Penamacor era o concelho mais
envelhecido do país. Hoje, é o que tem a maior taxa de residentes estrangeiros
do interior - quase 10% da população. São sobretudo ingleses, em idade ativa e
em fuga do brexit. Estão a comprar quintas abandonadas, abriram uma escola
internacional, trabalham online para o mundo inteiro. Há um mundo
novo na Beira Interior.
Sophia Mars (foto), 51 anos, trabalha às
terças, quartas e quintas, das sete da manhã às sete da tarde. "Dou aulas
de Inglês para o mundo inteiro. A maior parte dos meus alunos são altos quadros
de empresas asiáticas, mas também tenho alguns em África e na Europa." As
suas lições decorrem online - precisa apenas de um portátil, de uns
bons auscultadores e de um microfone para comunicar com o universo. "É
muito engraçado, porque às vezes peço-lhes para me descreverem os sítios onde
estão e normalmente falam-me dos escritórios envidraçados em grandes
arranha-céus. E eu aqui, no meio de nenhures."
Nenhures é aqui, na Quinta do
Vale da Ribeira, propriedade de 2,2 hectares para onde se mudou há dois anos,
vinda de Sommerset, no sul de Inglaterra. Fica a três quilómetros do Pedrógão
de São Pedro, aldeia de 400 habitantes no concelho de Penamacor. Enquanto não
acaba de reconstruir a casa de xisto onde quer passar o resto dos dias, Sophia
vive numa quinta desde que chegou a Portugal. Comprou online a grande
tenda circular e instalou a arquitetura mongol no meio do seu terreno na Beira
Interior. Os painéis solares dão-lhe energia para carregar o portátil e o rooter,
com internet resolve a vida inteira. "Nos dias de calor, pego numa
cadeira e no computador e vou para o meio das árvores. Se chover, ensino dentro
da tenda."
Penamacor, mostram os últimos
Censos de 2011, é o concelho português com maior índice de envelhecimento. Por
cada cem jovens com menos de 15 anos, há 545 idosos com mais de 65. É também o
local do país onde o despovoamento bateu mais forte. Há 50 anos, havia
aqui 16 mil habitantes, hoje não são mais de cinco mil. O Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras divulgou há dias o Relatório de Imigração, Fronteiras
e Asilo de 2017 e, pelo terceiro ano consecutivo, o distrito de Castelo Branco
está entre os que mais crescem na taxa de residentes estrangeiros - com
Bragança. Aqui, o número oficial de residentes vindos de outros países cresce
mais de 10% ao ano. E Penamacor é o município onde a taxa é maior - quase
10% dos habitantes que hoje aqui vivem chegaram de fora.
"O fenómeno começou há dois
anos, mas em 2018 chega gente nova todos os dias. Neste momento, temos 400
registos, mas é um número que precisa de ser atualizado", diz António Luís
Beites, presidente da Câmara de Penamacor. Destes, 60% são ingleses - e a
maioria dos restantes têm, de alguma forma, ligação ao mundo britânico.
Australianos e irlandeses, gente de Hong Kong ou de Singapura que trabalhava em
empresas londrinas e decidiu mudar de vida.
"Vieram aqui parar por causa
dos baixos custos da terra", explica o autarca. "Em Penamacor
estava quase tudo ao abandono. Estas pessoas querem viver vidas mais simples do
que aquelas que tinham nas cidades." E, ao contrário do que acontece no
Algarve, onde vive a maior comunidade inglesa do país, esta população está em
idade ativa. Trabalham globalmente, como Sophia.
Há um arquiteto de arranha-céus
que divide os dias entre Nova Iorque, Londres e Penamacor, há um engenheiro
informático que faz projetos 3D para o mundo todo, há a dona de uma das maiores
empresas de impressão em três dimensões da Europa que fez deste lugar a base
continental do seu negócio. "Nota-se que é gente muito viajada, com muito
mundo e um elevado nível cultural", diz António Luís Beites. "E isso
só pode ser uma vantagem para a nossa terra."
Num dos territórios mais
abandonados do país, num lugar onde o povo se habituou a ver toda a gente sair,
está então a acontecer este fenómeno. As aldeias encheram-se de crianças, começou
a funcionar a única escola de currículo inglês do interior português, há
novos negócios a nascer por causa da invasão forasteira. No jardim central da
vila, onde os velhotes se juntam para jogar cartas e ver passar os dias, há um
cumprimento novo para quando aparece alguém desconhecido. Chega-se e logo atira
um octogenário: "Good morning."
Fugir do brexit
Sophia está preocupada com a
saída do Reino Unido da União Europeia. "Acho que é por isso que está toda
a gente a vir para aqui. Quando aqui cheguei era a única inglesa, agora quase
todos os meus vizinhos aqui em volta são de lá. Ninguém sabe muito bem o que
vai mudar exatamente, por isso há muita gente a antecipar as mudanças." Querem
ter o seu pedaço de terra na Europa antes que deixem de ser europeus, explica.
