quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Venezuela 2019, oposição apostou em golpe e terminou desgastada

Fevereiro: venezuelanos impediram entrada de suposta 'ajuda humanitária' (Fania Rodrigues/Opera Mundi)
Um ano para honrar a fama de um país onde a polarização política alcançou sua máxima expressão. Assim foi 2019 para a Venezuela. Não foi o ano mais violento, mas sem dúvida foi o que teve o maior número de acontecimentos políticos inesperados e fenômenos sem precedentes. 

O ponto de partida para esses acontecimentos foi a eleição do deputado Juan Guaidó para a presidência da Assembleia Nacional, no dia 5 de janeiro. A escolha de Guaidó, do partido Voluntad Popular, foi fruto de um acordo político entre partidos opositores, segundo explica o deputado Edgar Zambrano, vice-presidente da Assembleia Nacional. “Os partidos maiores, Ação Democrática e Primeiro Justicia, já tinham ocupado essa cadeira e era a vez do Voluntad Popular. Guaidó foi o nome indicado pelo partido”, diz Zambrano, do Ação Democrática.

Na semana seguinte, no dia 10 de janeiro, Nicolás Maduro assumiu o novo mandato presidencial, para o qual foi eleito em maio de 2018. A oposição, que não reconhecia o resultado dessa última eleição, convocou uma manifestação para 23 de janeiro. Nesse dia o novo presidente do Congresso levantou o braço em uma praça pública, fez um juramento diante de seus apoiadores e autoproclamou-se presidente interino do país. Depois disso, o que se viu foi uma escalada de violência e enfrentamentos que duraram vários meses. 

Para o sociólogo e escritor argentino Marco Teruggi, radicado na Venezuela há cinco anos, os planos violentos da direita venezuelana foram traçados ainda em 2018. “A partir do momento em que a oposição decidiu não participar das eleições presidenciais de maio de 2018, ficou claro que buscaria outro caminho, pois de alguma maneira renunciaram à saída eleitoral. Evidencia-se então que recorreria a uma ação com o uso da força e chega ao modelo de um governo paralelo, muito novo na América Latina”.

Teruggi explica ainda quais as condições que possibilitaram a Juan Guaidó assumir a liderança da oposição ao governo de Nicolás Maduro. Nesse momento, Guaidó era um deputado com apenas 97 mil votos e que não fazia parte do elenco principal da cena política venezuelana. “Guaidó apareceu em um momento em que havia uma degradação muito grande da oposição. Não existia uma liderança forte. Figuras como Henrique Capriles, Freddy Guevara, que tinham liderado processos em 2017, estavam desgastadas. Então havia espaço para o surgimento de uma nova liderança”. 

Segundo o sociólogo, o maior apoio de Guaidó vinha de fora da Venezuela. “Guaidó não se apoiou sobre si mesmo, mas sim sobre a força que os Estados Unidos depositavam sobre ele”, afirma Teruggi. É dessa forma que o deputado, autoproclamado presidente interino, é reconhecido imediatamente por mais de 50 países, todos aliados dos Estados Unidos. 

Os dias que seguiram foram de manifestações contra o governo Maduro, convocadas pelo novo líder opositor.  Além disso, ações de enfrentamentos entre opositores e chavistas resultaram na morte de mais de 30 pessoas.

Nessa época, os opositores de Maduro não descartavam nem mesmo a possibilidade de uma intervenção militar estrangeira. “Todas as opções estão sobre a mesa”, diziam o presidente norte-americano Donald Trump e lideranças opositoras venezuelanas. Esse ambiente inflamado levou o governo venezuelano a decretar máximo alerta de segurança nacional.

No início de fevereiro, Guaidó anunciou que ingressaria ajuda humanitária na Venezuela no dia 23 de fevereiro. Em resposta, o presidente Nicolás Maduro anunciou exercícios militares para a proteção da zona fronteiriça.


Fevereiro: Batalha na fronteira 

Nesse momento, todas as atenções se voltaram para a fronteira da Colômbia com a Venezuela. A cidade colombiana de Cúcuta, que faz limite com a venezuelana San António de Táchira, passou a ser o epicentro do embate político. Aviões militares dos Estados Unidos pousaram na fronteira colombiana trazendo caixas de alimentos e produtos de higiene para ajuda humanitária, em uma operação sem precedentes, pois militares não costumam participar desse tipo de ação humanitária. 

