quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Rafael Marques: "Procuram usar-me como arma contra João Lourenço"


O jornalista angolano nega ter baixado de tom nas críticas ao regime em Luanda. Em entrevista à DW África, Rafael Marques recomenda a criação de serviços especializados contra a corrupção e pede ao povo mais intervenção.

O jornalista de investigação angolano Rafael Marques lamenta que haja indivíduos ligados ao antigo Presidente José Eduardo dos Santos que usam o seu nome como arma de arremesso contra o atual chefe de Estado, João Lourenço. Por outro lado, o mentor do portal "Maka Angola" diz que para haver uma investigação séria em Angola são necessários procuradores mais competentes, referindo que no plano da recuperação de capitais é preciso um serviço "mais especializado".

Rafael Marques esteve em Lisboa no âmbito da conferência "Sociedade Aberta", organizada pelo jornal português Observador, e concedeu esta entrevista à DW África.

DW África: Afirmou há dias que Portugal e Angola devem cooperar com vista a destruir o "cancro da corrupção", isto na sequência dos vários episódios ocorridos na relação entre os dois países envolvendo figuras de proa da elite angolana e portuguesa. Qual é a sua perspetiva?

Rafael Marques (RM): O saque, a pilhagem em Angola, teve um contributo incontornável de Portugal por conta de advogados, políticos, financeiros, pela banca portuguesa e outros elementos acessórios que facilitaram que Portugal se tornasse na principal lavandaria dos fundos desviados de Angola. Daí ser fundamental a colaboração de Portugal. Por outro lado, durante muitos anos Portugal foi conivente com o regime de José Eduardo dos Santos e tudo fez pela manutenção desse mesmo regime.

Agora que começa a ocorrer uma mudança, é fundamental perguntar qual é a posição de Portugal, porque apesar de ser o mesmo partido no poder, todo o apoio dado a Angola era no sentido da manutenção do Estado de pilhagem. E agora que se começa a institucionalizar a luta contra a corrupção, qual é a posição de Portugal? Mas aqui também é fundamental,  contribuir para a mudança de mentalidade dos próprios cidadãos angolanos.

Nós só seremos soberanos e verdadeiramente independentes quando começarmos a tratar dos nossos problemas de forma mais solidária, mais inteligente e mais articulada. Antes que Portugal possa prestar qualquer contributo a Angola, temos nós de fazer o trabalho de casa para garantir que este apoio seja efetivo e contribua para a melhoria da condição económico-social do cidadão e desenvolvimento do país. 


DW África: Pode afirmar-se que há um comprometimento de ambos os países no combate da corrupção depois do caso Manuel Vicente?

RM: Não há um comprometimento efetivo. Primeiro, Angola tem de reformar o seu próprio sistema judicial. Por outro lado, vemos que Portugal, com o peso da corrupção em Angola, viu as suas instituições, sobretudo o seu próprio sistema judicial, conspurcado, enlameado, pela relação com Angola. É a famosa questão do "contentor de paracucas" e das relações promíscuas entre o então Procurador Geral da República de Angola, o advogado português e a Procuradoria-Geral portuguesa por conta de alguns representantes seus. E um deles, o procurador Orlando Figueira, acabou condenado em Portugal por corrupção envolvendo o então vice-presidente de Angola [Manuel Vicente]. 

DW África: Considera sério o plano de combate à corrupção lançado pelo Presidente João Lourenço? Como é que avalia a sua estratégia?

RM:  É um desafio que deve engajar todos os cidadãos. Em parte nenhuma do mundo se mudou a situação por causa da vontade de um homem. É a soma de todas as vontades que vai determinar se este combate é sério ou não. Por exemplo, Angola passou por um período longo de guerra. São as famílias mais pobres que, sobretudo, contribuíram para a manutenção da guerra com o sangue dos seus filhos, com a violência dos seus filhos. Não foram os dirigentes. Da mesma forma, João Lourenço lança um desafio à sociedade, temos de nos mobilizar todos e dizer "está bem, este é o caminho que o senhor aponta, é o caminho que nós devemos seguir porque é do interesse de toda a sociedade acabar-se com o saque ao país e vamos fazê-lo de forma solidária. Agora, se o senhor tentar recuar vai encontrar um muro, porque nós estamos a avançar. Não deve haver recuo". É aí onde está o grande erro dos cidadãos. Pensarem que deve ser o Presidente a fazer tudo.

A luta contra a corrupção, para ser séria, precisa de uma profunda reforma do sistema judicial. Não podemos ter os mesmos juízes que compactuaram com a corrupção durante muitos anos em Angola, protegeram a corrupção e os corruptos, serem agora os mesmos juízes contra a corrupção. Tem de haver alguma mudança e essa mudança é ao nível das pessoas. Então, é esse debate que nós devemos estimular ao nível dos vários setores da sociedade.

DW África: Ainda nesta linha de abordagem, há quem ache que Rafael Marques, comparadamente com o regime anterior [de José Eduardo dos Santos], baixou de tom nas críticas que faz a João Lourenço. Isso corresponde à verdade?