Foi também por isso que Peter e
Dawn Siedle, de 50 anos, vieram para este pedaço do interior português em
julho. Ele é engenheiro informático, dava aulas de 3D na Universidade de
Middlesbrough. Ela teve uma longa carreira como enfermeira de saúde mental. São
profundamente tecnológicos - falam por computador todos os dias com a família,
devoram livros no Kindle, ele continua a desenhar os seus projetos a partir da
Quinta da Borboleta, um belíssimo pedaço de terreno à beira da Aldeia do Bispo,
onde metade da população vem de fora.
"Eu próprio concordo que a
burocracia e a corrupção em Bruxelas são uma treta", explica o homem, que
nos últimos dias tem andado ocupado a construir uma vedação para as galinhas. "Mas
o que me fez sair em última instância foi o que o brexit extremou.
Hoje é uma afronta ser inglês."
Diz-se patriota e explica como
isso é diferente de ser nacionalista. "Mas os escoceses odeiam-nos, os
galeses odeiam-nos, os irlandeses odeiam-nos. Caramba, a Europa toda
odeia-nos. E aqui encontrámos um lugar onde as pessoas nos apreciam, onde
sentimos que estão agradecidos por estarmos a limpar o mato que crescia
descontroladamente, por estarmos a comprar os produtos deles, por ocuparmos
terra vazia." E é precisamente por este ser o fim do mundo, por ser
"onde judas perdeu as botas", como diz com um sotaque carregado, que
se sente tão bem aqui.
Há festa na aldeia
É hora de recreio na Escola
Internacional de Penamacor e há miúdos de cabeças loiras a correr por toda a
parte. Aqui funcionou durante meio século o Externato de Nossa Senhora do
Incenso, mas a instituição fechou portas no final dos anos 1990. Já não havia
crianças para ocupar aqueles 960 metros quadrados
de espaço.
Em setembro de 2017, abriu aqui a
primeira escola de currículo inglês do interior do país. "São 33
crianças de 17 nacionalidades", diz Paul Large, diretor do
estabelecimento. "Só temos aulas para os mais pequenos, aquilo que vocês
aqui chamam de primeiro ciclo. Mas o objetivo é ir alargando até ao ensino
pré-universitário. Estamos a crescer de dia para dia e no próximo ano letivo
contamos duplicar o número de alunos."
Paul diz que a própria escola
está a convocar mais gente para Penamacor. "Há famílias que estão a
mudar-se para Penamacor porque têm esta oferta aqui. Isto também ajuda a
explicar esta invasão britânica." As aulas decorrem todas em inglês.
"Usamos um modelo de ensino alternativo que está em grande expansão em
Inglaterra, o Expression Education Alternative." São os miúdos que
escolhem o que querem aprender. De manhã aprendem inglês, português e
matemática, à tarde desenvolvem os seus projetos - que podem ir de estudos de
direitos humanos ao funcionamento dos vulcões.
A Jessy, o Felix e o Tomás estão
a fazer um tabuleiro de Monopólio com equações matemáticas. As casas
coloridas são tão mais caras quanto mais difícil for o problema. Propriedades
que envolvam contas de somar saem baratas, mas as de dividir são mais caras do
que um apartamento no centro de Lisboa. Os dois primeiros são ingleses, o
último é português. Para lançar um desafio têm de saber resolvê-lo, aquele jogo
não é só um jogo, é uma aprendizagem inteira.
Também há três dezenas de crianças
estrangeiras a frequentar o ensino português, e isso permite nalguns casos
abrir duas turmas para o mesmo ano, coisa de que não se falava em Penamacor há
décadas. No centro de saúde, o enfermeiro-chefe Vítor Fernandes explica assim o
impacto da chegada da miudagem: "Até aqui, éramos quase uma unidade
paliativa. Atendíamos quase exclusivamente velhotes que precisam de cuidados
continuados. E agora já temos outra vez crianças, já podemos fazer
campanhas de prevenção, de vacinação, ensinar hábitos saudáveis. E é para
isto que realmente servimos."
Depois das aulas, às
quintas-feiras, abre a escola de futebol no estádio municipal. O treinador
dos iniciados chama-se Andrew Smith, é um australiano licenciado em Educação
Física, que foi durante muitos anos internacional de hóquei no campo. Quando se
mudou para a Ásia, tornou-se treinador profissional, e foi mesmo o selecionador
de Hong Kong.
Agora está aqui, a ensinar
técnicas aos miúdos de 11, 12 anos. "Há aqui meia dúzia de rapazes com
muito talento. Mas o diretor do clube diz-me que não dá para fazer equipas com
crianças acima dos 15 porque vão-se embora daqui. Então estou a começar a
trazer para os treinos os miúdos da comunidade estrangeira, porque estes vão
ficar cá esses anos." De Penamacor, um destes dias, pode aparecer um
novo Ronaldo. Ou um novo Beckham.
A vida que mexe
No centro de Penamacor há uma
mercearia gourmet que teve de se adaptar à chegada dos forasteiros.
