Isto foi mesmo assim, juro. A avó
Ermelinda avisou-me: "Se fores a Timor, bebe muito gin tónico. Tem
quinino. Protege-te do paludismo." Ela sabia, tinha lá vivido com o meu avô,
ainda antes da II Guerra. Foi o que fiz quando embarquei, algures em março de
1992, em Darwin, no norte da Austrália, num ferry sobrelotado de ativistas e
jornalistas que pretendiam rumar a Díli, na "Missão Paz em Timor", a
bordo de um ferry chamado "Lusitânia Expresso". O objetivo era
colocar uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz, em homenagem às vítimas
do massacre que em novembro do 1991 tinha colocado Timor nas primeiras páginas
da imprensa mundial (de onde nunca mais saiu até ao referendo da independência,
em 1999).
João Pedro Henriques | Diário de
Notícias | opinião
A água tónica acabou mas o gin
não e portanto, obediente, continuei a consumi-lo, a bem da saúde. Admito que
já estaria ligeiramente desfocado quando, durante a noite - infernalmente
quente e húmida - percebi que começava a surgir no radar do nosso ferry um
pontinho luminoso verde. Era a ilha cujos destinos eu acompanhava há apenas
alguns meses, ao serviço da Agência Lusa. Estava muito escuro quando, num
telefone por satélite, ditei a notícia, excitadíssimo mas tentando disfarçar a
névoa do gin: "Timor já nos radares do Lusitânia Expresso". Que
orgulho foi dar essa "cacha" ao mundo!
Depois amanheceu e a silhueta da
ilha foi-se revelando. Ficou claro: as montanhas onde se escondiam Xanana e os
seus guerrilheiros eram a sério, altas, abruptas, só para profissionais. Ao
mesmo tempo percebemos todos que as luzes que nos tinham acompanhado a noite
toda num trajeto paralelo ao ferry eram mesmo de duas fragatas da Armada
indonésia, uma a estibordo, outra a bombordo.
Rapidamente chegou de lá a ordem:
parem e deem meia volta. Lágrimas, raiva, fúria - e a ordem cumprida sem
demora. Foi tudo demasiado rápido. No regresso a casa chamaram-me estúpido: o
quinino do gin tónico está na água, não no gin. Poderia não ter continuado a
beber. Mas apetecia-me: ficou-me encravada na garganta uma pequena ilha algures
no sudeste asiático.
E passam sete anos, passamos para
setembro de 1999. A
minha redação já era outra, a do Público. O referendo de autodeterminação
tinha sido em agosto - passam hoje 20 anos - e era necessário render o jornalista
que lá estivera o ano todo: Luciano Alvarez estava à beira da exaustão, se não
mesmo para lá disso.
Fora o orgulho do jornalismo
português todo quanto, em conjunto com o José Vegar, Jorge Araújo e Hernâni
Carvalho, ficara sitiado na Unamet (a entidade da ONU organizadora da
consulta), em Díli, enquanto as milícias timorenses pró-indonésias, apoiadas
pelas forças militares e de segurança da potência invasora, destruíam a ilha
toda, vingando-se da derrota nas urnas.
A certa altura, quando os últimos
da Unamet vieram embora, por absoluta falta de condições de segurança, o
Luciano recuou para Darwin - e lá fui ter com ele, posto à pressa pela minha
redação num vôo fretado pelo Governo português para levar até Díli uma missão
de ajuda humanitária (bombeiros, sobretudo, numa escolha imbecil, visto que o
essencial já tinha ardido e nem rescaldo era preciso).
Foram aí umas duas semanas de
espera em Darwin até conseguir um avião que me pusesse em Díli - e o pesadelo
era o de aquela ilha me escapar de novo por entre os dedos. O nó na garganta
começava a ter a dimensão metafórica do Ramelau, a montanha mais alta de Timor
- e que durante umas centenas de anos fora também a montanha mais alta de
Portugal (2986 metros ).
O avião que me levou era um
pequeno Tupolev de uma coisa chamada "Air Vega", avião pilotado por
dois ucranianos, que, imaginei, o teriam surripiado às Forças Armadas
soviéticas quando o império colapsou. Aterrei em Díli numa manhã igual às
outras todas de Díli: quente, húmida, sufocante. Nessa altura a ilha já estava
"ocupada" por uma força armada da ONU composta essencialmente
australianos. Mas os indonésios ainda não tinham saído. E nem Xanana (ainda em
Jacarta) nem o bispo Ximenes Belo (em Lisboa) tinham voltado.
Vivia-se uma felicidade caótica e
cheia de incerteza... A administração pública deixara de funcionar. A economia
resumia-se a mercados de rua onde os agricultores vendiam as suas produções. Os
chineses, entalados entre o racismo dos indonésios e o racismo dos timorenses,
tinham fugido, fechando as suas lojas. A Indonésia desligara a rede telefónica
(fixa e de telemóvel), o abastecimento de água não funcionava nem o saneamento
básico, os políticos timorenses pró independência - alguns dos quais
rapidamente convertidos à causa depois de anos de colaboração com as
autoridades de Jacarta - entretinham-se em disputas idiotas sobre coisa
nenhuma. Não havia um restaurante aberto, os dois hotéis de Díli estavam ambos
semi destruídos (mas utilizáveis por ocupação à força das centenas de
jornalistas que invadiram a cidade). A única instituição que funcionava era a
Igreja - e foram freiras católicas que, a troco de meia dúzia de dólares de
mensalidade, alimentaram muitos jornalistas durante semanas. Os cães nas ruas,
esfomeados, comiam-se uns aos outros; os miúdos já não encontravam nenhuma
fruta madura nas árvores. O Estado desaparecera; a economia privada também. E,
pelo meio, restavam na sombra alguns timorenses das milícias pró-indonésias: um
jornalista do Finantial Times foi assassinado em Díli logo nos
primeiros dias da presença militar australiana.
Para todos ficou evidente:
faltava tudo: economia, uma classe política digna desse nome, quadros técnicos
(economistas, juristas, engenheiros, o que fosse) minimamente aptos, destino a
dar a um número inexplicavelmente crescente de veteranos da guerrilha
timorense, polícia, professores, tudo. Só existia a Igreja - e esta, depois de
anos a proteger quem se rebelava contra os invasores indonésios, revelava agora
a sua natureza profundamente conservadora, boicotando, por exemplo, as
campanhas das agências internacionais de promoção da saúde pública que
incluíam, por exemplo, a distribuição de preservativos. As Nações Unidas tinham
uma longa missão ainda a desempenhar preparando o território para se tornar no
primeiro país independente do século XXI.
Semanas depois Xanana chegou a
Díli e soltou, para uma multidão à beira da histeria, o gutural
"Viiiiiiiiiiiiiva Timor-Lorosae!" que nunca mais esqueceremos. Dias
depois, o chefe dos timorenses foi ao aeroporto despedir-se dos últimos
generais indonésios que regressavam a casa. Um deles protestou: "Chegou
três horas atrasado..." Xanana respondeu: "E vocês partem com quase
trinta anos de atraso."
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