quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Pânico no Federal Reserve e retorno ao "credit crunch" num oceano de dívida


Eric Toussaint [*]

Num cenário de descalabro, a 17 de setembro de 2019 a Fed [Federal Reserve, o banco central dos EUA] injectou 53,2 mil milhões de dólares nos bancos, porque estes não conseguiam obter financiamento corrente, dia a dia, nem mercado interbancário nem nos money market funds (ver caixa "O que são os money market funds?"). A Fed voltou a fazer o mesmo nos dias 18 e 19 de setembro ( www.wsj.com/... ). Este tipo de procedimento traz à memória o mês de setembro de 2008, quando os grandes bancos, em pleno descalabro, deixaram de emprestar dinheiro uns aos outros (o que, entre outras coisas, provocou a falência do banco Lehman Brothers) e tiveram de apelar à ajuda dos bancos centrais. Os grandes bancos privados já não confiavam uns nos outros. O mercado bancário secou subitamente; a este estado de coisas a imprensa chamou credit crunch. A partir desse momento, a Fed injectou continuamente liquidez nos grandes bancos privados dos EUA e até 2011 permitiu que os bancos europeus recorressem massivamente à liquidez em dólares. Tinha de ser: os bancos norte-americanos e os bancos europeus estavam de tal maneira interligados, que a falta de liquidez na Europa impediria os bancos europeus de honrar os seus compromissos com os bancos norte-americanos, provocando-lhes graves dificuldades.

Na terça-feira, 17 de setembro de 2019, no mercado interbancário e no mercado dos money market funds, os bancos viram-se na contingência de aceitar pagar juros na ordem dos 10 % se quisessem ter acesso ao crédito, enquanto a taxa a que a Fed emprestava dinheiro aos bancos rondava os 2 a 2,25 %. Por isso, face à pressão do grande capital e de Trump, a Fed emprestou aos bancos privados 53,2 mil milhões de dólares ao fim do dia 17 de setembro ( www.anti-k.org/... ). E no dia seguinte, novamente sob pressão de Trump, dos grandes bancos e das grandes empresas, a Fed baixou a taxa de juros oficial pela primeira vez em 3 meses. Na quarta-feira, 18 de setembro, a taxa da Fed fixou-se em 1,75% e 2%, ou seja, desceu 0,25% ( www.theguardian.com/... ). Apesar desta descida, Trump exprimiu mais uma vez uma crítica dura, via tweet: "Jay Powell and the Federal Reserve Fail Again. No "guts", no sense, no vision!"

Tradução livre: "Jay Powell e a Federal Reserve voltaram a falhar. Falta-lhes tomates, tino e visão". Trump quer que a Fed reduza muito mais a taxa de juro , que a fixe em 0%, a fim de corresponder à política do BCE e do Banco do Japão, cujas taxas já se situam nos 0%.

O que são os money market funds?

Os money market funds (MMF) são sociedades financeiras dos EUA e da Europa, pouco ou nada controladas ou regulamentadas, pois nem sequer têm licença bancária. Fazem parte do shadow banking. Em teoria, os MMF têm uma política prudente, mas a realidade é outra. A administração Obama tencionava regulamentá-los, porque, em caso de falência de um MMF, o risco de ter de utilizar recursos públicos para os salvar é demasiado alto. Esta intenção ficou a meio caminho. Os MMF suscitam muita inquietação, tendo em conta os consideráveis fundos que gerem e a queda, desde 2008, da sua margem de lucro. Em 2019 os MMF norte-americanos movimentaram 3400 mil milhões de dólares de fundos ( www.ici.org/research/stats/mmf/mm_09_12_19 ), contra 3800 mil milhões em 2008. Sendo fundos de investimento, os MMF colectam capitais dos investidores (bancos, fundos de pensões, etc.). Estes dinheiros são depois emprestados a muito curto prazo, frequentemente ao dia, aos bancos, às empresas e aos Estados. Nos anos 2000 o financiamento prestado pelos MMF tornou-se um componente importante do financiamento a curto prazo dos bancos.

