Para aos dirigentes europeus só
existem a verdade de Bruxelas e a mentira do Kremlin. É preto ou branco, quem
discorda de Bruxelas concorda com o Kremlin e com os terroristas islâmicos.
Uma viagem ao mundo da
«estratégia de comunicação» da União Europeia e respectivas emanações é uma
experiência indispensável para confirmar os indícios de que os dirigentes
europeus convivem cada vez mais desconfortavelmente com a liberdade de opinião.
Na verdade, como ilustra essa incursão, já encaram a informação como
propaganda, o contraditório como um abuso e a liberdade como um delito. Está
aberto o caminho para a imposição da opinião única, em que se baseiam todas as
formas de censura, desde a dos coronéis à dos «fact-checkers» contratados a
peso de ouro por Bruxelas.
As poucas linhas introdutórias
que o leitor acaba de consultar são uma «desinformação», à luz da «estratégia
de comunicação» que a União Europeia tem vindo a por em prática desde que os
chefes de Estado e de governo declararam a sua necessidade, numa cimeira em
Março de 2015.
Uma «desinformação» porque,
segundo a definição oficial chancelada pelos órgãos europeus, «distrai e
divide, semeia a dúvida através da deformação e falsificação de factos para
criar a confusão, mina a confiança das pessoas nos media, nas instituições e
nos processos políticos estabelecidos».
A simples menção de que a União
Europeia continua a dar mostras de uma propensão censória, fruto de uma opinião
fundamentada de um jornalista, é inegavelmente uma «desinformação» porque pode
«minar» a confiança dos leitores «nas instituições e nos processos políticos
estabelecidos».
Contra isso age a União Europeia,
defendendo-se através da sua «estratégia de comunicação», uma «abordagem
coordenada em total conformidade com os nossos valores europeus e os nossos
direitos fundamentais». Entre os quais figura, por ironia do destino, o direito
de opinião.
Três mil milhões de euros de
investimento
Esta é a ocasião em que o leitor
pode supor: bom, contestar uma ideia não passa de uma fase de um debate, quanto
muito de uma reprimenda moral, uma maneira talvez um pouco excessiva, é certo,
de defender a narrativa oficial europeia perante opiniões que a contradizem.
Será mesmo assim?
A «estratégia de comunicação»
europeia já tem o seu histórico desde 2015 através de uma coisa designada East
StratCom Task Force (Task Force da Estratégia de Comunicação para Leste),
associada ao Serviço Europeu de Acção Externa, e que neste ano de 2019 custa a
módica quantia de três mil milhões de euros aos contribuintes europeus.
Os serviços da União montaram uma
equipa de 16 pessoas a tempo inteiro, todas elas «com vasta experiência em
áreas de comunicação» e falando muitas línguas, «entre elas o russo», para
responder às opiniões que contradigam ou contrariem o discurso oficial da União
Europeia e desmontá-las com supostas provas e argumentos.
Entre as opiniões a desmantelar
estão, por exemplo, as que acusam as sanções norte-americanas de serem
responsáveis pela crise na Venezuela, as que afirmam a presença de neonazis no
actual poder ucraniano ou que consideram o Grupo dos Sete (G7) como uma emanação
dos interesses que governam o mundo. Caem nas más graças dos 16 verificadores
ou fact-checkers aqueles que dizem ou escrevem que os Estados Unidos
abandonaram o Tratado de Mísseis de Médio Alcance (INF) em benefício do seu
próprio complexo militar e industrial, que a NATO fez a guerra contra a
Jugoslávia violando o direito internacional ou que os «capacetes brancos» na
Síria encenam ataques químicos para acusar o governo de Damasco – realidade
mais do que provada. É também uma violação «dos nossos valores europeus e dos
nossos direitos fundamentais» negar – mesmo apresentando provas – que
a Rússia derrubou o avião malaio que fazia o voo MH-17, dizer que Juan Guaidó
usurpou a presidência na Venezuela ou que os protestos em Hong Kong são potenciados
por agitadores com ligações ao estrangeiro.
EU vs Disinfo
Um dos espelhos da campanha
permanente de propaganda e de divulgação da verdade única – a da União Europeia
– é o website EU vs Disinfo, a União Europeia contra a desinformação.
Dia a dia, muitas vezes ao dia,
ponto por ponto aqui podem encontrar-se as versões que incomodam a União
Europeia e as verdades repostas pelos fact-checkers. É um facto que as
provas e os argumentos por eles utilizados são débeis e, quase sempre, excertos
de discursos ou declarações de dirigentes da União, da NATO, dos Estados
Unidos, do próprio Donald Trump, como não podia deixar de ser. E quase todas as
respostas começam com uma espécie de salmo decretando imediatamente a falsidade
garantida da asserção: «este texto reproduz uma narrativa recorrente do
Kremlin». E o resto vem por acréscimo, dir-se-ia desnecessário.
Por exemplo, sempre que EU
vs Disinfo rebate o facto óbvio segundo o qual os Estados Unidos
dinamitaram o Tratado INF recorre a uma receita padrão: em primeiro lugar,
garante que se trata de «narrativa do Kremlin»; em segundo lugar recorda que
foi Obama quem descobriu que a primeira violação do Tratado foi um ensaio de um
míssil russo, embora o então presidente norte-americano, e o seu sucessor, não
tenham apresentado qualquer prova; em terceiro lugar assegura que os ministros
dos Negócios Estrangeiros da NATO assumiram a versão de Obama e Trump. Fica
tudo dito e sentenciado sobre o assunto. Provas para quê?
