Como hesitar e não defender
Handke e a sua corajosa denúncia da intervenção dos EUA e aliados na
Jugoslávia, que aí despejaram 23 mil toneladas de bombas e mísseis?
Jorge Seabra | AbrilAbril |
opinião
Televisão, SIC Notícias, o
locutor apresenta o crítico literário do Expresso, José Mário Silva, para
comentar os prémios Nobel da Literatura de 2018 e 2019, acabados de atribuir à
escritora polaca Olga Tokarczuk (2018) e ao austríaco Peter Handke (2019)1,
adiantando que «têm posições políticas de certa forma contrárias».
Dois grandes escritores –
salienta o crítico – com «posições diferentes na literatura e na vida», mas de
«qualidade inatacável» e, sob ponto de vista literário, «sem polémica
possível».
Já «quanto às posições políticas,
talvez…».
Para José Mário Silva, enquanto a
premiada polaca «é de esquerda, defensora dos Verdes, dos direitos dos animais,
etc., mas dentro daquilo que se espera de um intelectual, o caso de Handke é
muito mais complicado…».
O telespectador poderá ser levado
a pensar que Handke, escritor mundialmente conhecido, será politicamente de
direita, talvez até simpatizante dos neofascistas polacos que Olga Tokarczuk
corajosamente critica.
Mas o comentador do Expresso avança,
especificando o «caso complicado» de Handke:
«Ele foi um dos grandes
escândalos intelectuais dos últimos anos, porque não se limitou a criticar o
comprometimento dos Estados Unidos na guerra da Jugoslávia, não só isso, mas
esteve no funeral de Slobodan Milošević, que foi condenado por crimes de
guerra, e fez o elogio. Isso foi muito complicado. Criou uma espécie de
anátema, alguns dos prémios que lhe tinham sido atribuídos acabaram por lhe ser
retirados, e espanta-me que a Academia Norueguesa tenha tido a coragem, de
certa maneira, de fazer esta escolha. Isto ainda vai fazer correr muita
tinta…».
E de facto correu. Bastou
espreitar o Google nos dias seguintes para saber o que diziam o New York
Times, The Guardian, a BBC ou a CNN e perceber o tom escandalizado:
«Admirador do criminoso de guerra
Slobodan Milošević», «defensor de um genocida», «amigo do Carniceiro dos
Balcãs»…
Enfim, com boa vontade, um bom
escritor mas sem sentido de ética ou de vergonha.
É bem verdade que já antes havia
pesado o mesmo «anátema» sobre outros nobelizados, como Harold Pinter (2005),
Günter Grass (1999), José Saramago (1998), e anteriormente com Gabriel Garcia
Márquez (1982), «amigo do ditador Fidel Castro» (New York Times, Bret Stephens,
17 de Outubro de 2019).
Na realidade quem não apoia a
política do império, não tem a vida fácil nos meios intelectuais dominantes,
com algumas franjas da esquerda mais frágil a repetir acriticamente os seus
chavões.
Mais de vinte anos após a
agressão dos EUA e da «Europa» à Jugoslávia e da campanha de desinformação com
que o «Ocidente» a procurou justificar, ela está de volta às primeiras páginas
com Handke a ser o bombo da festa, alvo de insultos e abaixo-assinados para lhe
retiraram o prémio Nobel, atribuído por um júri totalmente renovado depois dos
escândalos da academia sueca no ano passado.
«Um prémio no cravo e outro na
ferradura?», titulava o Público de 11 de Outubro, juntando-se à
confusão ideológica desta onda (des)informativa. Porque afinal, estar contra os
bombardeamentos dos EUA e da NATO, levados a cabo à margem do direito internacional
e da carta da ONU, não será estar do mesmo lado dos que criticam o regime de
extrema-direita da Polónia, como Olga Tokarczuk?
Talvez ser defensora das
liberdades políticas e das «causas verdes» e dos animais, esteja «dentro
daquilo que se espera de um intelectual» – como afirmou o crítico do Expresso.
