quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Teoria e prática dos Direitos do Homem


Thierry Meyssan*

A Declaração universal dos Direitos do Homem expõe um ideal que qualquer pessoa responsável tenta colocar em prática. Mas não se pode combater todos os males ao mesmo tempo. Assim, ela institui uma hierarquia entre estes direitos para que nós possamos melhorar as coisas em concreto. Certas potências acusam outras de violação dos Direitos do Homem para melhor esconder os seus crimes. Acontece que a árvore esconde a floresta.

Os Direitos do Homem

Progressivamente, a humanidade formulou o ideal de igualdade da pessoa humana : os «Direitos do Homem». Inúmeras nações reclamam tê-lo antecipado antes de eles terem sido estabelecidos pelas Nações Unidas. Com o tempo, muitos empregaram esta noção sem a compreender na sua dimensão etimológica e deformaram-na.

O debate acalorado, de 19 de Setembro de 2019, no Conselho de Segurança mostrou como os «Direitos do Homem» foram desprezados até serem mesmo utilizados a contrasenso.

Por todo o mundo e em todas as épocas, os líderes tentaram afirmar que os homens eram iguais em direitos. Os mais antigos exemplos conhecidos são atestados pelo cilindro do Imperador persa Ciro (século V AC) —do qual uma réplica adorna a sede das Nações Unidas— que representa a liberdade de culto; ou pelos Éditos do Imperador indiano Asoka (século II AC), os quais proibiram a tortura de todos os animais, inclusive os humanos. Estes monarcas transformaram as leis dos seus países em nome de regras que imaginavam universais.

Se nos referimos à construção do Direito moderno, a Magna Carta inglesa (século XIII) afirma que nenhum súbdito poderá ser preso sem um processo justo. Ela foi, nomeadamente, completada pelo Bill of Rights (Lei dos Direitos) que no século XVII enumera os direitos das pessoas e os do Parlamento. Foi com esse mesmo estado de espírito que James Madison redigiu, um século depois, o Bill of Rights norte-americano. Este último limita unicamente o Poder do Governo federal, mas não o dos Estados federados. A tradição anglo-saxónica afirma direitos individuais e protege-os face à «razão de Estado».

A questão foi colocada de uma maneira radicalmente nova pela Assembleia Constituinte francesa em 1789. Segundo ela, para afirmar a igualdade ontológica entre os súbditos e o seu soberano, não bastava limitar o poder absoluto do monarca, era preciso estabelecer que o Poder procede do Povo e não pode ser exercido contra ele. Este texto foi aprovado por unanimidade, inclusive pelos representantes da Igreja de França (embora posteriormente rejeitado algum tempo pelo Papado), pelos da Nobreza e pelo Rei Luís XVI. Já não se trata mais de «Direitos do Homem», mas de «Direitos do Homem e do Cidadão».

O Suíço Henry Dunant tentou proteger, no século XIX, os Direitos dos homens implicados nas guerras, quando os Estados violam as suas próprias regras. Tratou-se do Direito humanitário.

Foi os dados deste conjunto de diferentes culturas, e ainda muitas outras, que as Nações Unidas sintetizaram na sua Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ela é «universal», não porque desejada por Deus ou originada pela Natureza, mas apenas porque é partilhada pelos 193 Estados-Membros.

Ela estabelece em primeiro lugar que todos os seres humanos nascem «livres e iguais em dignidade e direitos», depois que são responsáveis não apenas por si mesmos, mas, também, uns pelos outros (art. 1). Pela primeira vez, ela afirma que os Direitos do Homem são não apenas idênticos em qualquer país, mas independentes do seu país (art. 2); o que a Sociedade das Nações havia recusado fazer a fim de proteger o sistema colonial. E, por fim, que existe uma hierarquia entre estes Direitos, dos quais os mais importantes são «a vida, a liberdade e a segurança» (art. 3); pois não se trata de estabelecer um catálogo de boas intenções contraditórias, mas de organizar a sociedade mundial. Depois vem a luta contra a escravatura (art. 4) e somente então a luta contra a tortura (art. 5). Todos estes princípios são importantes, mas apenas podem ser alcançados por esta ordem.

