O neoliberalismo não tem género.
Não será certamente por estar uma mulher à frente da Comissão Europeia que os
salários e direitos das mulheres nas fábricas, nos serviços, na sociedade em
geral vão registar os avanços que estão registados nas leis.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Duas mulheres foram escolhidas
para cargos de grande destaque no gigantesco aparelho burocrático neoliberal
que é a União Europeia. Ao cabo de um opaco processo de tráfico de influências,
a alemã Ursula von der Leyen emergiu como escolha final para a presidência da
Comissão Europeia; e a directora-geral do FMI, Christine Lagarde, foi designada
presidente do Banco Central Europeu.
Duas mulheres politicamente de
extrema-direita deixando atrás de si, em lugares que ocuparam recentemente,
rastos de incompetência, clientelismo e corrupção.
Tais nomeações, contudo, foram
enaltecidas como grandes passos para a igualdade de género. Uma mistificação no
meio da nuvem cerrada de mistificações em que se move a União Europeia.
O manuseamento propagandístico
das chamadas «causas fracturantes» funciona hoje como um método cada vez mais
apurado para salvaguardar a estagnação social, tentando vedar o combate às
questões de fundo da austeridade, da injustiça e da supressão de direitos; um
artifício que encoraja a realização de acções sectoriais com efeitos inócuos e
limitados, quando muito registando pequenas vitórias que salpicam um caminho
tortuoso e sem fim à vista. Como se as lutas contra a discriminação de género e
a degradação ambiental, por exemplo, se esgotem em si próprias, de maneira
autónoma, e possam ser resolvidas com êxito à margem do funcionamento global da
sociedade que alimenta tais problemas.
O cenário assim instaurado é o
sétimo céu da autocracia neoliberal global – o regime em que vivemos. Os
«grandes avanços» traduzidos pelo facto de haver agora mulheres à frente de
aparelhos de decisão da União Europeia fomentam uma poderosa ilusão de que as
coisas estão a mudar num sentido «progressista» e de superação de velhas
desigualdades. Para que tudo continue na mesma.
Isto é, para que a União Europeia
e outros aparelhos do globalismo que aprofunda as desigualdades e as injustiças
humanas continuem a funcionar como trituradores de direitos e princípios. Com
homens ou mulheres à cabeça, tanto faz.
Neoliberalismo tem género?
Ursula von der Leyen, política
alemã da ala direita do partido da chanceler Angela Merkel, transitou de
ministra da Defesa da Alemanha para presidente da Comissão Europeia. Mantém a
submissão executiva à NATO, que tutela de facto a União Europeia; e,
entretanto, estão por confirmar as informações segundo as quais a sua nomeação
foi recomendada pela administração Trump, como segunda escolha em relação ao
favorito original, Manfred Weber.
A veracidade destas informações
não tardará a ser posta à prova. A pedra de toque será a atitude de von der
Leyen em relação à exigência norte-americana de cancelamento da construção do
gasoduto North Stream 2.
Sabendo-se que este assunto é
motivo de antagonismo forte entre Trump e a chanceler Merkel, que se bate pela
construção do gasoduto entre a Rússia e a Alemanha, rapidamente se verá de que
lado estará a presidente da Comissão, isto é, se a exemplo de Manfred Weber,
funcionará como uma agente dos interesses norte-americanos ou, pelo contrário,
contribuirá para que os europeus tenham gás natural mais barato e menos nocivo
para o ambiente.
Seria de supor que a nomeação de
Ursula von der Leyen resultasse de algo mais do que baixa barganha política
eurocrática e tivesse, no mínimo, uma base de competência executiva a
sustentá-la. Parece que também não é o caso.
Todos os partidos alemães no
Parlamento Europeu, com excepção dos cristãos democratas, se manifestaram
contra a escolha de von der Leyen, ao que parece pelo nada dignificante papel
desempenhado à frente do Ministério da Defesa.
No consulado desta mulher de
extrema-direita o Estado gastou mais do que nunca, em tempos recentes, com as
forças armadas do país; e nunca estas, segundo os peritos, estiveram em nível
tão baixo de qualidade e prontidão.
Enquanto os inquéritos em curso
não fizerem luz sobre suspeitas de clientelismo ou outras formas de corrupção,
fica, para já, uma nota medíocre em termos de competência e desempenho da
ministra da Defesa, qualidades que parecem não ser imprescindíveis para o cargo
de chefe da Comissão Europeia, como já se sabia pelas prestações dos
antecessores de von der Leyen.
Extrema-direita, militarismo,
federalismo, ortodoxia neoliberal são, portanto, os atributos que a ministra
alemã da Defesa leva para a presidência da Comissão Europeia. Há quem prefira
enaltecer o facto de ser mulher, colocando a questão de género acima das
convicções e aptidões políticas, como se mulheres como Margareth Thatcher,
Angela Merkel ou Hillary Clinton, por sê-lo, fossem mais recomendáveis e mais
«progressistas» que os homens cumprindo os mesmos preceitos da direita
política, do militarismo e da autocracia neoliberal.
