Fevereiro: venezuelanos
impediram entrada de suposta 'ajuda humanitária' (Fania Rodrigues/Opera Mundi)
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Um ano para honrar a fama de um
país onde a polarização política alcançou sua máxima expressão. Assim foi 2019
para a Venezuela. Não foi o ano mais violento, mas sem dúvida foi o que teve o
maior número de acontecimentos políticos inesperados e fenômenos sem
precedentes.
O ponto de partida para esses
acontecimentos foi a eleição do deputado Juan Guaidó para a presidência da
Assembleia Nacional, no dia 5 de janeiro. A escolha de Guaidó, do partido
Voluntad Popular, foi fruto de um acordo político entre partidos opositores, segundo
explica o deputado Edgar Zambrano, vice-presidente da Assembleia Nacional. “Os
partidos maiores, Ação Democrática e Primeiro Justicia, já tinham ocupado essa
cadeira e era a vez do Voluntad Popular. Guaidó foi o nome indicado pelo
partido”, diz Zambrano, do Ação Democrática.
Na semana seguinte, no dia 10 de
janeiro, Nicolás Maduro assumiu o novo mandato presidencial, para o qual foi
eleito em maio de 2018. A oposição, que não reconhecia o resultado dessa última
eleição, convocou uma manifestação para 23 de janeiro. Nesse dia o novo
presidente do Congresso levantou o braço em uma praça pública, fez um juramento
diante de seus apoiadores e autoproclamou-se presidente interino do país.
Depois disso, o que se viu foi uma escalada de violência e enfrentamentos que
duraram vários meses.
Para o sociólogo e escritor
argentino Marco Teruggi, radicado na Venezuela há cinco anos, os planos
violentos da direita venezuelana foram traçados ainda em 2018. “A partir do
momento em que a oposição decidiu não participar das eleições presidenciais de
maio de 2018, ficou claro que buscaria outro caminho, pois de alguma maneira
renunciaram à saída eleitoral. Evidencia-se então que recorreria a uma ação com
o uso da força e chega ao modelo de um governo paralelo, muito novo na América
Latina”.
Teruggi explica ainda quais as
condições que possibilitaram a Juan Guaidó assumir a liderança da oposição ao
governo de Nicolás Maduro. Nesse momento, Guaidó era um deputado com apenas 97
mil votos e que não fazia parte do elenco principal da cena política
venezuelana. “Guaidó apareceu em um momento em que havia uma degradação muito
grande da oposição. Não existia uma liderança forte. Figuras como Henrique
Capriles, Freddy Guevara, que tinham liderado processos em 2017, estavam desgastadas.
Então havia espaço para o surgimento de uma nova liderança”.
Segundo o sociólogo, o maior
apoio de Guaidó vinha de fora da Venezuela. “Guaidó não se apoiou sobre si
mesmo, mas sim sobre a força que os Estados Unidos depositavam sobre ele”,
afirma Teruggi. É dessa forma que o deputado, autoproclamado presidente
interino, é reconhecido imediatamente por mais de 50 países, todos aliados dos
Estados Unidos.
Os dias que seguiram foram de
manifestações contra o governo Maduro, convocadas pelo novo líder opositor.
Além disso, ações de enfrentamentos entre opositores e chavistas
resultaram na morte de mais de 30 pessoas.
Nessa época, os opositores de
Maduro não descartavam nem mesmo a possibilidade de uma intervenção militar
estrangeira. “Todas as opções estão sobre a mesa”, diziam o presidente
norte-americano Donald Trump e lideranças opositoras venezuelanas. Esse
ambiente inflamado levou o governo venezuelano a decretar máximo alerta de
segurança nacional.
No início de fevereiro, Guaidó
anunciou que ingressaria ajuda humanitária na Venezuela no dia 23 de fevereiro.
Em resposta, o presidente Nicolás Maduro anunciou exercícios militares para a
proteção da zona fronteiriça.
Fevereiro: Batalha na fronteira
Nesse momento, todas as atenções
se voltaram para a fronteira da Colômbia com a Venezuela. A cidade colombiana
de Cúcuta, que faz limite com a venezuelana San António de Táchira, passou a
ser o epicentro do embate político. Aviões militares dos Estados Unidos
pousaram na fronteira colombiana trazendo caixas de alimentos e produtos de
higiene para ajuda humanitária, em uma operação sem precedentes, pois militares
não costumam participar desse tipo de ação humanitária.