A agência de notação Moody's calcula que, durante o período 2007-2009, 62 MMF tiveram de ser salvos da falência pelos bancos ou fundos de pensões que os tinham criado. Estamos a falar de 36 MMF que operam nos EUA e 26 na Europa, e de um custo total de 12,1 mil milhões de dólares. Entre 1980 e 2007, 146 MMF tiveram de ser salvos pelos seus patrocinadores. Em 2010-2011, ainda segundo a Moody's, 20 MMF tiveram de ser recapitalizados [1] . Isto mostra a que ponto podem pôr em perigo a estabilidade do sistema financeiro privado.

O que acaba de acontecer é mais um sinal do estado da economia capitalista mundial. O crescimento é extremamente débil nos países mais industrializados. A economia dos EUA, que tinha sido dopada pelas medidas fiscais de Trump em 2017-2018 para favorecer o grande capital, entrou numa desaceleração progressiva que inquieta os patrões. A economia alemã tem passado mal, a da Grã-Bretanha também, assim como a italiana. O mercado automóvel anda na mó de baixo na Alemanha, na China, na Índia, … A China mantém um crescimento de 5 a 6%, mas esta é a sua taxa de crescimento mais baixa nos últimos 30 anos.

A economia capitalista mantém-se à tona num oceano de dívidas e a injecção massiva de liquidez fornecida pelos principais bancos centrais reforça essa tendência

Pouco ou nada dos lucros das empresas é reinvestido na produção; os lucros vão para os bolsos dos accionistas e para a especulação em títulos financeiros diversos, ou seja, para o capital fictício. Já para não falar na luta contra as mudanças climáticas, que realmente não faz parte das preocupações dos chefes das empresas e dos grandes accionistas privados. O sector bancário, desde 2008, não foi minimamente saneado e a concentração bancária aumentou. Os grandes grupos privados absorveram um grande número de bancos médios e prosseguiram numa lógica de maximização dos lucros imediatos por via da especulação. As autoridades reguladoras deixam andar. O mesmo fazem os governos ao serviço do grande capital.

A economia capitalista mantém-se à tona num oceano de dívidas e a injecção massiva de liquidez fornecida pelos principais bancos centrais (o BCE, o banco central dos EUA, do Japão, da Grã-Bretanha e da China) reforça essa tendência.

Por causa das políticas levadas a cabo pelos bancos centrais e pelos governos, a economia dos países mais industrializados caiu naquilo que o economista britânico J. M. Keynes (1883-1946) chamou a armadilha da liquidez. Enquanto os bancos centrais injectarem liquidez e baixarem as taxas de juros, os bancos e as grandes empresas privadas preferirão arrecadar essa liquidez posta ao seu dispor ou utilizá-la para especular.

Convém ainda recordar as palavras de Karl Marx (1818-1883) em O Capital: "Desde o instante em que nasceram, os grandes bancos, repletos de títulos nacionais, não passam de associações de especuladores privados plantadas ao lado dos governos e que, graças aos privilégios que deles obtêm, vivem à custa do dinheiro público emprestado". [2]

A questão não é: as bolhas especulativas irão rebentar ou não? Mas sim: quando rebentarão elas?

A propósito das crises, acrescentava ele: "A crise rebenta primeiro onde grassa a especulação e só depois alastra à produção. O observador superficial não se apercebe da crise na produção. A desorganização consecutiva da produção não parece ser o resultado inevitável da sua exuberância anterior, mas sim uma simples reacção da especulação quando esta se deflaciona". [3]

Na situação actual, a economia capitalista mundial entrou numa nova fase de crise, com uma desaceleração acentuada da produção, superprodução em relação à procura real e especulação sobre uma série de activos principalmente financeiros (ver adiante). Junta-se a isto uma guerra comercial acentuada pela política de Trump, o reforço da corrida ao armamento e uma guerra de divisas. Entretanto a crise ecológica assume novas proporções e o grande capital, na mira do lucro imediato, adopta políticas que agravam essa crise. É tempo de fazer uma viragem radical a favor da Natureza, da qual a Humanidade faz parte.

A armadilha da liquidez

Nesta secção do artigo passo em revista o balanço da acção dos bancos centrais dos países mais industrializados desde o início da crise e resumo as ameaças inerentes às suas políticas. É importante sublinhar o dilema com que se vêem confrontados, dilema pelo qual são responsáveis.