Assim funciona o mecanismo. Umas
vezes com o primarismo que se percebe pelo que atrás foi dito; em certas
situações, porém, existe mais elaboração, não tanto pelo que se afirma mas pelo
que os donos da verdade escondem. É o caso, por exemplo, da cumplicidade dos
Estados Unidos e da NATO com o tráfico de órgãos humanos nos Balcãs envolvendo
figuras do UCK, o grupo fundamentalista islâmico que foi transformado em
governo no protectorado do Kosovo. EU vs Disinfo faz os desmentidos
canónicos e omite – por óbvia conveniência – a história do relatório britânico
que faz luz sobre o escabroso negócio. Um documento pendente há anos no
Conselho da Europa, à espera de ser debatido.
Para que o processo de
verificação da verdade seja «independente», a União Europeia assegura que
actividades como as do EU vs Disinfo não têm a chancela que as
distingue como «oficiais». Apesar de Bruxelas pagar três mil milhões só este ano
e a título, como sublinha, de «investimento nos domínios da vigilância e da
educação». Em boa verdade, trata-se de uma grande operação de «reeducação
europeísta» a que é suposto nenhum de nós escapar se quiser estar do lado da
verdade única e indiscutível.
Uma trama ardilosa
A União Europeia não assume que
estes processos estejam relacionados com a preocupação generalizada de combater
as opiniões contrárias e contraditórias. Nada disso, assegura Bruxelas, não se
trata de impor uma verdade oficial, uma opinião única.
A «comunicação estratégica» foi
criada e existe porque «a pressão propagandística da Rússia e dos terroristas
islâmicos sobre a União Europeia não deixa de aumentar». Fica definido o
pretexto.
Deixemos de lado o facto de
o EU vs Disinfo defender os «capacetes brancos», um grupo terrorista
islâmico associado à al-Qaida, manifestando assim uma apreciável aptidão para
os golpes de rins.
Esta maneira de glosar a «ameaça
russa» leva-nos, de facto, muito mais longe, ao desenvolvimento de uma manobra
insidiosa por parte dos propagandistas oficiais da União.
No quadro por eles montado só
existem a verdade de Bruxelas e a mentira do Kremlin. É preto ou branco, quem
discorda de Bruxelas concorda com o Kremlin e com os terroristas islâmicos.
Ou seja, qualquer jornalista que,
exercendo com independência a sua profissão, chegue a factos e forme opiniões
que não coincidam com as da União Europeia estará a servir o Kremlin ou os
terroristas islâmicos – o cúmulo do delito de opinião.
Denunciar a situação na
Venezuela, revelar que os Estados Unidos e outros países da NATO são
responsáveis pela guerra contra a Síria, dizer que a invasão do Iraque se
baseou em mentiras, demonstrar que as guerras da NATO contra a Jugoslávia e a
Líbia, por exemplo, violaram o direito internacional e humanitário, afirmar que
o regimento nazi Azov faz parte da estrutura político-militar da Ucrânia,
provar que os Estados Unidos e países da União Europeia estiveram por detrás do
golpe de 2014 na Ucrânia, manifestar a opinião de que a Europa é um refém
militar dos Estados Unidos através da NATO são verdades consabidas, mas para a
União Europeia não passam de mentiras que reflectem os inaceitáveis pontos de
vista do Kremlin. Isto é, qualquer jornalista ou está com Bruxelas ou está com
Moscovo. Nem vale a pena dedicar-se ao seu trabalho, investigar, procurar
provas, consultar fontes. Basta-lhe seguir o que diz a União Europeia e estará
a cumprir a sua missão; caso contrário identifica-se com Moscovo, incorrendo em
delito de opinião.
A «comunicação estratégica» da
União Europeia não está verdadeiramente incomodada com a propaganda de Moscovo. A «ameaça russa» funciona, hoje como ontem, de pretexto para
que a maneira de a União Europeia olhar para si própria e para o mundo seja
inquestionável; tal como inquestionáveis são a NATO, a vontade dos Estados
Unidos, o G7, o FMI, no limite o regime neoliberal. Quem escapar a este
redil, mesmo brandindo provas irrefutáveis, será uma espécie de marginal,
talvez mesmo um terrorista. Tais provas não lhe valem de nada. Do outro lado,
como no EU vs Disinfo, estão fontes e argumentos definitivos, impossíveis
de bater ou rebater como, por exemplo, «uma ONG venezuelana», a «Constituição
da Venezuela» interpretada por Guaidó, o «Grupo de Lima», a lei ucraniana
«proibindo nazismo e comunismo», as sentenças de Federica Mogherini, o website Bellingcat,
financiado pela NATO. Nada mais fiável e objectivo.
Ao pé da engrenagem de propaganda
em desenvolvimento na União Europeia os coronéis da censura salazarista e
caetanista eram incipientes e burgessos artesãos.
Imagem e texto também em O Lado Oculto
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