Hoje em dia, nos países desenvolvidos, em paz e libertos da escravatura, apenas pensamos nos Direitos do Homem para uma justiça mais justa e como uma luta contra a tortura. É um luxo que muitos outros homens não têm.

Desde a sua assinatura, este edifício foi contestado pelos mesmos que o haviam elaborado, em particular pelo Reino Unido e a sua «ingerência humanitária». No século XIX, o Império Britânico havia inventado este conceito não para ir em socorro de populações oprimidas, mas para abater o Império Otomano. Retomou-o durante a Guerra Fria para lutar contra a China e a URSS. A História quis que fosse usado pelo francês Bernard Kouchner, para instrumentalizar o infortúnio dos boat people. Ele encenou o salvamento de refugiados que vagueavam em barcos superlotados, não hesitando em atirar esses homens ao mar para «refazer um resgate» em frente das câmaras. A emoção provocada por essas imagens suscitava automaticamente uma empatia por eles. Mas a horrível sorte destas vítimas não nos dizia nada sobre a suposta justeza da sua luta e, ainda menos, sobre a suposta ilegitimidade dos seus governos. Esta é a mesma técnica que é hoje utilizada para a comunicação quanto ao infortúnio dos migrantes no Mediterrâneo. O atroz afogamento de milhares deles nada nos diz sobre as causas da sua partida e não valida o seu direito a entrar em casa dos outros. Talvez eles tenham razão, talvez estejam errados. Só a investigação e não a emoção o poderá confirmar.


A iniciativa humanitária da Alemanha, da Bélgica e do Koweit para Idlib

Observemos o debate do Conselho de Segurança de 19 de Setembro de 2019. A Alemanha, a Bélgica e o Koweit apresentaram um projecto de Resolução (S / 2019/756) para salvar os civis da província de Idlib, massacrados pelos exércitos sírios e russos que lutam indiscriminadamente contra o terrorismo. Este documento fora precedido por uma intensa campanha relatando o bombardeamento de hospitais e as difíceis condições de vida dos civis hostis ao regime do cruel ditador «Bashar».

Forçoso é constatar que jamais houve hospitais, devidamente reportados, que tenham sido bombardeados; que é impossível estabelecer estatísticas num campo de batalha de um modo tal que todos pretendam estabelecer por extrapolação os seus próprios números, diferentes e contraditórios, aí incluídas as várias agências da ONU. Ora, o facto de que, nesta guerra, nós não possamos quantificar os acontecimentos perturba a nossa maneira de os interpretar.

Projectos de Resolução semelhantes tinham sido apresentados pelos Ocidentais durante as batalhas de Alepo e da Ghuta de Damasco. Eles chocaram com os vetos da China Popular e da Federação da Rússia. Nenhum projecto fora, pelo contrário, apresentado durante a batalha de Raqqa, no entanto infinitamente mais destrutiva e mortífera. Sendo a única diferença que Raqqa foi arrasada pela Coligação (Coalizão-br) Ocidental e não pelos Exércitos sírio-russos. Por outras palavras, se a sorte das vítimas foi igualmente trágica nos quatro casos, segundo a Alemanha, a Bélgica e o Koweit apenas é condenável quando é imputável aos Sírio-Russos, não quando é o resultado do feito pelos Ocidentais.

Note-se que os militares presentes no terreno ressaltaram a cegueira da Coligação Ocidental, no seio da qual eles se batiam, e compararam-na com a selectividade das forças Sírio-Russas. Foi por ter assinalado estas atrocidades ao Inspector-Geral do Pentágono que 50 analistas do CentCom foram sancionados. Foi por ter reportado, na Revue Défense Nationale, a sua vergonha e a sua revolta que o Coronel francês François-Régis Legrier foi severamente punido.

A ideia da Alemanha, da Bélgica e do Koweit segundo a qual o «regime de Bashar» mataria o seu próprio povo a coberto da luta contra o terrorismo vira ao contrário o ideal dos «Direitos do Homem». Com efeito, quando se fala aqui de luta contra o terrorismo, não nos referimos a alguns indivíduos massacrando à kalashnikov ou decapitando os espectadores de uma sala de concertos, mas a dezenas de milhar de combatentes atirando-se sobre a população para lhe impor um regime de opressão. O primeiro dever do «regime de Bashar» é o de salvar a sua população desta monstruosa horda, de restabelecer o seu direito «à vida, à liberdade e à segurança».