Ponhamos as coisas de forma simples e um pouco esquemática: os banqueiros centrais perguntam-se quanto tempo irão manter a política actual, que consiste em injectar massivamente liquidez nos bancos e manter uma taxa real de juros muito baixa, próxima do zero, ou pelo menos inferior à inflação. Faz bastante tempo que eles sabem muito bem que ao aplicarem esta política, a fim de permitirem que os bancos (e as grandes empresas não financeiras) se mantenham à tona de água, favorecem o nascimento de novas bolhas especulativas, as quais podem rebentar a curto ou médio prazo. A questão não é: irão elas rebentar ou não? Mas sim: quando rebentarão?

Ao mesmo tempo, os dirigentes dos bancos centrais sabem que se reduzirem nitidamente as injecções de liquidez, vão causar dificuldades aos grandes bancos e provocar o rebentamento de novas bolhas especulativas que se formaram ao longo dos últimos anos. Se além disso aumentarem as taxas de juros, aumentam ainda mais o risco de falências bancárias e rebentamento de bolhas. Ainda por cima, se aumentarem as taxas de juros, aumentam automaticamente o custo do pagamento da dívida pública e agravam o défice dos Estados. [4]

É claro que existem alternativas (ver "Manifesto por Um Novo Internacionalismo dos Povos na Europa" e "Gilets jaunes: apprendre de l'histoire et agir dans le présent"). Estas alternativas implicam optar por uma mudança radical de políticas, parar de favorecer os 1 % mais ricos e encetar reformas profundas em proveito dos 99 %. Ora os banqueiros centrais não têm apetência nem intenções de mudar o conteúdo de classe da sua política: estão ao serviço do 1 % e do sistema capitalista que lhe dá vida.

Isto coloca-lhes um dilema: prosseguir grosso modo a política actual (injecções de liquidez nos bancos e baixas taxas de juros) ou iniciar uma viragem sem mudar de lógica, ou seja reduzir a injecção de liquidez [5] e ir aumentando a taxa de juros. É como escolher entre a peste ou a cólera.

A aplicação de uma política que conjuga taxas de juros muito baixas com a injecção de grandes quantidades de liquidez nos bancos provocou os seguintes efeitos [6]:

1. Os bancos conseguem manter-se à tona de água (com raras excepções) porque recebem dos bancos centrais uma quantidade de fundos que já não conseguem obter nos mercados financeiros, em virtude da escassez de empréstimos interbancários, da grande dificuldade de vender títulos de crédito bancário a longo prazo – covered bonds e outros títulos, etc. Por outro lado, o financiamento através dos bancos centrais, ao qual se juntam várias outras ajudas dos Estados, permite-lhes ter acesso aos money market funds para o financiamento dia a dia. Este acesso pode evaporar-se da noite para o dia, como aconteceu a 17 de setembro de 2019. Em suma: os bancos privados dependem completamente do apoio dos Estados.

2. Os bancos desenvolveram as suas operações especulativas favorecendo as actividades que oferecem rendimentos mais elevados: abandonaram (durante algum tempo) o mercado imobiliário para se dedicarem à especulação sobre as matérias-primas e alimentares (sobretudo em 2008-2009), os títulos da dívida pública (desde 2009), as obrigações das empresas não financeiras (corporate bonds), os valores bolsistas (desde inícios de 2013), as divisas … Por conseguinte as suas actividades de trading não se reduziram. As técnicas especulativas evoluíram e em certos casos agravaram-se, nomeadamente com o reforço do trading de alta frequência.

3. Os bancos reduziram o crédito às famílias e às empresas, em particular as pequenas e médias empresas, que representam a maioria dos empregos. As economias periféricas da União Europeia são as mais afectadas. Os bancos endureceram as condições de concessão de crédito à economia real (constituída pelas famílias e empresas não financeiras, em particular as pequenas e médias empresas [PME]), o que vai contra a vontade expressa dos bancos centrais, que afirmam que os bancos devem aumentar os seus créditos . Mas por detrás dos discursos, os banqueiros centrais (e os governos) não tomam qualquer medida que force os bancos a abrirem os cordões à bolsa em benefício dos sectores que poderiam relançar a procura privada e alimentar algum crescimento, ou pelo menos mantê-lo.

4. As grandes empresas não financeiras, vendo-se privadas de crédito, recorrem à emissão de obrigações (corporate bonds) para se financiarem. Os bancos e outros especuladores compram essas obrigações, que geralmente geram bons rendimentos.

