“O tempo em que podemos mudar o
mundo”
Immanuel Wallerstein, que morreu
ontem, foi o grande pensador dos sistemas-mundo. Examinava o declínio do
capitalismo, mas frisava: falta saber o que irá substituí-lo; a transição não
será apocalíptica e dependerá das escolhas de agora
Wallerstein em Outras
Palavras
Desde seu lançamento, em 2010, Outras Palavras traduziu e publicou dezenas de textos de Immanuel Wallerstein. Neles, o sociólogo trata de temas centrais da conjuntura global e também de sua visão particular sobre a crise do capitalismo e a indefinição do futuro. Um índice destes artigos pode ser encontrado aqui.
Entrevista a Sophie
Shevarnadze
(Publicada originalmente em
14/10/2011)
A entrevista durou pouco mais de
onze minutos, mas alimentará horas de debates em todo o mundo e certamente
ajudará a enxergar melhor o período tormentoso que vivemos. Aos 81 anos, o
sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein,
acredita que o capitalismo chegou ao fim da linha: já não pode mais sobreviver
como sistema. Mas – e aqui começam as provocações – o que surgirá em seu lugar
pode ser melhor (mais igualitário e democrático) ou pior (mais polarizado e
explorador) do que temos hoje em dia.
Estamos, pensa este professor da
Universidade de Yale e personagem assíduo dos Fóruns Sociais Mundiais, em meio
a uma “bifurcação”, um momento histórico único nos últimos 500 anos.Ao
contrário do que pensava Karl Marx, o sistema não sucumbirá num ato heróico.
Desabará sobre suas próprias contradições. Mas atenção: diferente de certos
críticos do filósofo alemão, Wallerstein não está sugerindo que as ações
humanas são irrelevantes.
Ao contrário: para ele, vivemos o
momento preciso em que as ações coletivas, e mesmo individuais, podem causar
impactos decisivos sobre o destino comum da humanidade e do planeta. Ou seja,
nossas escolhas realmente importam. “Quando o sistema está estável, é
relativamente determinista. Mas, quando passa por crise estrutural, o
livre-arbítrio torna-se importante.”
É no emblemático 1968, referência
e inspiração de tantas iniciativas contemporâneas, que Wallerstein situa o
início da bifurcação. Lá teria se quebrado “a ilusão liberal que governava o
sistema-mundo”. Abertura de um período em que o sistema hegemônico começa a
declinar e o futuro abre-se a rumos muito distintos, as revoltas daquele ano
seriam, na opinião do sociólogo, o fato mais potente do século passado –
superiores, por exemplo, à revolução soviética de 1917 ou a 1945, quando os EUA
emergiram com grande poder mundial.
As declarações foram colhidas no
dia 4 de outubro pela jornalista Sophie Shevardnadze, que conduz o programa
Interview na emissora de televisão russa RT (abaixo). A transcrição e a
tradução para o português são iniciativas de “Outras Palavras”.
Há exatamente dois anos, você
disse ao RT que o colapso real da economia ainda demoraria alguns anos. Esse
colapso está acontecendo agora?
Não, ainda vai demorar um ano ou
dois, mas está claro que essa quebra está chegando.
Quem está em maiores apuros: Os
Estados Unidos, a União Europeia ou o mundo todo?
Na verdade, o mundo todo vive
problemas. Os Estados Unidos e União Europeia, claramente. Mas também acredito
que os chamados países emergentes, ou em desenvolvimento – Brasil, Índia, China
– também enfrentarão dificuldades. Não vejo ninguém em situação tranquila.
Você está dizendo que o sistema
financeiro está claramente quebrado. O que há de errado com o capitalismo
contemporâneo?
Essa é uma história muito longa.
Na minha visão, o capitalismo chegou ao fim da linha e já não pode sobreviver
como sistema. A crise estrutural que atravessamos começou há bastante tempo.
Segundo meu ponto de vista, por volta dos anos 1970 – e ainda vai durar mais
uns vinte, trinta ou quarenta anos. Não é uma crise de um ano, ou de curta
duração: é o grande desabamento de um sistema. Estamos num momento de
transição. Na verdade, na luta política que acontece no mundo — que a maioria
das pessoas se recusa a reconhecer — não está em questão se o capitalismo
sobreviverá ou não, mas o que irá sucedê-lo. E é claro: podem existir duas
pontos de vista extremamente diferentes sobre o que deve tomar o lugar do
capitalismo.
Qual a sua visão?
Eu gostaria de um sistema
relativamente mais democrático, mais relativamente igualitário e moral. Essa é
uma visão, nós nunca tivemos isso na história do mundo – mas é possível. A
outra visão é de um sistema desigual, polarizado e explorador. O capitalismo já
é assim, mas pode advir um sistema muito pior que ele. É como vejo a luta
política que vivemos. Tecnicamente, significa é uma bifurcação de um sistema.
Então, a bifurcação do sistema
capitalista está diretamente ligada aos caos econômico?
Sim, as raízes da crise são, de
muitas maneiras, a incapacidade de reproduzir o princípio básico do capitalismo,
que é a acumulação sistemática de capital. Esse é o ponto central do
capitalismo como um sistema, e funcionou perfeitamente bem por 500 anos. Foi um
sistema muito bem sucedido no que se propõe a fazer. Mas se desfez, como
acontece com todos os sistemas.
Esses tremores econômicos,
políticos e sociais são perigosos? Quais são os prós e contras?
