A única «comunidade
internacional» actuante é a espelhada nos conteúdos dos media corporativos
globais, base de uma «ordem internacional» cada vez mais arbitrária e movida
por interesses totalitários.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
“Comunidade internacional» e
«ordem internacional» são expressões que nos surgem a cada passo quando se
trata de abordar os acontecimentos e as situações que se sucedem através do
mundo. O uso recorrente tem contribuído para transformá-las numa espécie de
muletas de linguagem em que vão perdendo conteúdo, esbatendo-se assim a
realidade dos seus conteúdos e significados actuais. Desse desvanecimento
surgem múltiplas interpretações e a confusão generalizada – que nada tem de
inocente. Prevalecendo então o sistema sem mandato que dá corpo à ordem global
neoliberal.
Acompanhando os relatos dos
acontecimentos mundiais produzidos pela comunicação social dominante, de
obediência corporativa, conclui-se que a comunidade internacional é uma espécie
de entidade mais ou menos abstracta que dá cobertura à ordem arbitrária
formatada pelos poderes económicos, financeiros, militares e políticos
determinantes no mundo. Uma comunidade que decide guerras, sanções, penalidades
e medidas de coacção contra povos e nações sem que esteja claro como funcionam
os mecanismos que estabelecem essas práticas. A «comunidade internacional» de
hoje é, deste modo, uma instância de poder cuja transparência não se discute
porque supostamente lhe é inerente, existe mesmo não existindo.
Procurando dissecar o conceito,
retirando-o das amarras dos poderes totalitários e passando do abstracto ao
concreto, o caminho mais natural é ir ao encontro de uma ideia de comunidade
internacional que junta as principais instâncias internacionais, designadamente
a ONU, a sua rede de instituições e as organizações de cariz continental que
não sejam – não deveriam ser – alianças políticas, económicas e militares:
União Africana, Organização dos Estados Americanos, o próprio Conselho da
Europa e outras do mesmo género.
Mais em concreto ainda: do
universo das Nações Unidas e do agregado de tratados, convenções e convénios
internacionais emana a legalidade internacional à qual todas as nações, uniões
e alianças de nações teriam de submeter-se e que deveria ser responsável por
todos os mecanismos reguladores das relações internacionais.
O mundo de hoje, porém, está
muito longe deste cenário – aquele que estaria mais próximo de garantir que
todas as nações ficassem mais equilibradas em termos de direitos e deveres.
Pelo contrário, a única
«comunidade internacional» actuante é a espelhada nos conteúdos dos media
corporativos globais, base de uma «ordem internacional» cada vez mais
arbitrária e movida por interesses totalitários.
O «Consenso de Washington»
Neste ano de 2019 cumpriram-se 30
anos sobre a data em que o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos
Estados Unidos ditaram a autêntica «nova ordem internacional» ao especificarem
o chamado «Consenso de Washington».
Embora tal não seja assumido do
ponto de vista institucional, as dez medidas básicas desse documento são os
princípios em que assenta o real funcionamento da «comunidade internacional».
São os dez mandamentos neoliberais que todos os países devem cumprir para
fazerem parte da «comunidade internacional» e estarem alinhados com a «ordem
internacional». Caso contrário, são tratados como párias e sujeitam-se à
arbitrariedade que faz as vezes de lei.
O
«Consenso de Washington» nada tem de consensual: é um diktat que
instaura o modelo económico neoliberal, sistema que deve ser posto em prática
pelas políticas e os autoritarismos militares que realmente fazem mover a
sociedade globalizante.
O mundo chegou ao diktat de
Washington ao cabo de uma década em que os regimes de Ronald Reagan, nos
Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, no Reino Unido, deram verniz
«democrático» à primeira experiência económico-política aplicada pela ortodoxia
neoliberal, a ditadura fascista de Augusto Pinochet no Chile, regida
economicamente pelos discípulos de Milton Friedman da Universidade de Chicago.