Em caso de necessidade, podem revender as obrigações no mercado secundário. Quem fica a perder são as pequenas e médias empresas, que não têm meios para emitir obrigações nos mercados financeiros. O que Mario Draghi propõe aos banqueiros europeus, para os encorajar a abrirem os seus créditos às PME, é que aumentem a emissão de produtos estruturados, constituídos por pacotes de créditos às PME. Significa isto que os bancos que concedem créditos às PME podem retirá-los dos seus balanços, titularizando-os por via do seu empacotamento num produto estruturado (asset backed securities). O BCE propõe que os bancos de seguida usem esses pacotes como colateral (= garantia) junto do BCE, a fim de obterem crédito a 0% de juros. Uma vez que as taxas de juro impostas às PME pelos bancos oscilam entre os 5% e os 6% em Espanha e Itália, entre os 3% e os 4% em França e Alemanha, os bancos poderiam obter lucros muito interessantes, afirma Mario Draghi. Apesar desta proposta tão apelativa, os bancos mantêm-se relutantes em aumentar os seus créditos às PME e em fabricarem mais produtos estruturados, conforme propõe o presidente do BCE. Este mostra-se muito desiludido e continua a insistir na mesma proposta sempre que tem ocasião.

5. A política dos bancos em relação às dívidas públicas soberanas assume formas contrastantes e complementares. Por um lado, não hesitam em especular contra as dívidas soberanas de países que os próprios bancos ajudaram a fragilizar. Para isso – quando não intervêm directamente – servem-se dos seus braços financeiros: hedge funds, special purpose vehicle (SPV), fundos de investimento, etc. Ao mesmo tempo, os bancos incrementaram fortemente a sua actividade de compra de títulos soberanos, que não só constituem uma fonte de rendimentos muito elevados (trata-se de títulos espanhóis ou italianos, para falar do mercado mais importante, mas também títulos ucranianos, turcos, etc.), mas também servem de garantia e meios de liquidez (títulos soberanos dos EUA, do Reino Unido, da Alemanha, França, Benelux e outros países da zona euro ) … Por isso não nos surpreende o aparecimento de políticas bancárias que podem parecer contraditórias, uma vez que os bancos se especializaram no câmbio das suas actividades especulativas (na expectativa de rendimentos elevados) e noutros tipos de investimentos.

6. Dito isto, acrescentemos que os bancos não sanearam de facto os seus balanços nem diminuíram significativamente a sua alavancagem. Os reveses do Deutsche Bank em 2018-2019 são um dos muitos exemplos.

7. Regra geral, a política dos bancos centrais e dos governos teve efeitos muito negativos na saúde das economias, sempre em proveito dos bancos e doutras sociedades financeiras, bem como das grandes empresas não financeiras. Foram suprimidos dezenas de milhões de empregos, milhões de famílias perderam a sua habitação, a pobreza e as desigualdades aumentaram a olhos vistos, a qualidade dos serviços públicos foi deliberadamente degradada … e desenvolveram-se novas bolhas especulativas.

8. Eis uma lista incompleta das novas bolhas especulativas que geram rendimentos consideráveis e que podem rebentar a qualquer instante:

  A bolha das obrigações de empresas não financeiras, os corporate bonds (ver "A Montanha de Dívidas Privadas das Empresas Estará no Âmago da Próxima Crise Financeira"). A última queda retumbante remonta a 1994, a anterior ocorreu em 1987.

  A bolha bolsista, em plena expansão desde 2013 (a anterior data de 2007-2008).

  A bolha imobiliária em formação nos EUA e na China. Basta que uma delas rebente para provocar efeitos encadeados de enorme amplitude.

A novidade das bolhas actuais é que elas se desenvolvem num contexto de fraco crescimento económico, para não dizer estagnação económica, nos países mais industrializados, ao passo que as fases de desenvolvimento das bolhas nos últimos 40 anos aconteceram no contexto de uma certa euforia económica e de uma taxa de crescimento muito alta.

