domingo, 18 de agosto de 2019

Portugal | A greve em curso e o futuro


"O Governo não fez na área laboral, durante a legislatura, aquilo que era imprescindível. Neste conflito procurou tenuemente abrir caminhos novos, mas optou em vários aspetos importantíssimos pela aliança com o patronato: assumiu excesso de sintonia com a ANTRAM, por vezes dureza gratuita com os trabalhadores em luta e recorreu aos serviços mínimos e à requisição civil com excessos, nomeadamente a utilização de militares e polícias, o que dá força ao ataque à lei da greve..."

Manuel Carvalho Da Silva | Jornal de Notícias | opinião (ontem)

Os motoristas do transporte de matérias perigosas merecem solidariedade por razões bem objetivas: i) ficou comprovado que são injustas as condições de remuneração e de trabalho que lhes foram impostas, bem como à generalidade dos trabalhadores do setor, ao longo de muitos anos; ii) é preciso encontrar uma saída justa que lhes assegure dignidade e salvaguarde a sua confiança nas lutas laborais para melhoria das suas vidas pessoais e familiares e para o desenvolvimento do país - o sindicalismo teve (e continuará a ter) vitórias e derrotas, mas não poucas vezes transformou desaires imediatos em êxitos futuros; iii) a razão não está do lado dos patrões, apesar de muitos pequenos empresários estarem esmagados pelas condições que lhes são impostas pelo poder de mercado do cartel das petrolíferas, entidade que devia estar a ser confrontada, mas se distanciou com a subcontratação da distribuição; iv) no rescaldo deste processo importa que passe para a ordem do dia o debate sobre como melhorar as condições de vida e de trabalho da generalidade dos trabalhadores que laboram neste país e se trave o ataque antilaboral em curso.

O Governo não fez na área laboral, durante a legislatura, aquilo que era imprescindível. Neste conflito procurou tenuemente abrir caminhos novos, mas optou em vários aspetos importantíssimos pela aliança com o patronato: assumiu excesso de sintonia com a ANTRAM, por vezes dureza gratuita com os trabalhadores em luta e recorreu aos serviços mínimos e à requisição civil com excessos, nomeadamente a utilização de militares e polícias, o que dá força ao ataque à lei da greve e a direitos fundamentais no trabalho, por que anseiam forças políticas e económicas retrógradas e outros adeptos do neoliberalismo.

As análises da maioria dos comentadores e de alguns jornalistas assentam na priorização do imediatismo, do ver tudo só a preto e branco conforme os objetivos do dia, na ausência de reflexões baseadas em conhecimento (que não têm) sobre o que são e como se organizam os sistemas de relações laborais, sobre os conflitos, a sua resolução e as técnicas de negociação, sobre as diferenças entre especialização e qualificação no trabalho.

A FECTRANS tem a responsabilidade de procurar construir um contrato de trabalho digno para as dezenas de milhares de trabalhadores que nele laboram e não apenas para um subsetor profissional. O compromisso a que chegou é uma opção ajustada que abre a perspetiva do reforço da solidariedade entre todos os trabalhadores do setor (e não só) e traz mais justiça e melhores condições de vida e de trabalho.

Não é preciso alterar-se a lei da greve, mas sim estabelecerem-se compromissos para travar e fazer regredir a flexibilização generalizada do trabalho, regular melhor os horários e as remunerações, tornar rigorosos os descontos patronais para a Segurança Social, dar meios e poder à Autoridade para as Condições de Trabalho com vista a uma fiscalização eficaz, dinamizar a contratação coletiva sempre na ótica da harmonização no progresso, combater a precariedade e valorizar o emprego dos jovens.

Aproveite-se a campanha eleitoral, que até agora é muito pobre, para travar manobrismos perigosos e a gula do Partido Socialista, para forçar o investimento em setores como o ferroviário, para assegurar progresso.

*Investigador e professor universitário

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