Seguramente mais aceitável do que
atacar as guerras «humanitárias» das potências ocidentais que deixam os países
tão benevolamente «ajudados» – como o Afeganistão, o Iraque, a Líbia ou a Síria
– feitos em cacos e com uma boa parte da população morta ou em fuga.
«Polémica em torno do Nobel a
Peter Handke não abranda» – escreve Luís Miguel Queirós no Público poucos
dias depois (16 de Outubro de 2019), citando outras acusações de políticos e
escritores. O escritor austríaco merece ainda uma seta vermelha virada para
baixo na galeria das avaliações sumárias.
Colaborador em filmes de Wim
Wenders e ele próprio realizador de cinema, fica-se assim a saber que Handke
continua a ser o alvo do «anátema» apontado pelo crítico do Expresso,
tendo-lhe até sido retirados prémios literários já atribuídos.
Tolerância da nossa democrática
maneira de viver no Ocidente? Algum rigor na avaliação dos factos?
Apesar da abertura negocial e
cedência às exigências leoninas dos EUA, Milošević foi por estes alcunhado como
«Carniceiro do Balcãs», título estendido a outros dirigentes sérvios (como
Karadzic e Madlic) e usado à medida das conveniências, passando a ser papagueado
em telejornais, comentários e debates, sem merecer qualquer contraditório.
A verdade é que Slobovan
Milošević, vulgarmente apresentado como «condenado por crimes de guerra» (como
fez o crítico literário do Expresso ou a escritora Inês Pedrosa na
RTP 3), ou sob formas mais ambíguas como «acusado de crimes contra a
Humanidade» (usada pelo Público), foi completamente ilibado de todas as
acusações.
Extraditado à revelia das leis e
decisões do Supremo Tribunal do seu país, Milošević foi entregue ao Tribunal
Penal Internacional para a Jugoslávia (TPIJ) – instituído por influência dos
USA que a ele não se sujeita – e este acabou por considerar não existirem
provas que permitissem qualquer acusação.
Transferido para o Tribunal Penal
Internacional (TPI) de Haia, por ordem do então primeiro-ministro sérvio Zoran
Didic, desejoso de ganhar as boas graças dos EUA e contra a promessa de ajuda
financeira, Milošević foi totalmente ilibado de tais acusações anos depois da
sua morte, em 2006, acontecida na prisão em condições suspeitas.
Após cinco anos de prisão, o
dirigente sérvio faleceu devido a um ataque cardíaco e à falta de cuidados
médicos apropriados, depois de os ter exigido e protestado contra a sua recusa
pelo tribunal, que assim assumiu uma pesada responsabilidade na sua morte.
Dez anos após o seu falecimento
(2016), no meio do silêncio cúmplice dos principais media ocidentais,
Milošević viu reconhecida a sua completa inocência por um tribunal parcial e
hostil (TPI), ao qual, com dignidade, nunca reconheceu autoridade.
Ficou ainda provado o seu empenho
nas tentativas para evitar a guerra civil fratricida que dilacerou a
Jugoslávia.
Confirmou-se, pois, que
Milošević, o «Carniceiro dos Balcãs» era, de facto, natural dos Balcãs – única
verdade do inventado título que agora volta a ser usado na onda de acusações a
Handke, como se todo o festival de falsidades e fake news da altura
tivesse ganho total autonomia, assumindo-se como «verdade alternativa».
Apesar do tempo passado, a
defesa, por Handke, das regras do direito internacional flagrantemente violadas
em todo o processo da Jugoslávia pelos USA e aliados, fazem do escritor
austríaco «um caso complicado», um «anátema» caucionado por alguns intelectuais
«sensatos» que ocupam os lugares cómodos da esquerda crítica «independente» e
«ecléctica».
No seu excelente livro Fools
Crusade, um dos mais bem documentados textos sobre o conflito jugoslavo
(editado pela Caminho com o título Cruzada de cegos), a jornalista
americana Diana Johnstone, afirma acerca da narrativa «oficial»:
«Quase tudo é falso neste conto
de fadas. Infelizmente, a refutação dos mitos estabelecidos, por mais falsos
que eles sejam, não é fácil. Aquilo que é constantemente repetido torna-se “uma
evidência”. Com efeito, muitos factos que põem em causa ou contradizem a versão
oficial, foram citados por jornalistas escrupulosos ou transmitidos por
agências de imprensa. Mas esses factos apenas fazem breves aparições e são
rapidamente esquecidos. A ficção colectiva cria a sua própria defesa colectiva.