O neoliberalismo não tem género.
Não será certamente por estar uma mulher à frente da Comissão Europeia que os
salários e direitos das mulheres nas fábricas, nos empregos, nos serviços, na
sociedade em geral vão registar os avanços que estão registados nas leis, em
tantos casos só para mistificar e fazer de conta. E também não será por isso
que a austeridade deixará de fustigar as famílias.
Mulher certa no lugar certo
À lista de mulheres atrás citadas
pode e deve acrescentar-se Christine Lagarde, chefe do FMI e agora do Banco
Central Europeu. A sua condição feminina não promete, nem garante, qualquer
alteração da gestão opaca e antidemocrática deste órgão que, além de gerir o
euro ao estilo do marco alemão representa o nível de topo da decisão
eurocrática – logo autocrática.
As compatibilidades entre Christine
Lagarde e gestão transparente formam um conjunto vazio. Quando saltou de
ministra das Finanças do corrupto presidente Sarkozy para a cabeça do templo do
neoliberalismo que é o Fundo Monetário Internacional, Lagarde estava, também
ela, envolvida num escândalo que lesou o Estado francês em pelo menos 400
milhões de dólares em proveito do empresário mafioso Bernard Tapie.
A Justiça francesa chegou a
atingir a própria Lagarde mas terá, entretanto, mudado de caminho,
provavelmente porque a estes níveis político-financeiros passa a gerir-se por
outros códigos.
É uma mulher assim que se senta
no trono do euro, ao serviço do casino financeiro onde giram as roletas do
Goldman Sachs e afins. Para o caso, o género de Lagarde interessa tanto como o
do seu antecessor, Mario Draghi. Não será através dela que uma sociedade que
discrimina as mulheres passará a ser menos segregacionista nessa matéria.
Com Lagarde ou outro nome –
independentemente do género – que tivesse resultado do tráfico clandestino de
influências que determinou os chefes dos órgãos da União Europeia, o Banco
Central Europeu continuará a ser o que sempre foi e aquilo para que nasceu: um
instrumento de ditadura económico-financeira.
A peregrinação de Ursula
Quando Ursula von de Leyen
peregrinou pelos vários grupos do Parlamento Europeu, tentando vender a cada um
deles o que era suposto estes gostarem de ouvir para depois responderem com
votos, a presidente da Comissão Europeia prometeu medidas a eito, e também as
suas contrárias quando isso foi conveniente, liberdades permitidas por quem não
precisou de programa porque na União Europeia bastam o nome e as recomendações
que o impõem.
Apesar do carácter absurdo do
périplo, do qual não se houve nada bem porque acabou por ser salva pelas boas
vontades das extremas-direitas polaca e húngara, von der Leyen contribui para
dar exemplos de como funcionam os processos de mistificação nos areópagos
eurocratas.
Numa sessão de propaganda, a
presidente da Comissão chegou a prometer a instituição de um salário mínimo
europeu – evidentemente uma ofensa ao catecismo neoliberal e a todos os
argumentos austeritários que vigoram na União; e garantiu que irá tomar medidas
para combater a degradação ambiental.
Não a levaram a sério – nem era isso que estava em causa – mas as promessas ambientais ficam como exemplo de que o tratamento «autónomo» das chamadas «causas fracturantes» se tornou, afinal, um instrumento transpartidário no especto político.
Querer resolver os problemas
ambientais do planeta através de promessas e medidas avulsas é a melhor maneira
de garantir que se cumpram as piores projecções de quem sabe verdadeiramente do
assunto.
As desigualdades de género, como
a discriminação de minorias, as várias segregações, a poluição ambiental não se
resolvem por compartimentos. Tal como o desemprego, as gritantes desigualdades
de desenvolvimento, a perseguição aos direitos laborais e cívicos, a crescente
injustiça na distribuição de rendimentos não se combatem sem promover mudanças
profundas nas estruturas, organizações e mentalidades vigentes na sociedade.
Ter a ilusão de que os grandes
poluidores e predadores do planeta são parte da luta por um meio ambiente mais
saudável é o mesmo que acreditar na possibilidade de os que lucram com a
«liberalização do mercado de trabalho» se empenharem no combate ao
desemprego. Da mesma maneira que uma mulher à frente do aparelho autocrático da
Comissão Europeia em nada contribuirá para promover a igualdade de género.
A propaganda global engendrou
estas mistificações para que, afinal, nada mude no funcionamento e organização
da sociedade global neoliberal exploradora, destruidora e assente na mentira.
Aceitá-las é um perigo para a
humanidade.
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