Do lado venezuelano, o dirigente do Partido Socialista Unido da Venezuela, Freddy Bernal, homem forte do chavismo e representante do governo nacional no estado fronteiriço de Táchira, recebeu a tarefa de blindar a fronteira. “Essa ajuda humanitária era uma espécie de ‘Cavalo de Tróia’, com a qual pretendiam criar uma desestabilização na Venezuela”, disse. O temor do governo Maduro, segundo Bernal, era uma invasão militar estrangeira para declarar Táchira um “território liberado”, a exemplo que do que ocorreu em Trípoli, na Líbia, em 2011.

No dia 22 fevereiro, um megashow musical foi montado em Cúcuta, com artistas famosos de toda a América Latina. Tudo patrocinado pelo multimilionário britânico Richard Branson, que tem negócios em Esequibo, território em disputa entre a Venezuela e a Guiana desde o século 19. Cerca de 50 mil pessoas compareceram ao show. Do lado venezuelano, um palco mais humilde e com músicos nacionais reuniu cerca de 10 mil pessoas. Um resultado que favorecia os opositores de Maduro.

Mas o grande enfrentamento seria no dia seguinte, no que ficou conhecida como a “batalha das três pontes”. Do lado venezuelano das pontes internacionais Simón Bolívar, Santander e Tienditas, havia cerca de dois mil venezuelanos chavistas. Já do lado colombiano das pontes estavam três mil venezuelanos opositores e colombianos que os apoiavam, segundo estimativas das Forças de Segurança da Venezuela. Foi uma batalha campal, a ponta de pedra e coquetel molotov.

“Foram 15h de combate e nenhum morto”, descreveu Freddy Bernal, ao se referir aos enfrentamos produzidos entre apoiadores de Maduro e simpatizantes de Guaidó. Detalhe: do lado venezuelano, foi cortado o fornecimento de água potável e comida, pois os opositores incendiaram carros nas vias que davam acesso aos pontos de abastecimento. 

O prefeito de San António de Táchira, William Gomez, se juntou à população, e passou o dia na ponte Símon Bolívar combatendo corpo a corpo. “Como mostram as imagens, somos um povo desarmado e com muita consciência”, ressaltou Gomez.

Dois caminhões que levavam ajuda humanitária foram queimados na ponte Santander. Partidários de Guaidó, assim como o governo da Colômbia e a grande imprensa internacional, acusaram os militares venezuelanos de provocar o incêndio. No entanto, meios de comunicação como a Telesur já mostravam imagens mostravam manifestantes pró Guaidó lançando coquetel Molotov sobre os caminhões. Até que, em março, o jornal estadunidense The New York Times publicou uma reportagem especial mostrando uma sequência de imagens que evidenciava a suspeita: quem tinha queimado os caminhões haviam sido os simpatizantes de Guaidó, que culpavam o governo venezuelano. A cadeia de televisão Telesur mostrou ainda que, entre as cinzas dos alimentos, havia também materiais que, em geral, são utilizados em motins e atos violentos.

30 de abril: a tentativa frustrada de golpe 

O dia não havia amanhecido completamente quando Guaidó transmitiu uma mensagem ao vivo, via redes sociais, onde fazia um chamado aos militares venezuelanos a levantarem-se contra o governo de Nicolás Maduro. Ele estava do lado de fora da base aérea militar de La Cartola, localizada em Altamira, uma região de classe média de Caracas. O elemento surpresa era Lepoldo López, que até então estava em prisão domiciliar. “Ver Lepoldo López ao lado de Guaidó foi o que me fez pensar que algo grande iria acontecer esse dia. Já aí meu coração começou a palpitar”, afirmou a jornalista espanhola Esther Yañéz, correspondente na Venezuela.

Os líderes opositores estavam acompanhados de cerca de 40 militares fardados. O mestre em Filosofia de Guerra pela Universidade Militar Nacional Bolivariana Jorge Ladeira afirma que os opositores não conseguiram mobilizar militares de alta patente. “Guaidó e Lopez estavam acompanhados de um coronel, um tenente e alguns sargentos. Não havia nenhum militar de peso, que pudesse ter acesso a unidades militares como destacamentos, pelotões, batalhões, que pudesse resultar em um golpe de Estado”. Portanto, a deserção militar não havia sido massiva, conforme Guaidó havia dito em um primeiro momento. E a base aérea de La Carlota permanecia sob controle de oficiais leais ao presidente. 

