Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre
| Brasil
Diante
dos inúmeros desafios enfrentados pelos trabalhadores ligados aos espaços de
memória, escrevi este texto baseado em vivências adquiridas na prática
cotidiana, ao longo dos anos, das minhas atividades no Museu da Comunicação
Hipólito José da Costa (MuseCom) , localizado, em Porto Alegre (RS), Centro
Histórico, Rua dos Andradas, 959. Criado em 10 de setembro de 1974, o museu
completou seus 45 anos de atividades culturais junto à sociedade gaúcha. Nesta
instituição, trabalho há 27 anos, o que me credencia, de certa forma, a
discorrer sobre a relevância de espaços que guardam, preservam e disponibilizam
os seus acervos, de diferentes tipologias, ao público interessado e,
principalmente, aos estudantes que desenvolvem pesquisas acerca dos mais
diversos temas.
O produto cultural,
que resulta das atividades ligadas à pesquisa, é representado pela produção de
monografias, dissertações, teses, livros, entre outros trabalhos, no campo das
ciências humanas e das exatas. Todo o processo técnico, que é desenvolvido pelo
pesquisador, constitui-se num verdadeiro garimpo no passado remoto ou recente.
Entre outros aspectos importantes, no campo da pesquisa, é o acesso às fontes
históricas (acervos) que, nos espaços de memória, encontram-se inventariadas e
preservadas, viabilizando a produção científica das nossas universidades.
A missão do
pesquisador
A partir de um
olhar crítico, estes profissionais, em sua incansável e responsável tarefa,
desenvolvem pesquisas sobre os mais variados temas dentro de um recorte
histórico-temporal. Há também as pesquisas com o caráter revisionista, visando
a retificar e a elucidar determinados fatos, a partir de novos dados coletados
pelo pesquisador, em seu trabalho de mergulhar no passado, visando a
compreender o presente. Essas pesquisas valorizam de sobremaneira o papel do
pesquisador, e as fontes que lhe servem de base e sustentação em sua atividade.
O trabalho do pesquisador só se torna possível graças aos espaços de memória
que guardam, preservam e disponibilizam seus acervos ao público.
Os
regimes de repressão e a historiografia
No decorrer da
história do Brasil, devido a interesses oligárquicos, principalmente quando se
implantaram governos ditatoriais, foram criados mecanismos de repressão em
relação aos meios de comunicação e a qualquer forma de produção cultural que
fosse de encontro aos donos do poder.
O cerceamento
da liberdade de expressão resultou, durante o Estado Novo (1937-1945) e a
Ditadura Civil-Militar (1964-1985), na omissão e na invisibilidade de
determinados acontecimentos, por parte historiografia oficial, assim como na
manipulação de fatos importantes de acordo com os interesses do poder. Isto
dificulta bastante o papel do pesquisador, fazendo com que o seu trabalho
assuma um caráter desafiador.
De acordo com os
historiadores e a narrativa daqueles que sobreviveram ao terror da tortura, a
queima de arquivos e assassinatos, na calada da noite, eram práticas de rotina
nos períodos de regimes ditatoriais no Brasil. Estas práticas visavam a apagar
tudo que, de alguma forma, comprometesse ou colocasse em risco o sistema numa
insana “caça às bruxas”, que não deixou nada a dever aos inquisidores do Santo
Ofício.
O periódico como fonte de
pesquisa
Nos estudos, por
exemplo, que nos remetem à Ditadura Civil-Militar (1964-1985), os periódicos
(jornais, revistas boletins e almanaques), principalmente os jornais
alternativos (não comprometidos com o poder), que, em Porto Alegre,
encontram-se sob a guarda do
MuseCom, a exemplo de O Pasquim (1969-1991), Coojornal (1976-1983) e O
Pato Macho (1971), têm sido fontes importantes para os pesquisadores de
vários locais do Brasil e até mesmo do exterior, que analisam, por meio desses
impressos, sob o crivo do olhar acurado, os fatos que ocorreram naquele período
de repressão política e de cerceamento às liberdades individuais.