Do lado venezuelano, o dirigente
do Partido Socialista Unido da Venezuela, Freddy Bernal, homem forte do
chavismo e representante do governo nacional no estado fronteiriço de Táchira,
recebeu a tarefa de blindar a fronteira. “Essa ajuda humanitária era uma
espécie de ‘Cavalo de Tróia’, com a qual pretendiam criar uma desestabilização
na Venezuela”, disse. O temor do governo Maduro, segundo Bernal, era uma
invasão militar estrangeira para declarar Táchira um “território liberado”, a
exemplo que do que ocorreu em Trípoli, na Líbia, em 2011.
No dia 22 fevereiro, um megashow
musical foi montado em Cúcuta, com artistas famosos de toda a América Latina.
Tudo patrocinado pelo multimilionário britânico Richard Branson, que tem negócios
em Esequibo, território em disputa entre a Venezuela e a Guiana desde o século
19. Cerca de 50 mil pessoas compareceram ao show. Do lado venezuelano, um palco
mais humilde e com músicos nacionais reuniu cerca de 10 mil pessoas. Um
resultado que favorecia os opositores de Maduro.
Mas o grande enfrentamento seria
no dia seguinte, no que ficou conhecida como a “batalha das três pontes”. Do
lado venezuelano das pontes internacionais Simón Bolívar, Santander e
Tienditas, havia cerca de dois mil venezuelanos chavistas. Já do lado
colombiano das pontes estavam três mil venezuelanos opositores e colombianos
que os apoiavam, segundo estimativas das Forças de Segurança da Venezuela. Foi
uma batalha campal, a ponta de pedra e coquetel molotov.
“Foram 15h de combate e nenhum
morto”, descreveu Freddy Bernal, ao se referir aos enfrentamos produzidos entre
apoiadores de Maduro e simpatizantes de Guaidó. Detalhe: do lado venezuelano,
foi cortado o fornecimento de água potável e comida, pois os opositores
incendiaram carros nas vias que davam acesso aos pontos de abastecimento.
O prefeito de San António de
Táchira, William Gomez, se juntou à população, e passou o dia na ponte Símon
Bolívar combatendo corpo a corpo. “Como mostram as imagens, somos um povo
desarmado e com muita consciência”, ressaltou Gomez.
Dois caminhões que levavam ajuda
humanitária foram queimados na ponte Santander. Partidários de Guaidó, assim
como o governo da Colômbia e a grande imprensa internacional, acusaram os
militares venezuelanos de provocar o incêndio. No entanto, meios de comunicação
como a Telesur já mostravam imagens mostravam manifestantes pró
Guaidó lançando coquetel Molotov sobre os caminhões. Até que, em março, o
jornal estadunidense The New York Times publicou uma reportagem
especial mostrando uma sequência de imagens que evidenciava a suspeita: quem
tinha queimado os caminhões haviam sido os simpatizantes de Guaidó, que
culpavam o governo venezuelano. A cadeia de televisão Telesur mostrou
ainda que, entre as cinzas dos alimentos, havia também materiais que, em geral,
são utilizados em motins e atos violentos.
30 de abril: a tentativa
frustrada de golpe
O dia não havia amanhecido
completamente quando Guaidó transmitiu uma mensagem ao vivo, via redes sociais,
onde fazia um chamado aos militares venezuelanos a levantarem-se contra o
governo de Nicolás Maduro. Ele estava do lado de fora da base aérea militar de
La Cartola, localizada em Altamira, uma região de classe média de Caracas. O
elemento surpresa era Lepoldo López, que até então estava em prisão domiciliar.
“Ver Lepoldo López ao lado de Guaidó foi o que me fez pensar que algo grande
iria acontecer esse dia. Já aí meu coração começou a palpitar”, afirmou a
jornalista espanhola Esther Yañéz, correspondente na Venezuela.
Os líderes opositores estavam
acompanhados de cerca de 40 militares fardados. O mestre em Filosofia de Guerra
pela Universidade Militar Nacional Bolivariana Jorge Ladeira afirma que os
opositores não conseguiram mobilizar militares de alta patente. “Guaidó e Lopez
estavam acompanhados de um coronel, um tenente e alguns sargentos. Não havia
nenhum militar de peso, que pudesse ter acesso a unidades militares como
destacamentos, pelotões, batalhões, que pudesse resultar em um golpe de
Estado”. Portanto, a deserção militar não havia sido massiva, conforme Guaidó
havia dito em um primeiro momento. E a base aérea de La Carlota permanecia sob
controle de oficiais leais ao presidente.