Há demasiadas reputações envolvidas. (…) Aqueles que ousem exprimir as suas
dúvidas correm o risco de ser tratados como “revisionistas” ou “negacionistas”,
comparáveis àqueles que negam os crimes dos nazis».
Uma boa descrição do processo de
manipulação do pensamento colectivo, em que a distorção da realidade, mesmo
quando devidamente provada, dolosamente se perpetua, como agora bem se
exemplifica nas acusações a Handke.
Talvez seja ainda de acrescentar
(facto também usualmente silenciado) que, para além do escritor, também Ramsey
Clark, que ocupou o elevado cargo de Procurador-Geral (Attorney General) dos
EUA no mandato do Presidente Lyndon Johnson, cometeu o «pecado» de estar
presente no funeral de Sbodovan Milošević.
E qualquer interessado que
pesquise na Wikipédia ficará a saber que Ramsey Clark ofereceu o seu apoio
jurídico a «demónios» como Milošević e Saddam Hussein, por considerar os seus
julgamentos uma fantochada inaceitável.
De resto, entre algumas
intervenções armadas que Ramsey Clark considera como major agression dos
USA , citam-se:
Irão (1953); Guatemala (1954);
República do Congo, Léopoldeville (1961); Guerra do Vietname (1959-1975);
República Dominicana (1965); Chile (1973); Nicarágua (1981-1988); Granada
(1983-1987); Tripoli e Benghazi, na Líbia (1986); Panamá (1989); Iraque (1991);
Somália (1992-1993); Iraque (1993-2001); Jugoslávia (1999); Sudão (1998);
Afeganistão (2001); Iraque (2003); e Haiti (2004).
E a lista poderia continuar,
desaguando nas mais recentes guerras da Líbia e da Síria e nas ameaças ao Irão
e à Coreia do Norte (que perdeu 20% da população com a intervenção dos EUA, nos
anos cinquenta).
Países que nem sequer têm
fronteiras com os EUA ou se situam na área de intervenção da NATO.
Como, por isso, se pode ser de
esquerda e atacar Handke, por criticar a política agressiva dos EUA, que tem
estas tradições de violação continuada do direito internacional?
Como hesitar e não defender
Handke e a sua corajosa denúncia da intervenção dos EUA e aliados na
Jugoslávia, que aí despejaram 23 mil toneladas de bombas e mísseis?
Conforme afirma no «Ípsilon»
do Público de 25 de Outubro de 2019 o jornalista Carlos Santos
Pereira, seguramente um dos mais conhecedores da guerra na Jugoslávia e talvez
por isso afastado dos telejornais e dos debates televisivos de maior audiência,
«o eco mediático da polémica Handke trouxe de novo às primeiras páginas as
mesmas fórmulas, os mesmos estereótipos, os mesmos ‘soundbites’ – e as mesmas
manipulações das posições iconoclastas de Handke – que resistem, um quarto
século depois, a todas as denúncias, desmentidos e desmascaramentos».
E a mentira continua…
*Na foto, Peter Handke assiste ao
funeral do ex-presidente sérvio Slobodan Milošević, em Março de 2006. Handke
foi uma das vozes críticas da guerra de agressão levada a cabo em 1999 pelos
EUA e pela NATO contra a Sérvia. O escritor, dramaturgo, ensaísta e realizador
austríaco foi recentemente galardoado com o Prémio Nobel de 2019. Créditos Petar
Pavlovic / AP
Nota:
1. Em 2020 será publicado em
Portugal o mais recente romance de Peter Handke e a edição das suas obras terá
um novo fôlego, afirmou à Lusa o seu editor português. O Jornal
de Letras publicou, a 10 de Outubro de 2019, uma entrevista com o autor, que pode ler aqui. Uma lista de obras publicadas e
disponíveis nas livrarias pode ser encontrada
na Wook.
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