Em meio à crise civilizacional, risco de descer mais um degrau. Abandonadas pela democracia, maiorias seguem
exemplo dos políticos: renunciam ao futuro e votam segundo interesses cada vez
mais mesquinhos e oportunistas
Slawomir Sierakowski | Outras
Palavras | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Yue Minjun, Arca
de Noé, (2006)
Muitos dos que votaram em Donald
Trump para presidente dos EUA sabiam que ele é um mentiroso contumaz, assim
como a base do Partido Conservador no Reino Unido sabe que Boris Johnson (1), primeiro-ministro,
subiu trapaceando
e mentindo. Na Polónia, não é segredo que o partido do governo, Lei e
Justiça (PiS), está inchando as instituições de governo com seus lacaios,
deformando a mídia pública, recompensando comparsas e minando a independência
dos tribunais. No entanto, o PiS goleou os partidos de oposição da Polónia nas
eleições para o Parlamento Europeu, em maio.
O fato de polacos, britânicos e
norte-americanos abrirem as portas para governos moralmente falidos é
sintomático daquilo que o filósofo alemão Peter Sloterdijk descreveu como
“razão cínica” no início dos anos 1980. Sloterdijk argumentava que, na ausência
de narrativas de progresso amplamente compartilhadas, as elites ocidentais
absorveram as lições do Iluminismo mas as colocaram a serviço de interesses
pessoais estreitos, ao invés do bem comum. Problemas sociais tais como a pobreza
e a desigualdade já não podiam mais ser atribuídos somente à ignorância humana.
Contudo as pessoas esclarecidas não tinham determinação para resolvê-las. Como diz Slavoj Zizek, hoje a operação da
ideologia já não é “eles não sabem, mas estão fazendo”, e sim “eles sabem, mas
estão fazendo assim mesmo”.
Grandes ideias que prometem
significativas mudanças sociais, sejam elas da democracia social ou da
democracia cristã, estão encontrando ressonância somente entre as gerações mais
velhas. Eleitores indiferentes ao fato de que populistas como Trump ou o
primeiro-ministro húngaro Viktor Orban mudam suas declarações de um dia para o
outro não são admiradores cegos do poder. São apenas defensores de seus
próprios interesses particulares. Se reduzir emissões de gás de esfeito estufa
significa fechar minas de carvão e usinas termoelétricas a carvão, aqueles que
têm interesse no setor de carvão não apoiarão as políticas climáticas. Da mesma
forma, aqueles que vivem nas áreas mais ricas não se importam muito com a
demissão dos mineradores de carvão.
Na Europa, a emergente divisão
entre Verdes e populistas parece refletir um novo eixo pós-ideológico. Nos dois
lados da linha divisória, os eleitores comportam-se agora como velhos
políticos, destacando determinados assuntos enquanto evitam outros
cuidadosamente. Eles internalizaram a linha partidária (muitas vezes uma colcha
de retalhos de antigas políticas de esquerda e direita), que repetem em grupos
de discussão, nas mídias sociais e em torno da mesa de jantar. Os partidos
políticos já não representam os eleitores; ao contrário, os eleitores
representam os partidos, às vezes até antes de emergirem, como demonstraram os
protestos dos coletes amarelos na França.
A presidência de Trump, o
desastre do Brexit do Reino Unido e a ascensão do PiS e de Orban sugerem uma
generalizada perda de fé no progresso. A visão de progresso da Europa Oriental
foi por muito tempo sinónimo de transição do comunismo ao capitalismo. Mas três
décadas de aperto dos cintos à espera de um amanhã melhor cobraram uma pesada
taxa de confiança das pessoas na democracia liberal. O populismo apela aos
eleitores com sua promessa de uma espécie de revolução de Copérnico, revertendo
o aperto dos cintos, bem como as suposições predominantes no passado.
Pouco depois da vitória do PiS
nas eleições para o Parlamento Europeu, nas quais ele obteve 45,5% dos votos, o
serviço de notícias OKO.press perguntou aos
poloneses, “O atual governo do PiS persegue os próprios interesses partidários
mais do que os governos anteriores do PO-PSL (Partido Popular Polaco-Plataforma
Cívica)?”
No total, 68% dos entrevistados
responderam que sim e apenas 24% disseram que o PiS tem menos interesses do que
seus predecessores. Mesmo entre os eleitores do PiS, 38% reconheceram que o
aparato estatal está mais aparelhado do que sob o PO e o PSL. Quando
perguntados se o governo atual do PiS faz mais para o ganho financeiro pessoal
de seus funcionários do que o governo anterior do PO-PSL, 58% consideram o PO e
o PSL mais honestos.
Contudo, em pesquisas qualitativas
com eleitores polacos ouve-se consistentemente coisas do tipo “Sei que o PiS
não é particularmente honesto, mas eles cuidam das pessoas; roubam e enrolam,
mas ao menos repartem”. Em outras palavras, esses eleitores apoiam o
PiS a despeito de seus óbvios defeitos, porque não acreditam que podem dar-se
ao luxo de votar contra o partido que, à sua maneira, tem canalizado dinheiro e
outros benefícios sociais em sua direção.
A teoria das perspectivas, modelo
de economia comportamental introduzido pelos ganhadores do Prémio Nobel Daniel
Kahneman e Amos Tversky, prevê que
as pessoas se tornarão menos avessas ao risco se lhes forem apresentadas apenas
possibilidades negativas. Nosso cálculo depende não apenas do que podemos
ganhar ou perder em termos absolutos, mas de nossas expectativas e situação
atual. Quando alguém que está esperando um pagamento alto recebe menos do que
imaginava, fica decepcionado, ao invés de sentir-se satisfeito por ter pelo
menos ganho alguma coisa.
Essa heurística mostra como os
eleitores podem tornar-se ligados a políticos tipo Trump ou o líder do PiS
Jaroslaw Kacynski. Eleitores polacos, britânicos e norte-americanos fizeram
escolhas políticas que sabem ser arriscadas porque sentem que não têm nada a
perder e, afinal, suas opções são entre “ruim” e “pior”. A defesa de ideais
elevados como a democracia, a ordem constitucional e a liberdade de imprensa
parece um luxo exorbitante. Eles não estão dispostos a sacrificar benefícios
materiais por princípios abstratos.
Quem pode culpá-los? As corporações
multinacionais ocidentais que fazem negócios na Rússia, China e outros países
vêm há anos sacrificando o liberalismo em nome do lucro. Como Sloterdijk
observou quase 40 anos atrás, a razão cínica escorre para baixo. Se isso ao
menos fosse verdade sobre a riqueza, a história poderia ter sido bem diferente.
*Slawomir Sierakowski, fundador do
movimento Krytyka Polityczna, é diretor do Instituto de Estudos Avançados em
Varsóvia e membro da Academia Robert Bosch em Berlim.
(1) Texto publicado em Outras
Palavras a 22/7 e atualizado por Página Global em 23/7 no referente à recente eleição
do britânico Boris Johnson primeiro-ministro.
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