Uma análise estratégica da
conjuntura. Como a esquerda deixou de enfrentar o capital no terreno dos
projetos de mundo, da cultura e da formação política e se limitou à disputa
institucional. Por que isso leva à derrota certa
Maurício Abdalla | Outras
Palavras
“Saul vestiu Davi com sua própria
armadura, colocou-lhe na cabeça um capacete de bronze, revestiu-o com a sua
couraça, e pôs a espada na cintura dele, sobre a armadura. Em vão Davi tentou
andar, pois nunca tinha usado nada disso. Então falou a Saul: «Não consigo nem
andar com essas coisas. Não estou acostumado». Tirou tudo, pegou o cajado,
escolheu cinco pedras bem lisas no riacho e as colocou no seu bornal. Depois
pegou a funda e foi ao encontro do filisteu.[…] Enquanto o filisteu se aprumava
e se aproximava de Davi pouco a pouco, Davi correu depressa para se posicionar
e enfrentar o filisteu. Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra, atirou-a
com a funda e acertou na testa do filisteu. A pedra afundou na testa do
filisteu, que caiu de bruços no chão. Assim Davi foi mais forte que o filisteu,
apenas com uma funda e uma pedra: sem espada na mão, feriu e matou o filisteu”
(1Sm 17, 38-40.48-50).
Uma lição de estratégia
Todos conhecem a história do
jovem pastor de ovelhas israelita que derrotou um guerreiro gigante, experiente
e fortemente armado usando apenas uma funda. A luta de Davi contra Golias é
sempre evocada como metáfora para a possibilidade de alguém ou um grupo mais
fraco vencer adversários grandes e poderosos. Contudo, na maioria das vezes,
ela só é usada como narrativa motivacional ou, no contexto religioso, apenas
para dizer que Deus ajuda e dá a vitória aos que creem. Mas há, também, uma
lição estratégica fundamental embutida na história que pode ser bastante útil
para ajudar a pensar nossa ação na atual conjuntura mundial.
Sob um olhar não teológico, o
grande ensinamento da vitória do jovem pastor sobre o guerreiro gigante está na
maneira como ele conseguiu derrotá-lo. Quando Davi decidiu enfrentar
Golias, o rei Saul o equipou com armadura e armas de guerra tradicionais, equivalentes
às que usavam o filisteu e todos os soldados nas batalhas. Porém, sob o peso
daquele equipamento, Davi, que era pastor e não soldado, não conseguiu sequer
andar. Sabiamente, o jovem preferiu abdicar das armas e armaduras tradicionais
para usar o instrumento de ataque que ele manejava com mais destreza: a funda e
as pedras que, em seu ofício de pastoreio, usava para proteger o rebanho de
predadores como leões e ursos.
Golias era considerado invencível
tanto pelos israelitas, quanto pelos filisteus, pois eles só concebiam a luta
contra o gigante com o uso das armas convencionais. Portanto, só o venceria
quem se igualasse a ele em força, qualidade da armadura e destreza no manuseio
das armas ofensivas e defensivas tradicionais: lança, espada, couraça, elmo,
armadura e escudo. Na ausência de alguém assim, ninguém o derrotava.
Davi, porém, teve outra concepção
de luta. O caminho não seria disputar força com o inimigo no seu contexto de
batalha, onde a derrota seria certa. No seu contexto, o gigante venceria tanto
o mais destemido israelita que quisesse vingar sua nação dos insultos dos
filisteus, quanto o mais piedoso crente em Javé, o que mostra que a lição maior
da história não repousa apenas sobre um ato de coragem ou fé. Embora ambas não
tenham faltado a Davi, não foi por elas que ele saiu vencedor. De maneira
perspicaz, Davi deslocou a luta para um contexto de ação que neutralizou a
superioridade da força e das armas do gigante e que lhe permitiu usar suas
habilidades de pastor de forma eficaz.
Em um combate convencional, Davi
seria derrotado por dois motivos. Primeiro porque o peso dos equipamentos de
guerra, com os quais não estava acostumado, eliminaria toda sua mobilidade e
capacidade de luta. Ao invés de ser um meio que facilitaria a vitória, a
armadura e as armas tradicionais e equivalentes às que Golias usava anularia
suas habilidades. Segundo, porque a destreza e força do inimigo no uso dessas
armas eram superiores e jamais seriam igualadas por Davi, mesmo que ele se
esforçasse o máximo e conseguisse suportar seu peso. Ou seja, além do inimigo
ter a vantagem inicial, o combate convencional imobilizaria o jovem israelita e
impediria seu progresso. Era, portanto, um contexto duplamente desvantajoso.
Assim, a única chance de vitória
baseava-se em três ideias gerais: impedir a aproximação do inimigo para evitar
o combate corpo a corpo, não permitir o prolongamento da luta e derrotar o
inimigo à distância. Isso eliminaria a possibilidade de que o gigante usasse
suas armas e sua força. Essas ideias gerais constituíram a estratégia de
Davi. Para colocá-las em prática, a tática utilizada foi recusar as
armas tradicionais, pois elas o colocavam em uma insuperável condição de
inferioridade, e usar a funda, uma arma que ele conhecia e manejava muito bem.
Portanto, o que deu a vitória ao
jovem pastor sobre aquele que consideravam invencível não foi apenas seu
ímpeto, coragem e fé, mas a estratégia e a tática utilizadas. Davi foi ao
encontro de Golias com sua roupa de pastor, um cajado, uma funda e as pedras no
bornal. Sua arma era simples, mas além de ter peso suportável, tratava-se de um
instrumento que ele sabia usar com destreza e que já demonstrara eficácia
contra animais ferozes que ameaçavam os rebanhos que estavam sob seu cuidado. E
o seu uso era fundamental para concretizar sua estratégia.
Por ser um texto bíblico, a
vitória é, obviamente, interpretada como um sinal da predileção de Deus pelos
israelitas. Mas, apesar disso, a vitória do jovem pastor sobre o gigante é
narrada sem adicionar qualquer interferência divina ou sobrenatural na ação.
Davi venceu Golias por ter sido capaz de neutralizar as forças e a ação do
adversário e de potencializar a sua própria força com uma decisão sábia e fora
do padrão tradicional das batalhas militares.
A luta dos explorados e oprimidos
em todo o mundo, principalmente nos países periféricos, sempre foi a luta dos
fracos contra gigantes poderosos e bem armados. A história registra vitórias e
derrotas, mas, no geral, enfrentamos poderes que muitos julgam invencíveis e
cuja dominação é planetária. Com que força eles dominam? Qual o seu contexto de
batalha em que nós estamos sendo derrotados? Conseguiríamos derrotá-los em uma
luta “corpo a corpo” no contexto em que eles têm vantagem? Como poderíamos
refletir sobre estratégias e táticas de lutas fundadas não apenas na coragem e
vontade de lutar, mas na eficácia de nossa ação em relação às forças do gigante
e nas armas que, mesmo não tendo o mesmo poder que as do inimigo, sabemos
manejar com destreza?
O primeiro passo nessa reflexão é
saber quem é o “Golias” que enfrentamos, quais são suas armas e seu contexto de
luta e onde está fundada a vantagem que tem sobre nós.