Com o passar das horas, os dirigentes opositores que haviam começado o dia com palavras de ordem e gestos imponentes foram mudando o ânimo: os rostos foram ganhando ar de preocupação, nervosismo e irritação. Algo havia falhado. Os gestos de Leopoldo López indicavam que não havia chegado o que eles tanto esperavam.

Soube-se depois que quem “falhou” havia sido o general Manuel Ricardo Cristopher Figuera, ex-diretor do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin), que fugiu do país horas antes do início da tentativa de golpe. A informação foi confirmada pelo próprio Figuera em entrevistas a meios de comunicação internacionais nos Estados Unidos, onde se encontra até hoje.

A informação extraoficial é de que Figuera, que nesse momento era o diretor do Sebin, havia convencido a oposição venezuelana de que ele tinha o compromisso de alguns comandos militares de que trairiam o presidente Maduro e passariam para o lado opositor. Isso não aconteceu. 

De acordo com Ladeira, a luta de classes que permeia a política venezuelana também está presente nos corpos militares. “Na Venezuela, existe uma geração de oficiais que são de extratos sociais baixos e que passaram por um processo de formação do pensamento bolivariano, o projeto de integração latino-americano, da autodeterminação dos povos, da soberania e do novo conceito de defesa e desenvolvimento da nação. Portanto, não possui identificação com o setor opositor que tem a elite venezuelana como base principal”, diz o sociólogo.

Mas essa não foi a única tentativa de golpe do ano. No mês junho, um novo plano foi descoberto palas agências de inteligências venezuelanas, antes de ser executado. O ministro da Comunicação da Venezuela, Jorge Rodríguez, revelou no dia 27 de junho que um grupo de mais 40 ex-militares, ex-funcionários do governo e opositores venezuelanos tentariam derrubar Maduro em outra ação violenta.

O plano principal consistia em liberar o ex-general Raúl Isaías Baduel – preso desde 2009 por corrupção, quando atuava na Direção Nacional de Contrainteligência Militar (DGCIM) – que seria levado para a base aérea de La Carlota, a ser tomada pelos opositores armados. Portanto, a ideia era que Baduel comandasse as operações a partir de lá.

Guaidó, paramilitarismo e corrupção

Depois do golpe fracassado de 30 de abril, Guaidó não conseguiu mais reunir grandes multidões, como fazia nos protestos de janeiro. Sua popularidade começou a se desidratar.

Ademais, perdeu apoio de políticos próximos, já que muitos desses dirigentes estiveram envolvidos em ações criminosas ao longo dos últimos meses. Alguns deles fugiram do país ou se refugiaram em embaixadas em Caracas, como é o caso do deputado Freddy Guevara, que está na embaixada do Chile, e de Leopoldo López, na embaixada da Espanha. O braço direito de Juan Guaidó, o advogado e político Roberto Marrero, foi preso em março, acusado de contratar mercenários na Colômbia e na América Central para assassinar líderes sociais chavistas.

Na Colômbia, estão três deputados opositores, investigados por crimes cometidos na Venezuela. Entre eles, Júlio Borges, acusado de participar da tentativa de assassinato de Maduro em agosto de 2018, em uma operação com drones e explosivos. Também estão os deputados José Manuel Olivares e Gabriela Arellano, investigados por corrupção e desvio de recursos destinados à ajuda humanitária, assim como em ações violentas, praticadas em fevereiro desse ano, na fronteira da Venezuela com a Colômbia. Essa conjuntura contribui para o isolamento político de Guaidó.


Porém, nada afetou mais a imagem do deputado que a revelação de fotos tiradas com pelo menos três paramilitares colombianos da organização criminosa Los Rastrojos. Entre eles, está Argenis Vaca, conhecido como "Vaquita", acusado de homicídio, sequestro, extorsão, narcotráfico e formação de quadrilha; o outro membro paramilitar que aparece em foto com Guaidó é Jhonathan Orlando Zambrano Garcia, conhecido como "Patron Pobre", chefe de uma divisão que se encarrega de sequestros e contrabandos; e o terceiro paramilitar é John Jairo Durán, conhecido como "El Menor", preso pela polícia venezuelana.

As fotos foram publicadas pela imprensa venezuelana no mês de setembro e teriam sido tiradas em fevereiro. Segundo a denúncia, Guaidó recebeu ajuda dos criminosos para cruzar a fronteira, por caminhos ilegais, em território controlado por paramilitares, para assim poder participar do show musical no dia 22 de fevereiro e dos eventos do dia 23, quando ele e seus partidários tentaram passar caminhões com ajuda humanitária sem autorização do governo.