Com o passar das horas, os
dirigentes opositores que haviam começado o dia com palavras de ordem e gestos
imponentes foram mudando o ânimo: os rostos foram ganhando ar de preocupação,
nervosismo e irritação. Algo havia falhado. Os gestos de Leopoldo López
indicavam que não havia chegado o que eles tanto esperavam.
Soube-se depois que quem “falhou”
havia sido o general Manuel Ricardo Cristopher Figuera, ex-diretor do Serviço
Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin), que fugiu do país horas antes do
início da tentativa de golpe. A informação foi confirmada pelo próprio Figuera
em entrevistas a meios de comunicação internacionais nos Estados Unidos, onde
se encontra até hoje.
A informação extraoficial é de
que Figuera, que nesse momento era o diretor do Sebin, havia convencido a
oposição venezuelana de que ele tinha o compromisso de alguns comandos
militares de que trairiam o presidente Maduro e passariam para o lado opositor.
Isso não aconteceu.
De acordo com Ladeira, a luta de
classes que permeia a política venezuelana também está presente nos corpos
militares. “Na Venezuela, existe uma geração de oficiais que são de extratos
sociais baixos e que passaram por um processo de formação do pensamento
bolivariano, o projeto de integração latino-americano, da autodeterminação dos
povos, da soberania e do novo conceito de defesa e desenvolvimento da nação.
Portanto, não possui identificação com o setor opositor que tem a elite
venezuelana como base principal”, diz o sociólogo.
Mas essa não foi a única
tentativa de golpe do ano. No mês junho, um novo plano foi descoberto palas
agências de inteligências venezuelanas, antes de ser executado. O ministro da
Comunicação da Venezuela, Jorge Rodríguez, revelou no dia 27 de junho que um
grupo de mais 40 ex-militares, ex-funcionários do governo e opositores
venezuelanos tentariam derrubar Maduro em outra ação violenta.
O plano principal consistia em
liberar o ex-general Raúl Isaías Baduel – preso desde 2009 por corrupção,
quando atuava na Direção Nacional de Contrainteligência Militar (DGCIM) – que
seria levado para a base aérea de La Carlota, a ser tomada pelos opositores
armados. Portanto, a ideia era que Baduel comandasse as operações a partir de
lá.
Guaidó, paramilitarismo e
corrupção
Depois do golpe fracassado de 30
de abril, Guaidó não conseguiu mais reunir grandes multidões, como fazia nos
protestos de janeiro. Sua popularidade começou a se desidratar.
Ademais, perdeu apoio de
políticos próximos, já que muitos desses dirigentes estiveram envolvidos em
ações criminosas ao longo dos últimos meses. Alguns deles fugiram do país ou se
refugiaram em embaixadas em Caracas, como é o caso do deputado Freddy Guevara,
que está na embaixada do Chile, e de Leopoldo López, na embaixada da Espanha. O
braço direito de Juan Guaidó, o advogado e político Roberto Marrero, foi preso
em março, acusado de contratar mercenários na Colômbia e na América Central
para assassinar líderes sociais chavistas.
Na Colômbia, estão três deputados
opositores, investigados por crimes cometidos na Venezuela. Entre eles, Júlio
Borges, acusado de participar da tentativa de assassinato de Maduro em agosto
de 2018, em uma operação com drones e explosivos. Também estão os deputados
José Manuel Olivares e Gabriela Arellano, investigados por corrupção e desvio
de recursos destinados à ajuda humanitária, assim como em ações violentas,
praticadas em fevereiro desse ano, na fronteira da Venezuela com a Colômbia.
Essa conjuntura contribui para o isolamento político de Guaidó.
Porém, nada afetou mais a imagem
do deputado que a revelação de fotos tiradas com pelo menos três paramilitares
colombianos da organização criminosa Los Rastrojos. Entre eles, está Argenis
Vaca, conhecido como "Vaquita", acusado de homicídio, sequestro,
extorsão, narcotráfico e formação de quadrilha; o outro membro paramilitar que
aparece em foto com Guaidó é Jhonathan Orlando Zambrano Garcia, conhecido como
"Patron Pobre", chefe de uma divisão que se encarrega de sequestros e
contrabandos; e o terceiro paramilitar é John Jairo Durán, conhecido como
"El Menor", preso pela polícia venezuelana.
As fotos foram publicadas pela
imprensa venezuelana no mês de setembro e teriam sido tiradas em fevereiro.
Segundo a denúncia, Guaidó recebeu ajuda dos criminosos para cruzar a
fronteira, por caminhos ilegais, em território controlado por paramilitares,
para assim poder participar do show musical no dia 22 de fevereiro e dos
eventos do dia 23, quando ele e seus partidários tentaram passar caminhões com
ajuda humanitária sem autorização do governo.