"Sabe o que eles mais compram?", pergunta Érica Bargão, que ocupa o
espaço atrás do balcão desde que a loja abriu, há três anos. "Rações para
cães. Aqui, nós damos aos animais os restos da comida, mas eles preferem assim.
Então tivemos de reforçar as encomendas. Disso, do chá, do bacon. E depois começámos
a introduzir produtos novos que não se usavam aqui, como a aveia e as
lentilhas."
Esta loja abriu na altura em que
começaram a chegar os primeiros estrangeiros, e Érica sabe que foi esse ímpeto
que chegou de fora que está a tornar o negócio rentável. Mas um pouco por
toda a vila veem-se sinais de alívio económico. Há quatro meses abriu
portas a Quintamacor, primeira imobiliária de sempre a assentar arraiais nesta
terra. O dono chama-se Jamie Molloy, 38 anos, é irlandês e foi um dos primeiros
estrangeiros a desaguar na vila. "Na minha outra vida eu era engenheiro,
responsável pela segurança de uma exploração de gás na Austrália. Um dia,
fartei-me e abri um bar em Melbourne, mas acabei por falir e voltar para a
Europa. Dublin era para mim uma ideia insuportável, por isso vim para o sul."
A escolha de Penamacor não foi
afetiva, foi prática. "Vim aqui parar há cinco anos porque me falaram que
aqui havia terra mesmo barata. Comprei uma quinta e comecei a dizer a alguns
amigos, sobretudo ingleses, que havia aqui oportunidades fantásticas. E alguns
fizeram-se ao caminho."
Há três anos vendeu a quinta a um
casal inglês, comprou outra. E foi nessa altura que criou um site para
vender propriedades. "Entretanto decidi oficializar as coisas e criar uma
agência. Na semana passada fiz a venda número cem. Tudo quintas, e tudo a
estrangeiros." Hoje, por exemplo, Jamie faz uma incursão à Aldeia de
João Pires e fecha negócio com um velhote para a compra de um terreno.
O irlandês também tem um bar, o
JCJ, que serve de ponto de encontro à comunidade estrangeira. Serve
hambúrgueres de vaca, frango ou vegetarianos e enche ao fim da tarde como se
fosse um pub inglês. "Agora acabei de comprar uma loja e vou
abrir uma lavandaria. A maior parte dos estrangeiros vivem em quintas que
funcionam com energia solar e não conseguem energia suficiente para uma máquina
de lavar roupa."
O presidente da Câmara de
Penamacor está tão contente com a invasão britânica que quer tornar bilingues
todas as placas sinaléticas do concelho. "Além disso, estamos prestes
a abrir concurso para a abertura de um centro tecnológico. Basicamente,
vamos ter salas com internet com fibra, para que seja possível trabalhar nesta
terra com internet a alta velocidade."
Os cafés das aldeias, que antes
fechavam ao pôr do Sol, estão agora cheios até a noite ir avançada. Aqui,
serve-se um bule de chá preto com duas saquetas, porque os novos vizinhos
gostam da bebida forte, e com umas gotas de leite. E nessas duas saquetas,
nessas gotas de leite que se acrescenta ao chá, percebe-se um mundo novo
inteiro. Em Penamacor, sem que ninguém desse por nada, estava a acontecer uma
revolução.
A estrela de cinema que se mudou
para Penamacor
Foram 18 meses de filmagens e
agora é tempo de descanso. Oreo, o guaxinim que serviu de modelo a Rocket
Racoon, está a gozar a reforma na quinta Layla, perto da Aldeia de João Pires,
em Penamacor. A personagem é uma das protagonistas de Guardiões da Galáxia,
a saga da Marvel que se tornou o 80.º filme mais lucrativo a história do
cinema.
Sally e John Bent compraram esta
propriedade em julho e querem torná-la um santuário de animais exóticos em fim
de carreira. "Em Inglaterra temos uma companhia chamada Oreo and Friends,
que fornece animais para o cinema, festas, visitas a escolas e hospitais. Mas
ele é a estrela da companhia", diz Sally enquanto o animal lhe trepa pelo
pescoço. Na Beira Baixa têm dois guaxinins, um casal de tatus, uma família de
suricatas, sete cães, uma doninha e para a semana chegam vários esquilos
voadores.
E não é injusto dizer que foi Oreo a
pagar pelo novo lar. Sally não diz o cachê, mas explica que o trabalho foi
duro. "Havia 200 desenhadores e testavam todos os movimentos e reações:
quando ouvia um barulho familiar, quando ouvia um barulho estranho, quando se
molhava." Na estreia em Londres, Oreo desfilou pela passadeira
vermelha e teve direito à sua própria suite de hotel. "Agora fazemos
visitas com ele às crianças da região e será sempre tudo de forma gratuita.
Queremos devolver à comunidade a boa forma como nos estão a acolher."
Ricardo J. Rodrigues | Diário de
Notícias
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