Nobel de Economia sustenta:
tributo evitará que elas continuem ocultando lucros, por meio de operações
fraudulentas nos paraísos fiscais. De quebra, reduzirá desigualdades e
neutralizará discurso da direita sobre “globalismo”
Joseph Stiglitz | Outras Palavras | Tradução: Simone
Paz | Imagem: Curt Merlo
A globalização ganhou má fama nos
últimos anos, quase sempre pelas razões corretas. Contudo, alguns dos seus
críticos – como Donald Trump – opõem-se pelos motivos errados. Evocam um
cenário falso. Atribuem os problemas atuais dos norte-americanos ao fato de
terem se perdido em maus negócios, induzidos por europeus, chineses e países em
desenvolvimento. É uma acusação absurda: foram os EUA — ou melhor, as
corporações estadunidenses — os primeiros a escrever as regras da globalização.
Isto posto, há um aspecto
especialmente tóxico da globalização que ainda não ganhou a atenção que merece:
evasão fiscal corporativa. As multinacionais podem facilmente mudar seus
escritórios e fábricas para qualquer jurisdição que cobre impostos mais baixos.
E, em alguns casos, elas nem precisam se mudar, porque podem simplesmente
alterar a forma como “registam” sua receita nos documentos.
A rede Starbucks, por exemplo,
pode continuar expandindo-se no Reino Unido, sem pagar quase nenhum imposto
britânico, alegando que lá seus lucros são mínimos. Se isso fosse verdade, sua
crescente expansão não faria nenhum sentido. Por que se multiplicar se não há
lucros no horizonte? É óbvio que eles têm rendimentos, mas que estão sendo
desviados, em forma de royalties, taxas de franquia e outros encargos, do Reino
Unido para outras jurisdições, com taxas de imposto menores.
Este tipo de evasão fiscal
tornou-se uma arte, na qual as empresas mais inteligentes, como a Apple, se
destacam. Os custos são enormes. Segundo o Fundo Monetário Internacional, os
governos perdem pelo menos US$
500 biliões por ano por causa das transferências de impostos das
corporações. Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia, e seus colegas calculam que cerca
de 40% dos lucros obtidos no exterior, por multinacionais norte-americanas,
sejam transferidos para paraísos fiscais. No ano de 2018, 60 das 500 maiores
companhias — incluindo a Amazon, a Netflix e a General Motors — não pagaram
impostos nos EUA, apesar de terem lucros conjuntos (em nível mundial) de cerca
de 80 biliões de dólares. Essa tendência está causando um impacto devastador
nas receitas fiscais nacionais e arruinando o sentido público de justiça.
Desde o final da crise financeira
de 2008, quando muitos países viram-se em apuros financeiros, tem havido uma
demanda crescente por repensar o regime global de tributação das
multinacionais. Um grande esforço é o projeto de Erosão de Base e Mudança de
Lucro (BEPS, no acrônimo em
inglês), da OCDE, que já produziu benefícios significativos, restringindo
algumas das práticas mais nocivas — como aquela em que subsidiárias emprestam
dinheiro umas às outras. Mas, como mostram os dados, os esforços atuais ainda
passam longe do que seria realmente adequado.
O maior problema é que o projeto
BEPS oferece apenas pequenas correções, feito remendos, num status quo profundamente
defeituoso e incorrigível. Sob o “sistema de preços de transferência”, que hoje
prevalece, duas subsidiárias da mesma multinacional podem comercializar e
trocar bens e serviços além das fronteiras e, depois, na hora de declarar suas
receitas e lucros para fins fiscais, relacionar essas trocas com o “preço de
mercado local”. O preço que eles pagam é o que eles alegam que seria se os bens
e serviços estivessem sendo trocados em um mercado competitivo.
Evidentemente, este sistema nunca
funcionou muito bem. Como avaliar um carro sem motor ou uma camisa sem botões?
Não há preços de mercado, nem mercados competitivos, aos quais uma empresa
possa se referir. E as questões ficam ainda mais problemáticas no setor de
serviços, que não para de crescer: como avaliar um processo de produção
separando-o dos serviços administrativos realizados nos escritórios da sede?
A destreza das multinacionais na
hora de se beneficiarem do sistema de preços de transferência tem aumentado à
medida em que o comércio no interior das empresas cresceu, em que o comércio de
serviços (mais do que o de bens) se expandiu, na medida em que a propriedade
intelectual cresceu em importância e à medida em que as empresas aprimoraram
sua exploração do sistema. O resultado: uma transferência de lucros em larga
escala, através das fronteiras, que leva a menores receitas tributárias.
É revelador que as empresas
norte-americanas não possam usar os preços de transferência para deslocar
lucros dentro dos EUA. Isso implicaria a precificação repetida de mercadorias à
medida que atravessam e re-atravessam as fronteiras estaduais. Em vez disso, os
lucros corporativos dos EUA são alocados para diferentes estados com base numa
fórmula, de acordo com fatores como emprego, vendas e ativos em cada estado. E,
como demonstra a Comissão Independente
para a Reforma do Imposto Internacional sobre Empresas (da qual faço
parte) em sua última declaração, essa
abordagem é a única que pode funcionar, no plano mundial.
Por sua parte, a OCDE lançará em
breve uma importante proposta que pode acabar movendo um pouco o atual quadro
nessa direção. Mas, se as previsões estiverem corretas, isto ainda não será
suficiente. Mesmo se adotada, a maior parte das receitas das corporações serão
tratadas por meio do sistema de preços de transferência, com apenas um
“resíduo” alocado em uma fórmula. A justificativa para essa divisão não é
clara.
Além de tudo, os lucros corporativos
declarados na maioria das jurisdições já incluem as deduções dos custos de
capital e de juros. Estes são “resíduos” – lucros puros – que surgem das
operações conjuntas das atividades globais de uma multinacional. Por exemplo,
de acordo com a Lei de Cortes e Impostos dos EUA de 2017, o custo total de bens
de capital é dedutível, junto com alguns dos juros. Isso permite que o lucro
total declarado seja substancialmente menor do que o lucro económico real.
Dado o tamanho do problema, fica
evidente que precisamos de um imposto mínimo global para acabar com a corrida
fiscal atual (que não beneficia ninguém, além das corporações). Não há
comprovação no mundo de que uma tributação mais baixa leve a mais
investimentos. É claro que, se um país reduz seu imposto em relação a outros,
pode “roubar” algum investimento; mas essa abordagem de “empobrecer o vizinho”
[“beggar-thy-neighbor”] não funciona globalmente [nota da tradução: políticas
económicas em que um país tenta remediar seus problemas económicos por meios
que tendem a piorar os problemas económicos de outros países].
Uma alíquota mínima para este
imposto global deveria ser fixada num percentual comparável com a do imposto
corporativo efetivo médio, que é de cerca de 25%, atualmente. Caso contrário,
as alíquotas globais de imposto sobre as empresas irão convergir para o mínimo,
e o que pretendia ser uma reforma para aumentar a tributação sobre as
multinacionais terá o efeito oposto.
O mundo está enfrentando diversas
crises, que incluem mudanças climáticas, desigualdade, desaceleração do
crescimento e deterioração da infraestrutura. Nada disso pode ser resolvido sem
governos que tenham bons recursos. Infelizmente, as propostas atuais para
reformar a taxação mundial simplesmente não dão conta. As multinacionais devem
ser obrigadas a fazer a sua parte.
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