sábado, 15 de fevereiro de 2020

A Turquia, em busca de poderio


Thierry Meyssan*

Embora alegrando-se a propósito, a imprensa internacional interpreta a reviravolta da Turquia, de novo em conflito com a Rússia, como uma prova mais do carácter fantasioso do sultão Erdoğan. Pelo contrário, para Thierry Meyssan, Ancara dá prova de constância na sua longa busca de identidade ao adaptar-se aos novos dados da situação, apesar de não conseguir escolher um destino.

Turquia actual é, ao mesmo tempo, a herdeira das hordas de Gengis Khan, do Império otomano e do Estado laico de Mustafá Kemal. Ela rejeitou a definição que lhe foi dada pelo Tratado de Sèvres (1920), impondo pela força as modificações do Tratado de Lausana (1923), mas continua a julgar-se incompreendida e amputada dos seus territórios gregos, cipriotas, sírios e iraquianos, os quais continua a reivindicar. Ela persiste na negação dos seus crimes do passado, entre os quais o genocídio dos não-muçulmanos.

Não conseguindo definir-se desde há um século, empreende uma política estrangeira de mera reacção às relações de força regionais e mundiais, dando erroneamente a impressão de uma vontade errática.

A completa reviravolta que acaba de dar face à Rússia não é um mergulho na fantasia, mas, pelo contrário, a prossecução da sua busca identitária num ambiente circundante instável.

1- O desaparecimento da URSS (1991)

Não tendo cuidado em se afirmar membro do campo de vencedores da Guerra Fria, a Turquia viu-se sem objectivos quando a URSS foi dissolvida, em 26 de Dezembro de 1991.
Ela pensara modernizar-se aderindo à Comunidade Europeia, mas os Europeus não tinham a menor intenção em aceitá-la e fizeram arrastar as negociações (Estado associado desde 1963 e Candidato desde 1987). Uma segunda opção que se abria era a de recuperar a liderança do mundo muçulmano, no rasto do Império Otomano, mas os Sauditas, que presidem à Conferência Islâmica, fizeram barragem. Uma terceira opção acabara de surgir: religar-se com as populações turcófonas de cultura mongol, agora independentes, na Ásia Central.

Tendo hesitado demasiado, a Turquia deixou passar esta «janela de oportunidade». Ao comandar a Operação Tempestade no Deserto para libertar o Kuwait e ao convocar a Conferência de Madrid sobre a Palestina (1991), o Presidente Bush Sr. criou uma ordem regional estável dirigida pelo triunvirato Arábia Saudita/Egipto/Síria. Com o fim de se atribuir a si própria um lugar, a Turquia estabeleceu então uma relação privilegiada com o outro órfão do Médio-Oriente : Israel, o qual partilha as suas fantasias irredentistas [1].

2- O 11-de-Setembro de 2001

Ao destruir os dois principais inimigos do Irão, o Afeganistão e o Iraque, o Presidente Bush Jr permitiu ao Irão jogar de novo um papel regional. Teerão tomou a cabeça de um «Eixo da Resistência» (Irão, Iraque, Síria, Líbano, Palestina) face a todos os outros, organizados em torno da Arábia Saudita e de Israel. Contrariamente às aparências e à simplista leitura ocidental, não se tratava nem de uma oposição entre pró e anti-EUA, nem entre xiitas e sunitas, mas de um conflito regional fictício, atiçado pelo Pentágono, como tinha feito durante uma década de inútil guerra Iraque-Irão. Sendo o objectivo final desta vez já não o de enfraquecer uns e outros, mas o de fazer destruir todas as estruturas estatais da região pelos seus próprios habitantes (estratégia Rumsfeld/Cebrowski).

Único Estado da região a compreender este jogo em tempo real, a Turquia escolheu proteger-se mantendo boas relações com os dois campos e pregando o desenvolvimento económico mais do que a guerra civil regional. Assumiu, então, distâncias para com Israel.

Quando em 2006, o Coronel Ralph Peters publicou o mapa de projectos do Estado-Maior dos EUA, pareceu que a Turquia seria também, a prazo, destruída pelo seu aliado Norte-Americano em proveito de um «Curdistão livre» [2], remotamente inspirado no Curdistão que eles haviam desenhado em 1920. Uma parte dos oficiais generais turcos colocou então em causa o alinhamento do seu país com Washington e preconizou tecer uma outra aliança. Eles apalparam o terreno pelo lado de Pequim (Moscovo não tinha ainda voltado a ser uma potência militar). Alguns franquearam o passo abrindo um canal de conversação e comprando algumas armas. Foram presos, em 2008, junto com responsáveis do Partido dos Trabalhadores (İşçi Partisi) (kemalo-maoistas) no quadro do escândalo de Ergenekon. Quase todos os oficiais do Estado-Maior foram condenados a pesadas penas de prisão, pretensamente por espionagem em benefício dos Estados Unidos, antes que a verdade surgisse à luz do dia e que a totalidade dos julgamentos fosse anulada.

