Estão mais vulneráveis ao crime
organizado, às redes de tráfico de pessoas, à prostituição. As crianças que se
encontram nas ruas já não o fazem exclusivamente por motivos financeiros. Fogem
para dizer basta e, de certa forma, “vão à procura de um sonho” mas a realidade
que encontram é muito diferente, explica ao Expresso o Instituto de Apoio à
Criança, que em 2018 acompanhou 52 casos no distrito de Lisboa
Era fácil reconhecê-las, “não só
pelos locais onde estavam na cidade, mas também pelo seu aspeto”. As roupas
estavam rotas, notavam-se os escassos cuidados de higiene. Hoje não é assim,
embora crianças e jovens continuem a estar nas ruas. “Existem algumas situações
de exclusão extremas, quase como encruzilhadas sociais”, diz ao Expresso
Matilde Sirgado, coordenadora do Projeto Rua, que funciona como observatório
social e é desenvolvido pelo Instituto de Apoio à Criança (IAC). “É uma
realidade que persiste em países da União Europeia, não é um problema de
terceiro mundo.” Estão mais escondidos e quase todos fugiram de casa ou da
instituição, como “não têm sítio onde ficar, acabam por se abrigar no sítio
onde os sem-abrigo costumam ficar”.
“Hoje há menos crianças e jovens
sem-abrigo, mas o perigo é muito maior. Estão mais vulneráveis ao crime
organizado, ao tráfico de pessoas, à angariação de jovens, à prostituição”, diz
Matilde Sirgado. “Há uma maior prevalência na faixa etária entre os 13 e 18
anos, mas o grande pico de idades é entre os 14 e 16 anos.”
Em 1989, o Projeto Rua acompanhou
162 crianças e jovens e nos anos seguintes o número oscilou, nunca passando
para lá das centenas de casos: 610 em 1994, 300 em 1995. Com o novo século,
dispararam para 758 e, em 2009, chegaram aos 1385. Foi em 2010 que o número
cresceu como nunca antes: foram acompanhadas 1836 crianças e jovens. Há cinco
anos, as estatísticas voltavam a valores próximos do século passado (471) e, em
2018, o IAC acompanhou ainda 52 processos (16 novos casos e 36 que transitam de
anos anteriores).
Abrigam-se em locais mais
protegidos, procuram esconder-se das autoridades e recorrem a balneários
públicos e aos serviços das instituições e associações de intervenção, refere o
relatório do IAC. Não ficam longos períodos de tempo na rua e rapidamente são
detectados.
“Estamos a falar de jovens que
têm as mesmas necessidades de todos os outros jovens destas idades. Muitas
vezes vêm de contextos familiares carentes, muitos fogem de casa com o
obvjetivo de dizerem basta. Vão à procura de um sonho, de uma realidade
diferente e encontram um contexto muito diferente e muito mais complicado do
que tinham imaginado”, explica Matilde Sirgado. “Os que fogem das instituições,
diz-nos a experiência, não tem que ver com os lugares ou com os funcionários.
Tem mais que ver com as medidas e as políticas sociais em vigor.”
Olhando para os 52 casos
acompanhados em 2018, a maioria dos jovens é do sexo feminino (38) e tem 17
anos, embora o IAC note que esteja a crescer o número de fugas em idades mais
jovens. “Hoje em dia, os fatores de risco de desestruturação psíquica são mais
fortes. A fuga é, assim, um apelo desesperado, uma expressão possível de um
grito de socorro perante tempestades emocionais que sucessivamente os abalaram”,
pode ler-se no relatório. Todos têm nacionalidade portuguesa.
ADOLESCÊNCIA: A IDADE DE RUPTURA
Por criança de rua entende-se
“todo o menor que entrou em rutura com a rede familiar ou comunitária, por
abandono ou por escolha própria, de forma mais ou menos radical, passando,
assim, a viver sob a sua própria responsabilidade”. Por vezes, descreve o IAC,
sobrevive “através de atos mais ou menos ilícitos, pernoitando em locais
destinados a sem-abrigo e com condutas antissociais progressivamente mais graves”,
sendo considerada uma criança em “situação de marginalidade”.
A motivação dos jovens também
mudou ao longo dos anos, hoje já não se foge ou se dorme na rua exclusivamente
por razões económicas, aponta Matilde Sirgado. “Antes era sobretudo um problema
de natureza económica. As crianças que estavam na rua mendigavam, eram forçadas
a prostituírem-se. Atualmente é também por falta de acompanhamento, do contexto
social, da rapidez com que a sociedade vive, da nossa sociedade toda ligada,
das redes sociais. Saem da malha e alguns deles vêm das classes mais
protegidas”, diz. “Por trás de uma fuga há uma série de problemas que ao mesmo
tempo facilitam a fácil entrada no mundo do crime”, alerta ainda.
Entre os casos do ano passado
(52), a maioria esteve em determinado momento da vida exposto a “modelos de
comportamento desviante” (29). Pelo menos 16 não frequentavam a escola, oito
consumiam droga e quatro estavam em situação de sem-abrigo. Há ainda registo de
casos esporádicos como roubo (3), mendicidade (3), consumo de álcool (2),
prostituição (2) e tráfico de estupefacientes (2).
“Cada vez mais cedo iniciam a
experimentação de substâncias psicoativas, procurando um aumento de bem-estar e
também enquanto desejo de provocação, de desafio e aceitação no plano social,
no limite ao ilícito. É devido à desestruturação da sua vida, à falta de
competências sociais, à reduzida capacidade de autocontrolo emocional e à falta
de hábitos de planificação, que estes adolescentes e jovens procuram soluções
imediatas, que na maioria dos casos não se apresentam como respostas
saudáveis”, acrescenta o relatório.
O Projecto Rua do IAC tem como
objetivo principal a intervenção no distrito de Lisboa em situações de
emergência face a crianças, adolescentes e jovens desaparecidos e/ou explorados
sexualmente com especial incidência sobre os que se encontram em fuga (casa ou
instituição). É a equipa que vai até aos jovens, que os procura e tenta
tirá-los da rua, com o objetivo de os ajudar a terminar com a fuga e a
reintegrarem-se.
Marta Gonçalves | Expresso | Imagem: Getty Images
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