Ricardo Paes Mamede* | Diário de
Notícias | opinião
A julgar pelas declarações dos
principais actores políticos, há hoje um acordo alargado em Portugal sobre a
necessidade de aumentar os salários dos trabalhadores. É surpreendente, sem
dúvida, mas há bons motivos para isso. Resta saber como se traduzirá na prática.
PCP e CGTP são conhecidos pela
defesa do aumento dos salários. O contexto actual não é diferente. Ambos
propõem que o salário mínimo aumente para 850 euros nos próximos quatro anos,
que os salários da função pública aumentem acima da inflação e que a legislação
laboral seja revista para valorizar a contratação colectiva (entre outras
coisas), permitindo assim um crescimento mais significativo dos salários.
Mesmo que o nível de exigência
não seja igual, o PCP e a CGTP não estão isolados no debate sobre a evolução
salarial em Portugal. O PAN propôs um aumento do salário mínimo nacional de 50
euros por ano, o que significa atingir 800 euros no final da legislatura. O BE
defende um aumento para 650 euros já em Janeiro e aumentos posteriores mínimos
de pelo menos 5% ao ano, o que significa atingir um valor não inferior a 750
euros em 2023. O próprio PSD inseriu no seu programa a proposta de um valor de
salário mínimo não inferior a 700 euros no final da legislatura.
O PS e o governo não se
comprometeram com metas específicas, afirmando que se trata de matérias que
devem ser acordadas na Concertação Social. Mas na sua primeira reunião com os
parceiros sociais após as eleições de 6 de Outubro, António Costa fez questão de dizer que a política de
rendimentos seria uma prioridade do novo governo. Incluem-se aqui os salários,
as tabelas de IRS e os serviços públicos - tudo elementos que afectam o
rendimento disponível das famílias.
Em resposta, António Saraiva,
presidente da CIP, fez saber que uma subida do salário mínimo para 700 euros ao
fim de quatro anos seria "perfeitamente razoável", admitindo subidas
maiores caso as condições o permitam.
Em qualquer dos casos, os valores
referidos implicam aumentar o salário mínimo acima do crescimento nominal do
PIB, dando continuidade à trajectória da anterior legislatura. Há várias razões
para que assim seja. Primeiro, o salário mínimo em Portugal é ainda hoje o mais baixo entre os países da Europa ocidental, sendo 21%
inferior ao da Grécia, 43% inferior ao de Espanha e 62% inferior ao da
Alemanha. Segundo, a parte do trabalho no rendimento nacional (52,1%, de acordo
com os dados da Comissão Europeia) é inferior ao da média da UE e
ao da maioria dos seus Estados membros. Terceiro e mais relevante, de acordo
com os dados da OIT, Portugal foi o 6º país do mundo onde o peso dos
rendimentos do trabalho no PIB mais caiu entre 2004 e 2017. Os dados da
Comissão Europeia apontam para uma ligeira melhoria da distribuição funcional
do rendimento em Portugal em 2017 e 2018, ainda assim insuficiente para alterar
o quadro aqui descrito.
Vários factores explicam aquela
evolução, havendo dois a destacar: a forte redução do emprego entre 2008 e 2013
(menos 650 mil postos de trabalho) e o fraco crescimento dos salários, quando
comparado com o aumento da produtividade. De acordo com um estudo publicado pelo Ministério das Finanças, da autoria
dos economistas Alexandre Mergulhão e José Azevedo Pereira, entre 2010 e 2016
os aumentos salariais ficaram 65% abaixo da variação da produtividade.
Os dois factores referidos estão
relacionados. Quando o desemprego é muito elevado, a capacidade negocial dos
trabalhadores diminui. Quem procura emprego tende a aceitar mais facilmente
propostas de trabalho em troco de salários reduzidos, independentemente da
capacidade das empresas para pagar mais. Além disso, o trabalho precário tende
a generalizar-se, implicando retribuições ainda mais baixas.
Em 2015, a opção pelo aumento
mais rápido do salário mínimo visou responder a duas prioridades: evitar a
estagnação dos salários mais baixos (dado o fraco poder negocial dos
trabalhadores menos qualificados); e estimular por esta via a procura interna
(dadas as restrições em fazê-lo por via do aumento despesa pública ou da
redução dos impostos). Os dados disponíveis sugerem que ambos os objectivos
foram alcançados, sem penalizar a criação de emprego nem a competitividade das
exportações portuguesas.
Tendo presente o valor reduzido
do salário mínimo em Portugal e a persistência de elevados níveis de
desigualdade na distribuição de rendimentos, justifica-se a continuação de uma
política de valorização dos salários por esta via.
Há, no entanto, alguns cuidados a
ter neste processo. Por um lado, o aumento do salário mínimo é insuficiente
para lidar com a desigualdade e as injustiças na distribuição dos rendimentos.
Uma política de aumentos salariais justos e sustentáveis não dispensa um
combate eficaz às várias formas de precariedade e ao reforço do papel da
negociação colectiva nos diferentes sectores de actividade. Por outro lado, a
redução do desemprego tenderá a reflectir-se num aumento das pressões
salariais, o que pode tornar-se insustentável para alguns sectores mais
expostos à concorrência internacional.
Isto chama a atenção para a
necessidade de considerar o salário mínimo no quadro mais geral da política de
rendimentos - que inclui as relações laborais, os impostos e os serviços
públicos. Alerta também para a importância das restrições externas que se
colocam à economia portuguesa, que devem ser tidas em devida conta.
O consenso actual sobre as
políticas de aumento dos salários é muito positivo. Sê-lo-á ainda mais se as
soluções encontradas forem justas, eficazes e sustentáveis.
*Economista e professor do ISCTE
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