9. Por causa das políticas levadas a cabo pelos bancos centrais e pelos governos, a economia dos países mais industrializados caiu no que J. M. Keynes chamou a armadilha da liquidez. Enquanto os bancos centrais injectarem liquidez e baixarem as taxas de juros, os bancos e as grandes empresas privadas preferirão manter essa liquidez à mão de semear. Os bancos guardam-na para fazer face aos golpes provocados pelas bombas ao retardador que detêm no seu balanço e pelas novas bolhas que contribuíram para criar. As empresas industriais e de serviços consideram que não vale a pena investir, porque a procura privada e pública está anémica. Sentam-se, por assim dizer, num monte de liquidez e utilizam-na para especular. As grandes empresas privadas não estão interessadas em investir a sua liquidez na economia produtiva ou em emprestá-la às PME e às famílias. Segundo J. M. Keynes, para sair da armadilha da liquidez é necessário que os poderes públicos aumentem as despesas públicas, a fim de relançar a procura e, por arrasto, a economia: despesas de investimento (poder-se-ia evidentemente investir na transição ecológica, em energias renováveis, em grandes obras públicas úteis, em edifícios escolares e comunitários), despesas de contratação de pessoal nos serviços públicos e melhoria da sua remuneração, despesas sociais (saúde, educação, serviços sociais), aumento do montante das pensões de reforma e de vários subsídios sociais … Mas disso os banqueiros centrais e os governos nem querem ouvir falar.
A política aplicada até hoje pelos bancos centrais e pelos governos provocou um forte aumento da dívida pública, em consequência de vários factores encadeados

10. Em consequência da sua política, o volume do balanço dos bancos centrais aumentou consideravelmente. Este enorme crescimento num período muito curto serviu para manter intacto o poder dos grandes bancos privados, sem no entanto fazer as economias sair da crise. Assim indicam os pontos precedentes. Para além das declarações propagandísticas, não foi tomada nenhuma iniciativa capaz de sanear verdadeiramente o sistema bancário. Graças à intervenção dos bancos centrais (e às decisões dos governos), os grandes bancos continuam a exercer as suas actividades especulativas, frequentemente fraudulentas, para não dizer criminosas. Estas actividades são mantidas graças a uma transfusão permanente de recursos (créditos públicos ilimitados, taxas de juro quase nulas ou mesmo negativas). Alguns bancos – e não poucos – mantêm-se vivos por respiração artificial (aos créditos públicos junta-se uma injecção de capitais públicos, a fim de os recapitalizar, e garantias públicas sobre as suas dívidas).

A política aplicada até hoje pelos bancos centrais e pelos governos provocou um forte aumento da dívida pública, em consequência de vários factores encadeados: o custo do resgate dos bancos, o custo da crise – cuja responsabilidade cabe aos bancos centrais, aos governos, aos bancos privados e a outras grandes empresas –, as isenções fiscais oferecidas às grandes empresas e às grandes fortunas … Tudo isto somado confere um carácter claramente ilegítimo a uma parte muito considerável da dívida pública. A sua anulação faz parte das propostas para sair da crise.

A acção dos bancos centrais e a função das crises no sistema capitalista

No sistema capitalista uma crise serve, de certa maneira, para repor o contador a zeros: quando as bolhas especulativas rebentam, o preço dos activos volta a aproximar-se do seu valor real de mercado; as empresas menos rentáveis vão à falência e uma parte do capital é destruído. O desemprego aumenta e os salários baixam. As crises fazem parte do metabolismo do capitalismo. Não pretendo com isto justificar as crises ou o capitalismo, quero apenas sublinhar que o funcionamento do sistema capitalista implica o rebentamento periódico de crises.

Até agora, a intervenção dos poderes públicos, que responderam docilmente às exigências dos patrões, permitiu evitar ou impedir que a crise exercesse a sua função normal de "purga" do sistema capitalista. Enquanto do lado da maioria da população há dezenas de milhões de vítimas, do lado dos responsáveis pela crise o capital não é metido na ordem, as falências das grandes empresas são muito limitadas, os bancos não sanearam as suas contas e vão-se formando novas bolhas especulativas. Não se verifica a retoma do investimento produtivo.