Desapontada, Ancara aceitou criar um mercado comum com o seu vizinho sírio a fim de se proteger de uma eventual acção de charcutaria visando criar um «Curdistão livre».

3- As «Primaveras Árabes» (2011)

Por fim, durante a operação anglo-saxónica das «Primaveras Árabes», que visava colocar no Poder em todo o “Médio-Oriente Alargado” os Irmãos Muçulmanos, a Turquia esperou tirar proveito da pertença do Presidente Recep Tayyip Erdoğan a essa Confraria a fim de escapar ao caos anunciado. Ela acordou pois a tribo otomana dos Misratas na Líbia e ajudou a OTAN a derrubar o seu próprio aliado Muamar Kaddafi. Depois, entrou em guerra contra o seu parceiro sírio. Mas estas duas aventuras quebraram a sua economia até aí florescente.

Então quando a Rússia entrou em cena e derrotou o Daesh (E.I), a Turquia decidiu libertar-se dos Ocidentais. Ela aproximou-se de Moscovo, comprou S-400 e a central (usina-br) atómica de Akkuyu, e comprometeu-se na paz para a Síria, em Sochi e em Astana. A CIA respondeu-lhe manipulando, para tal, a organização de Fetullah Gülen e financiando o HDP (Partido das Minorias) contra o AKP (islamista). Ela fez abater um Sukhoi-24, tentou assassinar o Presidente Erdoğan, falhou um golpe de Estado, conseguiu assassinar o embaixador russo Andreї Karlov, etc.

Alarmada, a Turquia replicou com uma vasta caça às bruxas, chegando a prender meio milhão de pessoas suspeitas de terem participado numa tentativa de assassinato que envolvera, quando muito, apenas algumas centenas de militares.

Ancara colocou-se a meio caminho entre Washington e Moscovo, buscando a sua independência com o risco de ser esmagada, a qualquer momento, por um acordo entre os dois Grandes. Assim, a Turquia desdobrou-se de maneira a, ao mesmo tempo, apoiar e atrapalhar os seus dois patrocinadores: por um lado, ela toma parte na guerra contra a Síria e, por outro, apoiou o Irão e instalou bases no Catar, no Kuwait e no Sudão.

Para além do facto de que é impossível manter esta posição durante muito tempo, a Turquia via-se a caçar cinco lebres ao mesmo tempo: a UE, com a qual assinara um acordo sobre migrações, os Árabes, que pretende agora defender face a Israel, a Ásia Central, que ela abriga sob a sua asa, a OTAN, que ela não abandonou, e a Rússia que tentou seduzir.

4- O assassinato do General Soleimani (2020)

O mundo inteiro acreditou —erradamente— que os Estados Unidos, exaustos, se retiravam do Médio-Oriente e deixavam o campo livre à Rússia. Na realidade, retiravam as suas tropas, mas pensavam conservar o seu controle da região através de inúmeros e preparados mercenários, os jiadistas.

Tendo em vista a vontade dos Estados Unidos de prosseguir no Norte da África as destruições que iniciara na parte asiática do Médio-Oriente Alargado, e considerando que foi provavelmente o governo iraniano —e não Israel— quem ajudou o Pentágono a assassinar o General Qassem Suleimani, Ancara reviu de novo a sua lição.

A Turquia regressou à órbita de Washington. Ela que negociara a paz na Síria em Moscovo, a 13 de Janeiro, desafia brutalmente a mesma Rússia, em 1 de Fevereiro, matando quatro oficiais do FSB em Alepo [3].

O Exército turco, a tribo dos Misrata (Líbia) e os jiadistas de Idleb (Síria) —dos quais 5. 000 foram já transferidos pelos Serviços Secretos turcos num mês e meio—, começaram já a sangrar a Líbia com a cumplicidade, talvez involuntária, do Marechal Khalifa Haftar até ao completo esgotamento de todas as partes [4].


*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008)

Imagem: Maquete do gigantesco complexo presidencial de Ancara, o «Palácio Branco». A Turquia compensa a sua incapacidade em se definir com uma forma de delírio de grandezas.

Notas:
[1] The Turkish-Israeli Relationhip. Changing Ties of Middle Eastern Outsiders, Ofra Bengio, Palgrave-Macmillan (2004).
[2] “Blood borders - How a better Middle East would look”, Colonel Ralph Peters, Armed Forces Journal, June 2006.
[3] “A Turquia manda abater 4 oficiais do FSB russo”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 4 de Fevereiro de 2020.
[4] “Preparação de uma nova guerra”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 7 de Janeiro de 2020.

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