Mesmo que se negue o apoio europeu aos jiadistas de Idlib, a Alemanha e a Bélgica não podem fingir boa fé: recusam repatriar centenas dos seus nacionais, praticantes da jiade, que se renderam às Forças norte-americanas e são hoje em dia prisioneiros dos auxiliares curdos. Eles têm, pois, perfeita consciência da sua perigosidade. Como podem orgulhar-se da sua recusa à pena de morte em casa quando pedem, discretamente, a outros governos para os enforcar em seu lugar.

A hipocrisia humanitária da Alemanha, da Bélgica e do Koweit

Tendo registado a duplicidade de linguagem da Alemanha, da Bélgica e do Koweit, observemos as razões ocultas do seu projecto de Resolução. Os Ocidentais apoiaram os jiadistas da Alcaida na esperança de derrubar a República Árabe Síria. Foi o prolongamento da estratégia que lhes deu êxito na Líbia. Em 2011, os jiadistas do Grupo Islâmico Combatente na Líbia (GICL), que tinham sido integrados na Alcaida, foram comboiados pela CIA desde o Iraque--- onde se batiam--- para a Líbia, seu país de origem. Eles formaram o grupo de tropas no solo para a operação aérea da OTAN. Depois, foram transportados pelo Alto-Comissariado para os Refugiados (então chefiado pelo actual Secretário-Geral da ONU, António Guterres) e pelos Serviços Secretos turcos para a Síria, onde constituíram o Exército Sírio Livre. Quando se provou ser impossível derrubar o «regime de Bashar», os Anglo-Saxões deixaram cair a maior parte dos jiadistas, mas os Alemães e os Franceses sentiram uma responsabilização por eles. Foram, então, reagrupados na província de Idlib, onde criaram vários Emirados Islâmicos. A Alemanha e a França continuam a armá-los e ainda hoje em dia subsidiam as ONGs que os alimentam.

A Alemanha e a França são, portanto, partes assumidas da guerra que denunciam. Acontece que o Presidente Emmanuel Macron buscando pacificar as relações de Paris com Moscovo não assinou o projecto de Resolução alemão, mas pediu ao seu fiel Charles Michel que o fizesse em nome da Bélgica. O Kuwait veio juntar-se, sem que se saiba quanto gasta actualmente com os jiadistas de Idlib, mas as manifestações de apoio neste país lembram o momento em que os movimentos salafistas aí arrecadaram US $ 400 milhões de dólares para a jiade na Síria.

Ao apresentar este projecto de Resolução, a Alemanha, a Bélgica e o Kuwait sabiam que isso provocaria a fúria da China e da Rússia. Escolheram, pois, dividir o Conselho de Segurança e, assim, enfraquecer a sua autoridade. Este comportamento explica-se pelo temor de ver as linhas de clivagem evoluir, sob o impulso do Presidente Trump. À tradicional oposição do Ocidente contra a Rússia e a China, poderia substituir-se um directório mundial Rússia/EUA/China. A Alemanha tenta pois mobilizar o campo ocidental, o que deu resultado, mas a grande custo. Prosseguindo o seu ataque, a Alemanha, a Bélgica e o Koweit recorreram à Assembleia Geral para contornar os vetos do Conselho de Segurança. Apresentaram um novo projecto de Resolução (A/HRC/42/L.22) de 10 páginas condenando a República Árabe Síria.

Não hesitaram em fazê-lo quando já não dispõem mais do pretexto da libertação de Idlib pelas tropas sírias, uma vez que os combates cessaram desde a proclamação de um cessar-fogo unilateral por Damasco, a 1 de Setembro às 0h00. O «regime de Bashar» marcou uma pausa para facilitar a fuga dos seus cidadãos tomados como reféns na armadilha dos ocupantes jiadistas.