O «Consenso de Washington» marcou
a vitória do sistema capitalista na sua versão mais selvagem – o neoliberalismo
– sobre os escombros da União Soviética, do Muro de Berlim, do Tratado de
Varsóvia.
E estabeleceu uma «nova ordem
internacional» através de uma série de acontecimentos que aniquilaram o que
restava da autoridade do grupo das Nações Unidas sobre os assuntos
internacionais determinantes, deixando-os nas mãos de uma «comunidade
internacional» indefinida mas totalitária. E foi assim que o primado da
legalidade internacional saiu de cena.
Não é necessário ser exaustivo na
enumeração de factos e acontecimentos das três últimas décadas para se perceber
como o «Consenso de Washington» modelou o mundo de hoje: o Tratado de
Maastricht, a neoliberalização da União Europeia através do euro e do apressado
alargamento aos países anteriormente aliados com a União Soviética; o constante
reforço da NATO em todas as frentes, não só engolindo o Tratado de Varsóvia
como alargando a sua área de intervenção a praticamente todo o planeta; o takeover da
RDA pela RFA; a balcanização dos Balcãs através da destruição criminosa da
Jugoslávia; as duas guerras contra o Iraque; o aproveitamento multifacetado dos
atentados de 11 de Setembro, cujas versões oficiais não coincidem com
explicações factuais que têm vindo a ser demonstradas; a falsa guerra «contra o
terrorismo»; as guerras do Afeganistão, da Líbia e da Síria, as «revoluções
coloridas» de inspiração norte-americana e as «primaveras árabes»; a extinção
gradual, mas sistemática, de direitos humanos, democráticos, políticos, sociais
e laborais conquistados ao longo do século XX, em especial a seguir à Segunda
Guerra Mundial; as sanções, golpes de Estado e operações de mudança de regime
patrocinadas pelos Estados Unidos e aliados contra os países cujos governos se
recusam obedecer ao «Consenso de Washington».
O descalabro da ONU
A Organização das Nações Unidas
(ONU) deveria ser a matriz de uma autêntica comunidade internacional, gerindo-a
segundo a legalidade internacional que assenta, sobretudo, na sua
Carta.
No entanto, tem vindo a
demitir-se aceleradamente desse papel, submetida como está às sequelas do
«Consenso de Washington», à gestão antidemocrática do Conselho de Segurança, à
minimização do papel da Assembleia Geral e à subvalorização da actividade das
agências da organização, sobretudo em termos de direitos humanos, igualdade e
justiça.
Ao compasso deste processo, a
actuação do secretário-geral tem vindo a ser reduzida à de mero executor das
ordens dos poderes inquestionáveis, não lhe restando qualquer espaço para
intervir – se, por absurdo, quisesse – de acordo com posições que contrariem
o diktat neoliberal. Em vez de governarem, as Nações Unidas são
governadas pelo mesmo sistema opaco que funciona como «comunidade
internacional».
Mais graves ainda são os estados
em que se encontram as organizações regionais, como por exemplo a União
Africana e a Organização dos Estados Americanos, autênticas correias de
transmissão de poderes coloniais que ganharam poderes reforçados com a
instauração do totalitarismo neoliberal.
Os verdadeiros poderes
Não é difícil identificar quem
está por detrás da actividade da «comunidade internacional» actuante: o establishment norte-americano,
os seus braços políticos e militares, entre os quais avultam a União Europeia e
a NATO, instituições não-eleitas como o FMI e o Banco Mundial.
Esta é, porém, a face visível do
sistema totalitário. Num mundo onde os golpes financeiros e os grandes negócios
que fazem mover a economia decorrem em ambientes opacos, sobrepondo-se à
política – quantas vezes manu militari – desobrigando-se, por norma,
das orientações estabelecidas por mecanismos democráticos, a «comunidade
internacional» é uma entidade que ninguém elegeu para aplicar uma «ordem
internacional» que ninguém votou. A definição perfeita de totalitarismo.
Imagem: A Assembleia Geral das
Nações UnidasCréditos/ HispanTV
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