É necessário adoptar uma estratégia internacionalista

A fraca quantidade de falências bancárias nos EUA, na Europa e no Japão não pode ser atribuída senão à ajuda prestada aos banqueiros privados pelos bancos centrais e pelos governos. Os governantes acharam que os bancos privados eram demasiado grandes para caírem na falência. A manutenção de uma política governamental que favorece os interesses das grandes empresas privadas e ataca os interesses económicos e sociais das populações, a insuficiente (e sempre em queda) procura pública e privada, as bolhas especulativas persistentes … são os ingredientes necessários ao prolongamento da crise. Se não se fizer uma viragem a favor da justiça social, a crise irá arrastar-se durante muitos anos ou assumir um carácter brutal e súbito.

É necessário adoptar uma estratégia internacionalista. Há também que procurar constantemente desenvolver campanhas e acções coordenadas a nível internacional nos domínios da dívida, da ecologia, do direito à habitação, do acolhimento de imigrantes, refugiados e refugiadas, da saúde pública, da educação pública e de outros serviços públicos, do direito ao trabalho. Têm de ser travadas lutas para pôr mão nos bancos centrais através dos poderes públicos, a fim de os pôr ao serviço do povo, para socializar a banca, as seguradoras e o sector da energia, para fazer retornar ao domínio público os bens comunitários [= commons – N. do T.], para anular as dívidas ilegítimas, para fechar as centrais nucleares, para reduzir radicalmente o recurso às energias fósseis, para impedir o dumping fiscal e os paraísos fiscais, para defender e alargar os direitos das mulheres e LGBTI, para promover os bens e serviços públicos e o lançamento de processos constituintes. Em suma, é preciso um programa resolutamente anticapitalista, feminista, internacionalista e ecologista.
04/Outubro/2019

Notas
[1] Financial Times, "20 money market funds rescued", 21-outubro-2013.
[2] Karl Marx, 1867, Le Capital, livre I, Œuvres I, Gallimard, La Pléiade, 1963, cap. 31.
[3] "Crise, prospérité et révolutions", Marx-Engels, Revue de mai à octobre 1850 in Marx-Engels, La crise, 10-18, 1978, p. 94. [N. do T.: disponível (em francês) em pdf descarregável].
[4] É importante notar que o aumento das taxas de juros tem efeitos negativos em todos os países em desenvolvimento, que passam a ter maiores dificuldades no refinanciamento das suas dívidas e que verão uma grande quantidade de capitais partir em busca de melhores rendimentos nos países mais industrializados. Mas isto não comove os banqueiros centrais, conforme declarou publicamente a presidente da Fed em fevereiro de 2014. Isto traz-nos à memória o que se passou em 1980-1981, quando as taxas de juros aumentaram brutalmente em consequência de uma decisão da Fed. Vários autores analisaram os efeitos da reviravolta.
[5] A Fed iniciou prudentemente esta viragem a partir de dezembro de 2013, reduzindo o volume mensal de compra de produtos hipotecários estruturados (MBS) e de títulos do Tesouro (US Treasury Bonds). A seguir a Fed suspendeu essas operações, mas apenas vendeu uma parcela muito reduzida dos MBS, a fim de evitar que os grande bancos privados fossem afectados por um desmoronamento do mercado. Na realidade, a Fed conserva em seu poder 1,6 mil milhões de MBS, que são produtos estruturados altamente tóxicos. Mais recentemente, sob pressão de Trump e dos grandes bancos, a Fed regressou à política de quantitative easing.
[6] Não abordo aqui os delitos, crimes e manipulações a que se dedicam os grandes bancos. Tudo isso foi analisado na série "Os Bancos e a Nova Doutrina "Too Big to Jail"" www.cadtm.org/Os-bancos-e-a-nova-doutrina-Too , publicada em 2014 e contida igualmente no meu livro Bancocracie – ver www.cadtm.org/Bancocratie-outil-indispensable .

[*] Docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.   É autor do livro Bancocratie , ADEN, Bruxelles, 2014, Procès d'un homme exemplaire , Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d'œil dans le rétroviseur. L'idéologie néolibérale des origines jusqu'à aujourd'hui , Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política , Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie , Aden/CADTM, Bruxelles, 2011. Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública , criada pela presidente do Parlamento grego.   Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.   Após a sua dissolução, anunciada a 12/11/2015 pelo novo presidente do Parlamento grego, a ex-Comissão prosseguiu o trabalho sob o estatuto legal de associação sem fins lucrativos.

A tradução de Rui Viana Pereira encontra-se em www.cadtm.org/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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