Um caso
clássico, de mordaça à liberdade de imprensa, foi o que ocorreu, em Porto
Alegre, com jornal A Tribuna Gaúcha (1946-1958), Fundado pelo PCB / RS, sua
história nos remete a um verdadeiro “farowest” urbano. De acordo com o
pesquisador e jornalista João Batista Marçal (1941-2018), em seu livro “A
Imprensa Operária do Rio Grande do Sul” (2004), esse periódico foi o mais
corajoso e combativo da esquerda gaúcha, despertando a perseguição e a ira dos
adversários políticos da época.
No
período, de 1946 até ao início de 1952, em que a redação da Tribuna Gaúcha se
localizava na Rua da Ladeira (atual General Câmara), ocorreram, em momentos
críticos de repressão, prisões, espancamentos, tumultos e até derramamento de
sangue. A ordem poderia partir do Tribunal da Justiça, da Guarda Civil ou até
mesmo de um delegado enfurecido com o conteúdo do jornal. Com a redação sempre
vigiada, a cada edição se estabelecia um confronto. As portas do prédio
permaneciam fechadas e, no seu interior, o jornal era rodado, enquanto os
militantes pensavam numa forma de burlar a vigilância policial e distribui-lo
em locais estratégicos e previamente determinados.
Entre
outras formas, para tentar romper com o cerco, a mais comum era escolher uma
pessoa na redação que, ao sair da sede, iniciava um discurso contra o governo,
atraindo a atenção dos repressores e desviando–os do seu foco: a redação.
Caso houvesse êxito estratégico, alguns militantes se deslocavam, de forma
rápida, com pacotes de jornais, para serem distribuídos, na Rua Praia, em
pontos nos quais o jornal já estava sendo esperado.
O jornal que apoiou
Jango
Outro caso de
perseguição à liberdade de expressão foi em relação à rede do jornal
Última Hora, criada pelo jornalista russo-brasileiro Samuel Wainer (1910-1980),
abrangendo São Paulo, Pernambuco, Paraná, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
Criado, em 1951, no
Rio de Janeiro, com o apoio do Presidente Getúlio Vargas (1882-1954), o jornal Última
Hora ficou sob seu poder por 20 anos, apoiando as reformas sociais e a política
trabalhista do governo Vargas. .Embora com este mesmo título tenha circulado
depois de 1971, a linha editorial do jornal mudou após ter sido vendido.
O jornal Última
Hora (1960-1964) impresso, no Rio Grande do Sul, foi o único na Capital gaúcha,
que apoiou as reformas de base defendidas por João Goulart (1919-1976), indo de
encontro ao Golpe de 64 ou, como dizia Leonel de Moura Brizola (1922-2004), à
quartelada articulada que contou com o apoio dos Estados Unidos, resultando em
21 anos de ditadura. Com a tomada do poder pelos militares, em 1964, Samuel
Wainer, deixou o Brasil.
Os jornais A
Tribuna Gaúcha e a Última Hora foram marcantes na história da imprensa
brasileira, sendo fundamental preservar suas coleções, pois representam a
resistência à opressão, quando a liberdade e os direitos humanos são ameaçados
e até mesmo violados de forma arbitrária e despótica.
A
historiadora gaúcha que quebrou paradigmas
Dentro das
limitações impostas a quem se aventura a descortinar o passado, não poderia
deixar de registrar minha homenagem “In Memoriam” à historiadora Sandra Jatahy
Pesavento (1946-2009). Nascida em Porto Alegre, ela superou preconceitos
acadêmicos em relação a determinados temas, que foram soterrados e ignorados,
ao longo do tempo, pela historiografia oficial.
Ao escrever
inúmeras obras, acerca de temáticas até então abordadas sem a devida
profundidade, ou invisibilizadas devido ao preconceito - a exemplo da história
dos becos e bairros negros da Capital gaúcha e seus personagens -, Pesavento
nos deixou uma valiosa produção historiográfica, na qual a pesquisa nos
periódicos, que circularam no final do período monárquico e nas primeiras
décadas do século 20, foi imprescindível, corroborando sobre a importância das
fontes primárias preservadas nos espaços de memória, como é o caso do MuseCom:
detentor de uma das mais importantes hemerotecas da América Latina.