Se você pergunta se os tremores
são perigosos para você e para mim, então a resposta é sim, eles são
extremamente perigosos para nós. Na verdade, num dos livros que escrevi,
chamei-os de “inferno na terra”. É um período no qual quase tudo é
relativamente imprevisível a curto prazo – e as pessoas não podem conviver com
o imprevisível a curto prazo. Podemos nos ajustar ao imprevisível no longo
prazo, mas não com a incerteza sobre o que vai acontecer no dia seguinte ou no
ano seguinte. Você não sabe o que fazer, e é basicamente o que estamos vendo no
mundo da economia hoje. É uma paralisia, pois ninguém está investindo, já que
ninguém sabe se daqui a um ano ou dois vai ter esse dinheiro de volta. Quem não
tem certeza de que em três anos vai receber seu dinheiro, não investe – mas não
investir torna a situação ainda pior. As pessoas não sentem que têm muitas
opções, e estão certas, as opções são escassas.
Então, estamos nesse processo de
abalos, e não existem prós ou contras, não temos opção, a não ser estar nesse
processo. Você vê uma saída?
Sim! O que acontece numa
bifurcação é que, em algum momento, pendemos para um dos lados, e voltamos a
uma situação relativamente estável. Quando a crise acabar, estaremos em um novo
sistema, que não sabemos qual será. É uma situação muito otimista no sentido de
que, na situação em que nos encontramos, o que eu e você fizermos realmente
importa. Isso não acontece quando vivemos num sistema que funciona
perfeitamente bem. Nesse caso, investimos uma quantidade imensa de energia e,
no fim, tudo volta a ser o que era antes. Um pequeno exemplo. Estamos na
Rússia. Aqui aconteceu uma coisa chamada Revolução Russa, em 1917. Foi um
enorme esforço social, um número incrível de pessoas colocou muita energia
nisso. Fizeram coisas incríveis, mas no final, onde está a Rússia, em relação
ao lugar que ocupava em 1917? Em muitos aspectos, está de volta ao mesmo lugar,
ou mudou muito pouco. A mesma coisa poderia ser dita sobre a Revolução
Francesa.
O que isso diz sobre a
importância das escolhas pessoais?
A situação muda quando você está
em uma crise estrutural. Se, normalmente, muito esforço se traduz em pouca
mudança, nessas situações raras um pequeno esforço traz um conjunto enorme de
mudanças – porque o sistema, agora, está muito instável e volátil. Qualquer
esforço leva a uma ou outra direção. Às vezes, digo que essa é a “historização”
da velha distinção filosófica entre determinismo e livre-arbítrio. Quando o
sistema está relativamente estável, é relativamente determinista, com pouco
espaço para o livre-arbítrio. Mas, quando está instável, passando por uma crise
estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante. As ações de cada um realmente
importam, de uma maneira que não se viu nos últimos 500 anos. Esse é meu
argumento básico.
Você sempre apontou Karl Marx
como uma de suas maiores influências. Você acredita que ele ainda seja tão
relevante no século 21?
Bem, Karl Marx foi um grande
pensador no século 19. Ele teve todas as virtudes, com suas ideias e
percepções, e todas as limitações, por ser um homem do século 19. Uma de suas
grandes limitações é que ele era um economista clássico demais, e era
determinista demais. Ele viu que os sistemas tinham um fim, mas achou que esse
fim se dava como resultado de um processo de revolução. Eu estou sugerindo que
o fim é reflexo de contradições internas. Todos somos prisioneiros de nosso
tempo, disso não há dúvidas. Marx foi um prisioneiro do fato de ter sido um
pensador do século 19; eu sou prisioneiro do fato de ser um pensador do século
20.
Do século 21, agora.
É, mas eu nasci em 1930, eu vivi
70 anos no século 20, eu sinto que sou um produto do século 20. Isso
provavelmente se revela como limitação no meu próprio pensamento.
Quanto – e de que maneiras –
esses dois séculos se diferem? Eles são realmente tão diferentes?
Eu acredito que sim. Acredito que
o ponto de virada deu-se por volta de 1970. Primeiro, pela revolução mundial de
1968, que não foi um evento sem importância. Na verdade, eu o considero o
evento mais significantes do século 20. Mais importante que a Revolução Russa e
mais importante que os Estados Unidos terem se tornado o poder hegemônico, em
1945. Porque 1968 quebrou a ilusão liberal que governava o sistema mundial e
anunciou a bifurcação que viria. Vivemos, desde então, na esteira de 1968, em
todo o mundo.
Você disse que vivemos a retomada
de 68 desde que a revolução aconteceu. As pessoas às vezes dizem que o mundo
ficou mais valente nas últimas duas décadas. O mundo ficou mais violento?
Eu acho que as pessoas sentem um
desconforto, embora ele talvez não corresponda à realidade. Não há dúvidas de
que as pessoas estavam relativamente tranquilas quanto à violência em 1950 ou
1960. Hoje, elas têm medo e, em muitos sentidos, têm o direito de sentir medo.
Você acredita que, com todo o
progresso tecnológico, e com o fato de gostarmos de pensar que somos mais
civilizados, não haverá mais guerras? O que isso diz sobre a natureza humana?
Significa que as pessoas estão
prontas para serem violentas em muitas circunstâncias. Somos mais civilizados?
Eu não sei. Esse é um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais
problemas que o não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não
são os bárbaros que tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os
bárbaros: os outros são bárbaros; nós, os civilizados.
É isso que vemos hoje? O Ocidente
tentando ensinar os bárbaros de todo o mundo?
É o que vemos há 500 anos.
O vídeo da entrevista
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