RM: Não corresponde, porque há aqui alguma má-fé. Quem mais denuncia em Angola – e estou a falar de atos atuais – continuo a ser eu. Há uma diferença institucional muito grande. José Eduardo dos Santos tinha institucionalizado a corrupção. João Lourenço procura institucionalizar a luta contra a corrupção. E vou dar um exemplo mais recente, o caso da Energy, uma empresa portuguesa que literalmente roubou 75 milhões de dólares em Angola, sem prestar qualquer serviço. Eu denunciei isso. Quem trouxe a público em primeira mão os esquemas da Energy, que tentou vender quatro geradores pelo mesmo valor que já tinham sido adquiridos pelo Governo, fui eu. E isso foi há dias. E é uma golpada que este mesmo português, Ricardo Machado, tentou promover já no Governo de João Lourenço. A diferença é que muitos indivíduos que estavam ligados a José Eduardo dos Santos e que se veem hoje ameaçados com a corrupção procuram também usar-me como arma contra João Lourenço. Eu sempre lutei contra a corrupção. Vem João Lourenço e diz "bom, é isso que se deve fazer".

DW África: É esta diferença de postura que merece elogio da sua parte?

RM: É essa a grande diferença. Ele está a fazer um esforço. Obviamente que é um Governo com muitos problemas, mas isso são outros "quinhentos". 

DW África: Mas a própria sociedade angolana elogia esse esforço? Tem a mesma perspetiva?

RM: A sociedade está mais informada pelo "diz que disse" das redes sociais. Eu costumo dizer que em Angola falar à toa é uma ciência. O angolano nunca se habituou a pensar de forma crítica, de forma analítica. E é isso que deve mudar. Fiz vários trabalhos sobre o Governo de Cuando Cubango e sou o único jornalista que iniciou um trabalho profundo sobre a governação dos municípios e a corrupção nos municípios que começarei a publicar em janeiro [de 2020]. 

DW África: Ainda há muito trabalho a fazer na denúncia de práticas de corrupção?

RM: Não há muito trabalho. Só há trabalho por fazer. Agora, o que é que as pessoas querem? Que Rafael Marques diga que João Lourenço é mau, que é isto, que é aquilo e aqueloutro. Há problemas de contratos e outros que têm sido denunciados. Quem denunciou também em primeira mão o negócio do famoso consórcio da aviação, que envolvia um irmão do Presidente? Quem fez uma investigação e publicou sobre o Bairro dos Ministérios? E mais uma vez qual foi a diferença? João Lourenço não me mandou prender. Pediu ao seu gabinete para ligar a agradecer a denúncia. 

DW África: Esta mudança de tom nada tem a ver com o prémio que recebeu do Presidente?

RM: Sou um cidadão. Da mesma forma que já tive armas apontadas à cabeça, se o Presidente diz que quer reconhecer o meu esforço de combate à corrupção, hei-de negar porquê? 

DW África: Voltando à cooperação com Portugal, há esta questão do repatriamento de capitais. Como é que avalia este processo? Portugal estará a colaborar para que Angola consiga repatriar os capitais que foram transferidos de forma ilícita?

RM: Tem de haver uma investigação mais séria por parte de Angola. Para isso, precisa de procuradores mais competentes, de um serviço de recuperação de ativos mais especializado. É o que falta em Angola de momento.

DW África: Portugal manifestou boa vontade nesse processo, mas parece não estar a acontecer nada. A [ministra] Francisca Van Dunem dará sinais nos próximos tempos de que se está a fazer alguma coisa em concreto nesse sentido?

RM: Por isso mesmo. Nós vemos como é que a Justiça funciona em Portugal, mesmo para os cidadãos portugueses. É preciso fazer [alguma coisa]. Vou dar-lhe um exemplo muito simples. Houve aqui uma denúncia sobre fundos trazidos a Portugal por Manuel Rebelais [político angolano] – de compras feitas do património por Manuel Rebelais em Portugal. Na altura, a Procuradoria-Geral da República portuguesa garantiu que eram atos perfeitamente lícitos. E hoje temos em Angola Manuel Rebelais acusado de ter sido um cambista de rua e de ter levantado/beneficiado de mais de 100 milhões de dólares do Banco Nacional de Angola que foi trocar na rua e, entre outros atos ilícitos, é arguido hoje em Angola. Temos hoje muitos deputados que foram constituídos arguidos e alguns até já foram formalmente acusados de vários crimes. Onde é que está a sociedade a exigir que esses indivíduos deixem de ser representantes do povo? Então, estão à espera também que seja o João Lourenço a pegar numa vassoura e ir ao Parlamento varrer?

DW África: É preciso uma sociedade civil mais atenta e mais exigente?

RM: Amanhã dizem "olha, o homem é ditador". As pessoas ficam sentadas à espera que o Presidente faça tudo. O que nós devemos aproveitar é o espaço de liberdade que se está a criar para que a sociedade se reorganize e assuma o seu papel de fiscal do Estado. Somos nós os cidadãos quem mandatamos os governantes. Por isso é que são servidores públicos, devem ser servidores públicos. Se nós não exigirmos serviços, quem o fará?

João Carlos (Lisboa) | Deutsche Welle

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