Manuel Carvalho Da Silva | Jornal de Notícias | opinião
A apresentação do Orçamento do
Estado (OE) para 2020 e a discussão em curso, despertaram-me a imagem do que
nos acontece quando adquirimos, ou "herdamos" de alguém, umas botas
apertadas: magoam-se os dedos dos pés e podemos ficar com bolhas dolorosas que
nos obrigam a andar de chinelos.
Lembrei-me também de ter visto,
na minha primeira visita à China, em 1984, duas mulheres chinesas com pés
minúsculos resultantes da "tradição" de, desde crianças, comprimirem
os pés para que ficassem sempre pequenos. Estas imagens colocam-me uma
interrogação: será que estamos condenados a ter uma sucessão de OE sempre a
apertar-nos, tolhendo a vida do povo e a capacidade de percorrer novos
caminhos, e tornando o país definitivamente pequenino?
Observemos enfoques que o Governo
vai enunciando, reflitamos sobre áreas relevantes do caderno de intenções que o
OE corporiza e os sinais que procura dar à sociedade, na certeza de que entre
objetivos enunciados e a sua concretização existirá uma enorme distância. E só
a ação política concreta vai determinar o que é falso ou verdadeiro.
A generalidade dos portugueses
quer um Orçamento de "contas certas", mas tem o direito de afirmar -
inclusive através das forças políticas e sociais - as prioridades para as suas
vidas, de dizer não a compromissos sagrados face a políticas perniciosas da
União Europeia e a rendas em alguns setores, de questionar se o OE deve ter
excedente. Isso não põe em causa o rigor com as contas nem o respeito pelos
nossos compromissos coletivos. O comum dos cidadãos é responsável nas escolhas
que faz para a gestão dos seus recursos, que às vezes são muito escassos; é
rigoroso e envergonha-se quando está em falta. Ao contrário, muitos ricos e
poderosos, que consideram o povo tendencialmente gastador, não cumprem as suas
obrigações, mentem descaradamente, só respeitam a ética da "Família"
a que pertencem, e protegem-se em interpretações das leis que tornam os seus
roubos legais.
Quando há dinheiro deve-se
investi-lo (bem) e não faltam áreas onde a aplicação dos cerca de 500 milhões
de euros, que se projetam como excedente para o OE 2020, possam produzir
significativos ganhos futuros para os portugueses. O endeusamento do excedente
não tem nada de científico.
Quando, para efeitos de política
salarial e de atualização dos escalões do IRS, o Ministro das Finanças escolhe
a inflação prevista para 2020 (0,3%) em vez de ter em conta a verificada em
2019 (1%) não o faz por nenhuma razão científica ou técnica, mas tão-somente
porque assim condiciona o crescimento dos salários, desde logo na Administração
Pública (AP) e das pensões, e porque coloca muitos portugueses a pagarem mais
impostos. É positivo afirmar-se prioridade à saúde, mas este setor, como
outros, não se tornará mais eficaz sem valorização dos seus profissionais.
Um OE é bom quando aposta no
desenvolvimento social e humano, no trabalho e atividades dignas, nas condições
de produção de riqueza e sua justa distribuição, no conhecimento, na
participação cívica e na cultura; quando coloca as pessoas como sujeitos dos
seus direitos e deveres e não deixa ninguém abandonado aos caprichos da
benevolência alheia. Em alguns destes campos o OE para 2020 não avança com
sinais positivos e coloca espartilhos que nos podem magoar.
*Investigador e professor
universitário
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