sábado, 19 de outubro de 2019

Por um imposto global sobre as transnacionais



Nobel de Economia sustenta: tributo evitará que elas continuem ocultando lucros, por meio de operações fraudulentas nos paraísos fiscais. De quebra, reduzirá desigualdades e neutralizará discurso da direita sobre “globalismo”

Joseph Stiglitz | Outras Palavras | Tradução: Simone Paz | Imagem: Curt Merlo

A globalização ganhou má fama nos últimos anos, quase sempre pelas razões corretas. Contudo, alguns dos seus críticos – como Donald Trump – opõem-se pelos motivos errados. Evocam um cenário falso. Atribuem os problemas atuais dos norte-americanos ao fato de terem se perdido em maus negócios, induzidos por europeus, chineses e países em desenvolvimento. É uma acusação absurda: foram os EUA — ou melhor, as corporações estadunidenses — os primeiros a escrever as regras da globalização.

Isto posto, há um aspecto especialmente tóxico da globalização que ainda não ganhou a atenção que merece: evasão fiscal corporativa. As multinacionais podem facilmente mudar seus escritórios e fábricas para qualquer jurisdição que cobre impostos mais baixos. E, em alguns casos, elas nem precisam se mudar, porque podem simplesmente alterar a forma como “registam” sua receita nos documentos.


A rede Starbucks, por exemplo, pode continuar expandindo-se no Reino Unido, sem pagar quase nenhum imposto britânico, alegando que lá seus lucros são mínimos. Se isso fosse verdade, sua crescente expansão não faria nenhum sentido. Por que se multiplicar se não há lucros no horizonte? É óbvio que eles têm rendimentos, mas que estão sendo desviados, em forma de royalties, taxas de franquia e outros encargos, do Reino Unido para outras jurisdições, com taxas de imposto menores.

Este tipo de evasão fiscal tornou-se uma arte, na qual as empresas mais inteligentes, como a Apple, se destacam. Os custos são enormes. Segundo o Fundo Monetário Internacional, os governos perdem pelo menos US$ 500 biliões por ano por causa das transferências de impostos das corporações. Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia, e seus colegas calculam que cerca de 40% dos lucros obtidos no exterior, por multinacionais norte-americanas, sejam transferidos para paraísos fiscais. No ano de 2018, 60 das 500 maiores companhias — incluindo a Amazon, a Netflix e a General Motors — não pagaram impostos nos EUA, apesar de terem lucros conjuntos (em nível mundial) de cerca de 80 biliões de dólares. Essa tendência está causando um impacto devastador nas receitas fiscais nacionais e arruinando o sentido público de justiça.

Desde o final da crise financeira de 2008, quando muitos países viram-se em apuros financeiros, tem havido uma demanda crescente por repensar o regime global de tributação das multinacionais. Um grande esforço é o projeto de Erosão de Base e Mudança de Lucro (BEPS, no acrônimo em inglês), da OCDE, que já produziu benefícios significativos, restringindo algumas das práticas mais nocivas — como aquela em que subsidiárias emprestam dinheiro umas às outras. Mas, como mostram os dados, os esforços atuais ainda passam longe do que seria realmente adequado.

O maior problema é que o projeto BEPS oferece apenas pequenas correções, feito remendos, num status quo profundamente defeituoso e incorrigível. Sob o “sistema de preços de transferência”, que hoje prevalece, duas subsidiárias da mesma multinacional podem comercializar e trocar bens e serviços além das fronteiras e, depois, na hora de declarar suas receitas e lucros para fins fiscais, relacionar essas trocas com o “preço de mercado local”. O preço que eles pagam é o que eles alegam que seria se os bens e serviços estivessem sendo trocados em um mercado competitivo.

Evidentemente, este sistema nunca funcionou muito bem. Como avaliar um carro sem motor ou uma camisa sem botões? Não há preços de mercado, nem mercados competitivos, aos quais uma empresa possa se referir. E as questões ficam ainda mais problemáticas no setor de serviços, que não para de crescer: como avaliar um processo de produção separando-o dos serviços administrativos realizados nos escritórios da sede?

A destreza das multinacionais na hora de se beneficiarem do sistema de preços de transferência tem aumentado à medida em que o comércio no interior das empresas cresceu, em que o comércio de serviços (mais do que o de bens) se expandiu, na medida em que a propriedade intelectual cresceu em importância e à medida em que as empresas aprimoraram sua exploração do sistema. O resultado: uma transferência de lucros em larga escala, através das fronteiras, que leva a menores receitas tributárias.

É revelador que as empresas norte-americanas não possam usar os preços de transferência para deslocar lucros dentro dos EUA. Isso implicaria a precificação repetida de mercadorias à medida que atravessam e re-atravessam as fronteiras estaduais. Em vez disso, os lucros corporativos dos EUA são alocados para diferentes estados com base numa fórmula, de acordo com fatores como emprego, vendas e ativos em cada estado. E, como demonstra a Comissão Independente para a Reforma do Imposto Internacional sobre Empresas (da qual faço parte) em sua última declaração, essa abordagem é a única que pode funcionar, no plano mundial.

Por sua parte, a OCDE lançará em breve uma importante proposta que pode acabar movendo um pouco o atual quadro nessa direção. Mas, se as previsões estiverem corretas, isto ainda não será suficiente. Mesmo se adotada, a maior parte das receitas das corporações serão tratadas por meio do sistema de preços de transferência, com apenas um “resíduo” alocado em uma fórmula. A justificativa para essa divisão não é clara.

Além de tudo, os lucros corporativos declarados na maioria das jurisdições já incluem as deduções dos custos de capital e de juros. Estes são “resíduos” – lucros puros – que surgem das operações conjuntas das atividades globais de uma multinacional. Por exemplo, de acordo com a Lei de Cortes e Impostos dos EUA de 2017, o custo total de bens de capital é dedutível, junto com alguns dos juros. Isso permite que o lucro total declarado seja substancialmente menor do que o lucro económico real.

Dado o tamanho do problema, fica evidente que precisamos de um imposto mínimo global para acabar com a corrida fiscal atual (que não beneficia ninguém, além das corporações). Não há comprovação no mundo de que uma tributação mais baixa leve a mais investimentos. É claro que, se um país reduz seu imposto em relação a outros, pode “roubar” algum investimento; mas essa abordagem de “empobrecer o vizinho” [“beggar-thy-neighbor”] não funciona globalmente [nota da tradução: políticas económicas em que um país tenta remediar seus problemas económicos por meios que tendem a piorar os problemas económicos de outros países].

Uma alíquota mínima para este imposto global deveria ser fixada num percentual comparável com a do imposto corporativo efetivo médio, que é de cerca de 25%, atualmente. Caso contrário, as alíquotas globais de imposto sobre as empresas irão convergir para o mínimo, e o que pretendia ser uma reforma para aumentar a tributação sobre as multinacionais terá o efeito oposto.

O mundo está enfrentando diversas crises, que incluem mudanças climáticas, desigualdade, desaceleração do crescimento e deterioração da infraestrutura. Nada disso pode ser resolvido sem governos que tenham bons recursos. Infelizmente, as propostas atuais para reformar a taxação mundial simplesmente não dão conta. As multinacionais devem ser obrigadas a fazer a sua parte.

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