2019

Cristina Tavares, duas vezes despedida: “Humilhada, trabalhava à força de medicação”


Portugal - Empresariado esclavagista

Operária corticeira, vítima de assédio moral, conta a forma como foi tratada pela empresa Fernando Couto depois de o tribunal impor a sua reintegração

Aos 48 anos, esta operária revela uma resistência e uma resiliência incomuns. Foi despedida em janeiro de 2017 da corticeira Fernando Couto, de Santa Maria da Feira, mas o tribunal obrigou à sua reintegração e condenou a empresa a pagar uma coima de €31 mil por assédio moral à trabalhadora. De volta ao trabalho foi alvo de represálias e novamente despedida no início deste ano. A empresa tem pendente outra multa de 11 mil euros por o segundo despedimento ter igualmente sido considerado contrário à lei. Cristina Tavares vai voltar a tribunal, no final de junho, para lutar pelo seu posto de trabalho.

Qual é a sua situação atual?

Estou no fundo de desemprego e a fazer um curso de formação durante a manhã.

Tem vivido situações complexas do ponto de vista humano. O que foi o pior para si?

Estar a fazer paletes numa plataforma muito alta e debaixo de um calor imenso. O que passei lá não desejo a ninguém. Era fazer paletes e depois de estar pronto, desfazer, para voltar a fazer e voltar a desfazer. Não saía daquilo. Punha um saco, amassava, punha outro saco. Quando estavam os quatro sacos feitos, desmontava tudo e começava de novo. Sentia-me humilhada. Trabalhava à força de medicação.


Desabafava com alguém?

Com a minha mãe. Chegava a casa e falava sozinha. Chorava. Sem o meu filho ver, chorava. Porque tudo o que sinto, o meu filho apercebe-se. E sofre com isso.

Quando lhe propuseram uma indemnização para ser despedida recusou. Porquê?

Porque preciso do meu posto de trabalho e ele está lá. A indemnização dura um ano, dois anos. Ao fim desse tempo eu ia viver de quê? Sou sozinha com um filho com problemas de saúde. Vivo do meu ordenado. E depois? Sou nova para ir para a pré-reforma. Estive um ano no fundo de desemprego. Enviei vários currículos. Até hoje não fui chamada por ninguém. Por ter passado por isso é que tento manter o meu posto de trabalho e luto por ele.

Como se tornou escolhedora, a função que tem ocupado ao longo de todos estes anos?

Trabalho na escolha desde os 13 anos. Fiz o 6º ano e depois fui aprender costura porque o meu pai achava que as mulheres tinham de saber costurar.

Foi trabalhar contrariada?

Queria estudar. Queria ser empregada de escritório, mas não me deixaram. Um dia o meu pai chegou à hora do almoço e disse: “Cristina, prepara-te que vais trabalhar de tarde.”

Era uma criança….

Pois era, mas tive que crescer. Crescer rápido. Com 13 anos, chegava a casa, tomava banho e ia ver os macaquinhos [desenhos animados].

Teve meninice? Qual a sua memória mais antiga?

A primeira e única boneca que a minha mãe me deu, teria eu uns nove anos. Foi no Natal. Deu-me uma bonequinha de plástico dentro de um cestinho. Nunca tinha tido uma boneca. Depois, quando comecei na costura, fazia umas roupitas para ela. Isso ficou-me marcado.

Nunca mais pensou estudar?

Pensei. Desde sempre, o meu orgulho era ter o 12º ano. Na altura em que me divorciei, na Amorim & Irmãos, onde trabalhava, andavam a perguntar quem queria fazer o 9º ano em regime pós-laboral. Eu inscrevi-me logo. Quando vim para esta empresa perguntaram-me se queria fazer o 12º, e eu fui.

Porque era tão importante para si fazer o 12º ano? Só por orgulho?

Não. Na Amorim & Irmãos, por exemplo, já só aceitam quem tiver o 12º ano. Queria preparar o meu futuro. Se algum dia acontecesse alguma coisa, o diabo seja surdo [bate três vezes no tampo de madeira da mesa], a empresa falisse, e que fosse preciso procurar emprego, eu, tendo o 12º ano estava à frente dos que tivessem o 9º ano.

É supersticiosa?

Sim, um bocado.

Isso traduz-se em quê?

Na minha religião. Agarro-me muito a Nossa Senhora, e tem-me ajudado bastante.

Reza?

Rezo muito. Rezo muitos terços. Sozinha. Ainda esta semana rezei dois terços seguidos. Um dos terços que tenho foi a minha mãe que me trouxe de Fátima, benzido. Esse é o que tenho em casa. O outro pequenino é o que me acompanha todos os dias. Rezar é o que me dá paz e forças para nunca desistir do meu posto de trabalho.

É uma lutadora?

Desde sempre lutei. Não desisto daquilo que quero. Já é de mim. Não consigo ser diferente. Mas peço ajuda. Confio e tenho fé em Nossa Senhora de Fátima e agarro-me muito a isso.

O seu filho precisa de apoio?

Foi sempre muito doente. Já foi operado quatro vezes aos olhos. Quando entrou na escola descobrimos que era hiperativo, com défice de atenção. Aos 11 anos descobrimos que tinha síndrome de Asperger. Em 2016 foi operado à coluna, tem pedra nos rins, tem problema nos intestinos...

A sua luta é também pelo seu filho?

Claro que é. Por ele, e por mim. Por nós os dois. Ele ainda estuda. Tem 21 anos. Esteve no ensino especial. Está no 12º ano. É autónomo, mas precisa de atenção especial.

Quem a tem apoiado ao longo deste processo?

A minha mãe, o meu filho, o Sindicato dos Corticeiros, a CGTP. Amigos, também.

Neste momento, o que espera?

A reintegração no posto de trabalho. É por isso que luto e não vou desistir. Se me disserem para ir trabalhar amanhã, eu vou.

Valdemar Cruz | Expresso | Foto: Rui Duarte Silva

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