Aliás, a representante dos EUA no Conselho, Kelly Knight Craft, deu-se ao luxo de acusar a China de ter usado o seu veto para imitar a Rússia (S/PV.8623); um insulto bastante inútil quando se conhece a paciente vontade de Pequim em apresentar uma política externa decisiva e independente. Esta actuação é, ainda uma vez mais, um modo para o campo ocidental de negar a igualdade dos povos e manifestar a sua suposta superioridade.

Bashar el-Assad, defensor dos Direitos do Homem

Examinemos agora o ponto de vista sírio. Segundo a imprensa internacional, uma revolução popular teria começado em 2011 na Síria, infelizmente ela teria corrido mal e acabou por se transformar numa guerra civil. Se podíamos crer nesta versão dos factos em 2011, hoje em dia já não podemos, tendo em vista a quantidade de documentos que surgiram a propósito. Esta guerra tinha sido planeada por Washington desde 2001, e começou no contexto das «Primavera Árabes», planeada por Londres, desde 2004, dentro do modelo da «Grande Revolta Árabe», de Lawrence da Arábia. A Arábia Saudita reconheceu ter financiado e armado, antecipadamente, os desordeiros de Deraa que lançaram o movimento.

A primeira responsabilidade da República Árabe Síria, do seu povo, do seu exército e do seu Presidente, Bashar al-Assad, era de defender os Direitos do Homem universais que são «a vida, a liberdade e a segurança». Foi o que eles fizeram face às hordas de jiadistas vindas do mundo inteiro para colocar a Confraria dos Irmãos Muçulmanos no Poder.

Não há nenhuma dúvida que criminosos conseguiram infiltrar a polícia e o exército da República; que, na confusão da guerra, eles puderam continuar a praticar seus crimes usando o uniforme; mas estes comportamentos, que se verificam em todas as guerras, nada têm a ver com essas guerras em si mesmas. Desde que a sorte das armas se inverteu, elas têm sido severamente sancionadas.

Já não há mais qualquer dúvida que os bombardeamentos da artilharia síria e da aviação russa mataram não apenas alvos jiadistas, mas também, colateralmente, cidadãos sírios enquanto reféns de jiadistas. Atingir também os seus é, infelizmente, o fardo de todas as guerras. O seu martírio não responsabiliza, pois, o povo sírio, o seu exército e o seu presidente, que os choram. É da responsabilidade dos agressores, entre os quais a Alemanha e a França, que o fomentaram.

A Líbia não é comparável à Síria. Mas, oito anos após a operação da OTAN temos uma visão mais clara daquilo que se passou.

Muammar Kadafi reconciliou os bantus e os árabes, pôs fim à escravatura (escravidão-br) e elevou consideravelmente o nível de vida do seu povo. Ele é descrito como um ditador, muito embora não tenha morto mais opositores políticos do que os chefes de Estado ou de governo ocidentais. Para derrubar a Jamahiriya, a OTAN apoiou-se nos combatentes da Alcaida, na tribo dos Misrata e na Confraria dos Sénoussis. Ela matou cerca de 120.000 pessoas. O seguimento foi antecipado por inúmeros analistas : o nível de vida colapsou, a escravatura foi restabelecida, o conflito entre árabes e bantus estendeu-se por toda a África sub-saariana. Sem qualquer dúvida razoável, Muammar Kaddafi defendeu melhor os Direitos do Homem no seu país e no seu continente do que fez a OTAN.

Na Síria, Bashar al-Assad preservou o mosaico confessional, que não existe em mais lado nenhum do mundo, desenvolveu a sua economia e negociou uma paz tácita com Israel. O seu povo e o seu exército consentiram o martírio de pelo menos 350. 000 de entre eles. O seu país está hoje devastado e Israel voltou a ser um inimigo. A responsabilidade por estes infortúnios cabe em exclusivo aos Estados agressores. Os Sírios, o seu Exército e o seu Presidente, Bashar al-Assad, defenderam, como puderam, os Direitos do Homem que os Ocidentais pisotearam.

Os Ocidentais estão convencidos da superioridade moral da sua civilização. Não conseguem, pois, ver os seus próprios crimes, que os outros amargam. É precisamente esta arrogância que é contestada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem erigindo a igualdade de todos em Direito e em Dignidade.

Thierry Meyssan* | Voltaire.net.org | Tradução Alva

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

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