terça-feira, 5 de novembro de 2019

Brasil | Seiscentos dias sem Marielle


Sabiam de sua potência: não a suportaram. Agora, escondem-se, furtam provas, tentam apagar o rastro que deixaram. Será inútil. Seu corpo político é emblema das lutas e iras que sepultarão os patifes e construirão uma democracia real

Áurea Carolina | Outras Palavras | Imagem: Matheus Pereira

Enfim chegará o momento
em que teu sofrimento não será em vão
E mãos desatadas de ti apartadas
em ti se reencontrarão
Olha o povo na rua
Olha o som da vitória
Olha a voz da memória
nas quebradas da Maré

Maré, canção de André Mussalém

Nos últimos dias, com o aparecimento de novos fatos relacionados à execução política da vereadora Marielle Franco, ficou ainda mais evidente o quanto esse crime que abalou o Brasil tem produzido efeitos decisivos sobre o momento histórico que estamos atravessando. Conforme noticiado pela imprensa, as investigações sobre o caso chegaram a um possível envolvimento da família Bolsonaro com os assassinos, em uma trama que desencadeou imediatamente reações desesperadas do presidente da República, do ministro da Justiça e do procurador-geral da República, entre outros atores bolsonaristas, que trataram de desqualificar a denúncia sem que houvesse uma conclusão definitiva do processo investigatório.

Independentemente dos desdobramentos que se seguirão e da verdade sobre os fatos, a morte premeditada de Marielle e, por consequência, do seu motorista Anderson Gomes, é um marco que sintetiza a fermentação de profundos abalos na estrutura da sociedade brasileira. Presenciamos um cenário em transformação. Forças conservadoras e autoritárias se debatem raivosas, mas também atualizam formas mais racionais e organizadas de infiltração na vida cotidiana. As esquerdas convencionais têm pouca capacidade demonstrada, até o momento, de coordenar esforços e promover ações de base para retomar a democracia institucional. Emergem experiências inovadoras de feição antissistêmica a partir das lutas feministas, antirracistas, LGBTI, indígenas, entre outras, por condições dignas de existência.

O símbolo de Marielle interpela tudo isso. Detratores da memória de Marielle insistem, sem sucesso, em negar a sua extraordinária projeção política. Espalham mentiras, tentam abafar o caso como se fosse mais um número para as estatísticas de violência, querem esvaziar a pergunta insuportável para eles – quem mandou matar Marielle? – com a pergunta estúpida de quem teria mandado um homem em sofrimento psíquico dar uma facada em Bolsonaro.


O surto conservador diante do fenômeno, contudo, é compreensível. A figura de Marielle provoca um curto-circuito nas emoções daqueles que se sentem ameaçados pelo poder encarnado por ela: mulher, negra, bissexual, mãe, favelada, acadêmica, altiva, sorridente, engajada, eleita. A miséria subjetiva causada pelo patriarcado e pelo racismo impede que se reconheça tanta alteridade.

Uma imagem autoexplicativa dessa pane mental talvez seja o exibicionismo de homens brancos ostentando armas ou fazendo gestos de armas como se aquilo pudesse lhes dotar de um poder que confessam não possuir por eles mesmos. Os brutamontes não aguentam uma mulher livre, empoderada por sua própria trajetória. Em tempos de renovada franquia do conservadorismo no Brasil, Marielle se tornou alvo emblemático do ódio.

Porém, a chama mobilizadora que atravessa Marielle, acesa muito antes do seu florescer público, se alastra com a sua execução. O encontro de lutas no corpo político de Marielle é a metonímia de como têm se formado redes de cooperação entre diversas lutas em uma chave interseccional. Uma luta puxa a outra. O que dá resultado é o fazer coletivo, a intervenção direta sobre os territórios, as alianças construídas entre quem se movimenta para mudar as coisas. O exemplo de Marielle comprova essa sabedoria experimentada na prática.

Por tabela, declina rapidamente o ranço esquerdista das grandes teses e manias de protagonismo desconectadas das realidades concretas das pessoas. Abre-se aí uma das fronteiras mais promissoras da transição democrática que está em curso no Brasil: começa a se afirmar um poder que vem da organização autônoma de mães e familiares de vítimas da violência estatal, estudantes negros e pobres, moradores das periferias, religiosos progressistas, educadores e comunicadores populares, artistas e agentes culturais, trabalhadores de serviços públicos que lidam na ponta com demandas da cidadania, defensores dos direitos humanos e do meio ambiente, ativistas urbanos e muitos outros coletivos.

Tais experiências também começam a se lançar para a ocupação do sistema político, como fez Marielle. Na manhã de 15 de março de 2018, o dia seguinte ao assassinato, milhares de Marielles brotaram no chão da Cinelândia, em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, onde o corpo da nossa irmã era velado. Eu estava lá e vi isso acontecer. A multidão tinha o rosto de Marielle. Ali estava exposto o símbolo gigante que ganhou o mundo porque consubstancia uma linguagem universal. Marielle, imortal, é um chamado de coragem. Como na belíssima música “Maré”, de André Mussalem [ouça e veja o clipe aqui], o Brasil não é o mesmo depois dessa voz que não cala nas quebradas.

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