Além disso, dois escândalos de
corrupção atingiram em cheio a reputação de Guaidó e seus aliados. O primeiro
deles foi revelado em junho desse ano e envolve diretamente a equipe que representava
o deputado na Colômbia. Entre eles, estão dois assessores encarregados de
administrar os recursos destinados à ajuda humanitária e o pagamento de hotéis
de ex-militares desertores da Força Armada Nacional Bolivariana. Trata-se de
Kevin Rojas e Rossana Barrera, sendo esta última cunhada do deputado
venezuelano Sergio Vergara, braço direito do autoproclamado presidente. A
suspeita recai também sobre o “ex-embaixador” de Guaidó da Colômbia, Calderón
Berti, e sobre os deputados venezuelanos radicados na Colômbia, Gabriela
Arellano, do partido de Guaidó, Voluntad Popular, e Juan Manuel
Olivares, do partido Primero Justicia. O escândalo foi revelado pelo site
de Miami Panam Post, que apresentou documentos e comprovantes de pagamento
que mostram o mal uso dos recursos destinados à ajuda humanitária. Uma
investigação foi aberta pelo Ministério Público da Colômbia, mas não se chegou
a nenhuma conclusão até o momento.
E os escândalos não pararam por
aí. Na Venezuela, uma investigação foi aberta depois que 12 deputados de
direita foram acusados de participar de um esquema de corrupção, no início de
dezembro. Os parlamentares pertencem aos partidos de direita Voluntad Popular,
de Guaidó, Primeiro Justicia e Un Nuevo Tiempo, e integravam a Comissão da
Controladoria da Assembleia Nacional (Congresso). Foi aberta uma comissão de
investigação dentro do próprio Parlamento, que está sendo coordenada por
deputados indicados pelo presidente do Congresso, Juan Guaidó.
De acordo com o deputado Edgar
Zambrano, que preside a comissão de investigação, a suspeita é de que esses
deputados tenham cobrado propina de empresários venezuelanos e colombianos para
mediar negociações junto aos governos da Colômbia e dos Estados Unidos. O
objetivo seria a suspensão de sanções econômicas aplicadas por esses países
contra empresários que mantém negócios com o governo venezuelano no ramo de
importação de alimentos enviados à Venezuela.
No entanto, alguns dos
parlamentares acusados de corrupção por Juan Guaidó afirmam que estão sendo
vítimas de perseguição. É o caso do deputado José Brito, do partido Primero
Justicia, que diz que "o verdadeiro corrupto é Juan Guaidó". Brito
defende que a acusação foi orquestrada pelo próprio Guaidó depois de um grupo
de 70 deputados opositores entregar uma carta ao presidente do Congresso
pedindo explicações sobre o destino dos recursos doados para ajuda humanitária.
"Acusam-me de liderar uma
rebelião de deputados contra Guaidó, mas o que existe aqui é muito
descontentamento. O próprio embaixador da Colômbia nos EUA e a nova chanceler
colombiana reconheceram, em uma conversa vazada recentemente, que em Cúcuta
(durante ação opositora liderada por Guaidó, para ingressar ajuda humanitária)
houve desvio de dinheiro", declarou o deputado, em entrevista coletiva no
início de dezembro.
Portanto, a oposição venezuelana
chega ao final de 2019 dividida e desgastada publicamente. O chavismo, por sua
vez, tenta recuperar espaços políticos perdidos ao longo dos últimos anos,
devido ao desgaste de um partido que governa o país há 20 anos. A superação da
corrupção, da ineficiência do governo, da crise econômica e do bloqueio
econômico internacional, assim como migração massiva, são alguns dos desafios
para recuperar a confiança de um setor da sociedade que deixou de apoiar o
governo Maduro, mas que não se identifica com a oposição venezuelana, liderada
pelos partidos de direita.
Enquanto isso, chavismo e
oposição preparam-se para o próximo embate político, que será logo nos primeiros
dias do ano: a eleição da mesa diretora da Assembleia Nacional, no dia 5 de
janeiro. Guaidó tentará a reeleição para a presidência do Congresso, mas os
deputados do Partido Socialista Unido da Venezuela, de Maduro, trabalham para
negociar com um campo mais moderado da oposição e assim tentar ganhar o
controle desse órgão do Estado, o único controlado pela direita venezuelana.
Por enquanto.
Fania Rodrigues, Caracas (Venezuela) –
em Opera Mundi
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