sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Timor-Leste | Uma ilha atravessada na garganta


Isto foi mesmo assim, juro. A avó Ermelinda avisou-me: "Se fores a Timor, bebe muito gin tónico. Tem quinino. Protege-te do paludismo." Ela sabia, tinha lá vivido com o meu avô, ainda antes da II Guerra. Foi o que fiz quando embarquei, algures em março de 1992, em Darwin, no norte da Austrália, num ferry sobrelotado de ativistas e jornalistas que pretendiam rumar a Díli, na "Missão Paz em Timor", a bordo de um ferry chamado "Lusitânia Expresso". O objetivo era colocar uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz, em homenagem às vítimas do massacre que em novembro do 1991 tinha colocado Timor nas primeiras páginas da imprensa mundial (de onde nunca mais saiu até ao referendo da independência, em 1999).

João Pedro Henriques | Diário de Notícias | opinião

A água tónica acabou mas o gin não e portanto, obediente, continuei a consumi-lo, a bem da saúde. Admito que já estaria ligeiramente desfocado quando, durante a noite - infernalmente quente e húmida - percebi que começava a surgir no radar do nosso ferry um pontinho luminoso verde. Era a ilha cujos destinos eu acompanhava há apenas alguns meses, ao serviço da Agência Lusa. Estava muito escuro quando, num telefone por satélite, ditei a notícia, excitadíssimo mas tentando disfarçar a névoa do gin: "Timor já nos radares do Lusitânia Expresso". Que orgulho foi dar essa "cacha" ao mundo!

Depois amanheceu e a silhueta da ilha foi-se revelando. Ficou claro: as montanhas onde se escondiam Xanana e os seus guerrilheiros eram a sério, altas, abruptas, só para profissionais. Ao mesmo tempo percebemos todos que as luzes que nos tinham acompanhado a noite toda num trajeto paralelo ao ferry eram mesmo de duas fragatas da Armada indonésia, uma a estibordo, outra a bombordo.

Rapidamente chegou de lá a ordem: parem e deem meia volta. Lágrimas, raiva, fúria - e a ordem cumprida sem demora. Foi tudo demasiado rápido. No regresso a casa chamaram-me estúpido: o quinino do gin tónico está na água, não no gin. Poderia não ter continuado a beber. Mas apetecia-me: ficou-me encravada na garganta uma pequena ilha algures no sudeste asiático.

E passam sete anos, passamos para setembro de 1999. A minha redação já era outra, a do Público. O referendo de autodeterminação tinha sido em agosto - passam hoje 20 anos - e era necessário render o jornalista que lá estivera o ano todo: Luciano Alvarez estava à beira da exaustão, se não mesmo para lá disso.

Fora o orgulho do jornalismo português todo quanto, em conjunto com o José Vegar, Jorge Araújo e Hernâni Carvalho, ficara sitiado na Unamet (a entidade da ONU organizadora da consulta), em Díli, enquanto as milícias timorenses pró-indonésias, apoiadas pelas forças militares e de segurança da potência invasora, destruíam a ilha toda, vingando-se da derrota nas urnas.

A certa altura, quando os últimos da Unamet vieram embora, por absoluta falta de condições de segurança, o Luciano recuou para Darwin - e lá fui ter com ele, posto à pressa pela minha redação num vôo fretado pelo Governo português para levar até Díli uma missão de ajuda humanitária (bombeiros, sobretudo, numa escolha imbecil, visto que o essencial já tinha ardido e nem rescaldo era preciso).

Foram aí umas duas semanas de espera em Darwin até conseguir um avião que me pusesse em Díli - e o pesadelo era o de aquela ilha me escapar de novo por entre os dedos. O nó na garganta começava a ter a dimensão metafórica do Ramelau, a montanha mais alta de Timor - e que durante umas centenas de anos fora também a montanha mais alta de Portugal (2986 metros).

O avião que me levou era um pequeno Tupolev de uma coisa chamada "Air Vega", avião pilotado por dois ucranianos, que, imaginei, o teriam surripiado às Forças Armadas soviéticas quando o império colapsou. Aterrei em Díli numa manhã igual às outras todas de Díli: quente, húmida, sufocante. Nessa altura a ilha já estava "ocupada" por uma força armada da ONU composta essencialmente australianos. Mas os indonésios ainda não tinham saído. E nem Xanana (ainda em Jacarta) nem o bispo Ximenes Belo (em Lisboa) tinham voltado.

Vivia-se uma felicidade caótica e cheia de incerteza... A administração pública deixara de funcionar. A economia resumia-se a mercados de rua onde os agricultores vendiam as suas produções. Os chineses, entalados entre o racismo dos indonésios e o racismo dos timorenses, tinham fugido, fechando as suas lojas. A Indonésia desligara a rede telefónica (fixa e de telemóvel), o abastecimento de água não funcionava nem o saneamento básico, os políticos timorenses pró independência - alguns dos quais rapidamente convertidos à causa depois de anos de colaboração com as autoridades de Jacarta - entretinham-se em disputas idiotas sobre coisa nenhuma. Não havia um restaurante aberto, os dois hotéis de Díli estavam ambos semi destruídos (mas utilizáveis por ocupação à força das centenas de jornalistas que invadiram a cidade). A única instituição que funcionava era a Igreja - e foram freiras católicas que, a troco de meia dúzia de dólares de mensalidade, alimentaram muitos jornalistas durante semanas. Os cães nas ruas, esfomeados, comiam-se uns aos outros; os miúdos já não encontravam nenhuma fruta madura nas árvores. O Estado desaparecera; a economia privada também. E, pelo meio, restavam na sombra alguns timorenses das milícias pró-indonésias: um jornalista do Finantial Times foi assassinado em Díli logo nos primeiros dias da presença militar australiana.

Para todos ficou evidente: faltava tudo: economia, uma classe política digna desse nome, quadros técnicos (economistas, juristas, engenheiros, o que fosse) minimamente aptos, destino a dar a um número inexplicavelmente crescente de veteranos da guerrilha timorense, polícia, professores, tudo. Só existia a Igreja - e esta, depois de anos a proteger quem se rebelava contra os invasores indonésios, revelava agora a sua natureza profundamente conservadora, boicotando, por exemplo, as campanhas das agências internacionais de promoção da saúde pública que incluíam, por exemplo, a distribuição de preservativos. As Nações Unidas tinham uma longa missão ainda a desempenhar preparando o território para se tornar no primeiro país independente do século XXI.

Semanas depois Xanana chegou a Díli e soltou, para uma multidão à beira da histeria, o gutural "Viiiiiiiiiiiiiva Timor-Lorosae!" que nunca mais esqueceremos. Dias depois, o chefe dos timorenses foi ao aeroporto despedir-se dos últimos generais indonésios que regressavam a casa. Um deles protestou: "Chegou três horas atrasado..." Xanana respondeu: "E vocês partem com quase trinta anos de atraso."

Sem comentários:

Mais lidas da semana