Segue a transcrição
de um registro, denotando a experiência desta notável historiadora e o feeling
de quem nos deixou um significativo legado cultural: "As fontes históricas
nos auxiliam a compreender esta "colcha de retalhos" que é a
trajetória do homem através do tempo". Sandra Pesavento
O
compromisso com a cidadania
Espaços culturais,
voltados à preservação da memória, são importantes no processo de educação,
auxiliando o cidadão a compreender a história, em suas múltiplas
abordagens, seja a partir da sua comunidade ou de seu país, assim como de outra
cultura. A memória, representada por meio dos acervos, trata-se de um valioso
patrimônio cultural, constituindo-se num instrumento no processo da construção
identitária do cidadão.
Os espaços de
memórias devem interagir, com a comunidade, por meio de atividades, nas quais a
criança, o jovem, o idoso se identifiquem como parte integrante deles, pois ali
se guardam e preservam, por meio de seus acervos, aspectos da história da
sociedade, da qual todos fazem parte. Estes locais, além da importante função
de serem guardiões de um patrimônio, representam também nichos voltados à
resistência, à produção cultural e à inclusão, num País onde a diversidade
étnico-racial é o caldeirão, no qual se forjou a identidade do seu povo.
Um novo olhar
A memória pode
ser compartilhada por meio de exposições, palestras, visitas guiadas e outras
tantas atividades que devem ser norteadas pelo trinômio do conhecimento, do
lazer e da criatividade, evitando, desta forma, as narrativas, na maioria das
vezes, longas e enfadonhas, que não conseguem manter a atenção do público
presente e nem fazê-lo refletir sobre a importância da memória e o porquê da
sua preservação.
Com criatividade e bom
conteúdo, a interação, entre o profissional e o visitante, que se dá nos
espaços de memória, contribui, de forma substancial, na aquisição e produção do
conhecimento ou, no caso das crianças, na formação do futuro cidadão. A ideia,
por exemplo, de que o museu é um espaço frio e estagnado no tempo, guardando
objetos antigos, é ultrapassada e este errôneo conceito deve ser desconstruído
e superado.
Oxalá, os
profissionais, que vivenciam as atividades desenvolvidas dentro deste universo
composto por museus, memoriais, arquivos e bibliotecas, possam atuar de forma a
desconstruir este imaginário perpetuado pela desinformação. Um país sem memória
é um povo sem história, o que resulta em total alienação da sua realidade
cultural, socioeconômica e política.
*
Pesquisador e responsável pelo núcleo de pesquisa do MuseCom
Bibliografia
FÉLIX, Loiva Otero Memória
e História : a problemática da pesquisa. Passo Fundo Ediupf, 1998.
MARÇAL, João Batista. A imprensa
operária do Rio Grande do Sul. (1873-1972). Porto Alegre. 2004.
MIRANDA, Marcia Eckert; COSTA
LEITE, Carlos Roberto Saraiva. Jornais raros do Musecom: 1808-1924. Porto
Alegre: Comunicação Impressa, 2008.
SANTOS, Maria Céli Moura. Encontros
museilógicos : reflexões sobre a museologia, a educação e o museu. Rio de
Janeiro: MINC; IPHAN; DEMIU, 2008.
VIGNOL, Ana Letícia. Memórias do
Museu de Comunicação Hipólito José da Costa. Porto Alegre : Ed,
Movimento, 2012.
Entrevista
Sérgio Dillenburg:
depoimento [nov.2004] entrevistadora Ana Letícia de Alencastro Vignol.
Porto Alegre. Entrevista realizada com o idealizador e primeiro diretor
do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.
Imagens:
1 - MuseCom
2- Jornal Última Hora /
Acervo MuseCom
3- Jornal O Pato
Macho / Acervo MuseCom
3 - Jornal O Pasquim / Acervo
MuseCom
4- Historiadora Sandra
Jathaí Pesavento
Sem comentários:
Enviar um comentário