Além disso, dois escândalos de corrupção atingiram em cheio a reputação de Guaidó e seus aliados. O primeiro deles foi revelado em junho desse ano e envolve diretamente a equipe que representava o deputado na Colômbia. Entre eles, estão dois assessores encarregados de administrar os recursos destinados à ajuda humanitária e o pagamento de hotéis de ex-militares desertores da Força Armada Nacional Bolivariana. Trata-se de Kevin Rojas e Rossana Barrera, sendo esta última cunhada do deputado venezuelano Sergio Vergara, braço direito do autoproclamado presidente. A suspeita recai também sobre o “ex-embaixador” de Guaidó da Colômbia, Calderón Berti, e sobre os deputados venezuelanos radicados na Colômbia, Gabriela Arellano, do partido de Guaidó, Voluntad Popular, e Juan Manuel Olivares, do partido Primero Justicia. O escândalo foi revelado pelo site de Miami Panam Post, que apresentou documentos e comprovantes de pagamento que mostram o mal uso dos recursos destinados à ajuda humanitária. Uma investigação foi aberta pelo Ministério Público da Colômbia, mas não se chegou a nenhuma conclusão até o momento.

E os escândalos não pararam por aí. Na Venezuela, uma investigação foi aberta depois que 12 deputados de direita foram acusados de participar de um esquema de corrupção, no início de dezembro. Os parlamentares pertencem aos partidos de direita Voluntad Popular, de Guaidó, Primeiro Justicia e Un Nuevo Tiempo, e integravam a Comissão da Controladoria da Assembleia Nacional (Congresso). Foi aberta uma comissão de investigação dentro do próprio Parlamento, que está sendo coordenada por deputados indicados pelo presidente do Congresso, Juan Guaidó. 

De acordo com o deputado Edgar Zambrano, que preside a comissão de investigação, a suspeita é de que esses deputados tenham cobrado propina de empresários venezuelanos e colombianos para mediar negociações junto aos governos da Colômbia e dos Estados Unidos. O objetivo seria a suspensão de sanções econômicas aplicadas por esses países contra empresários que mantém negócios com o governo venezuelano no ramo de importação de alimentos enviados à Venezuela. 

No entanto, alguns dos parlamentares acusados de corrupção por Juan Guaidó afirmam que estão sendo vítimas de perseguição. É o caso do deputado José Brito, do partido Primero Justicia, que diz que "o verdadeiro corrupto é Juan Guaidó". Brito defende que a acusação foi orquestrada pelo próprio Guaidó depois de um grupo de 70 deputados opositores entregar uma carta ao presidente do Congresso pedindo explicações sobre o destino dos recursos doados para ajuda humanitária.

"Acusam-me de liderar uma rebelião de deputados contra Guaidó, mas o que existe aqui é muito descontentamento. O próprio embaixador da Colômbia nos EUA e a nova chanceler colombiana reconheceram, em uma conversa vazada recentemente, que em Cúcuta (durante ação opositora liderada por Guaidó, para ingressar ajuda humanitária) houve desvio de dinheiro", declarou o deputado, em entrevista coletiva no início de dezembro.

Portanto, a oposição venezuelana chega ao final de 2019 dividida e desgastada publicamente. O chavismo, por sua vez, tenta recuperar espaços políticos perdidos ao longo dos últimos anos, devido ao desgaste de um partido que governa o país há 20 anos. A superação da corrupção, da ineficiência do governo, da crise econômica e do bloqueio econômico internacional, assim como migração massiva, são alguns dos desafios para recuperar a confiança de um setor da sociedade que deixou de apoiar o governo Maduro, mas que não se identifica com a oposição venezuelana, liderada pelos partidos de direita. 

Enquanto isso, chavismo e oposição preparam-se para o próximo embate político, que será logo nos primeiros dias do ano: a eleição da mesa diretora da Assembleia Nacional, no dia 5 de janeiro. Guaidó tentará a reeleição para a presidência do Congresso, mas os deputados do Partido Socialista Unido da Venezuela, de Maduro, trabalham para negociar com um campo mais moderado da oposição e assim tentar ganhar o controle desse órgão do Estado, o único controlado pela direita venezuelana. Por enquanto.

Fania Rodrigues, Caracas (Venezuela) – em Opera Mundi

Sem comentários:

Mais lidas da semana