quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Brasil | Memória e identidade: a construção da cidadania

Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre | Brasil

Diante dos inúmeros desafios enfrentados pelos trabalhadores ligados aos espaços de memória, escrevi este texto baseado em vivências adquiridas na prática cotidiana, ao longo dos anos, das minhas atividades no Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (MuseCom) , localizado, em Porto Alegre (RS), Centro Histórico, Rua dos Andradas, 959. Criado em 10 de setembro de 1974, o museu completou seus 45 anos de atividades culturais junto à sociedade gaúcha. Nesta instituição, trabalho há 27 anos, o que me credencia, de certa forma, a discorrer sobre a relevância de espaços que guardam, preservam e disponibilizam os seus acervos, de diferentes tipologias, ao público interessado e, principalmente, aos estudantes que desenvolvem pesquisas acerca dos mais diversos temas. 

O produto cultural, que resulta das atividades ligadas à pesquisa, é representado pela produção de monografias, dissertações, teses, livros, entre outros trabalhos, no campo das ciências humanas e das exatas. Todo o processo técnico, que é desenvolvido pelo pesquisador, constitui-se num verdadeiro garimpo no passado remoto ou recente. Entre outros aspectos importantes, no campo da pesquisa, é o acesso às fontes históricas (acervos) que, nos espaços de memória, encontram-se inventariadas e preservadas, viabilizando a produção científica das nossas universidades.  

A missão do pesquisador

A partir de um olhar crítico, estes profissionais, em sua incansável e responsável tarefa, desenvolvem pesquisas sobre os mais variados temas dentro de um recorte histórico-temporal. Há também as pesquisas com o caráter revisionista, visando a retificar e a elucidar determinados fatos, a partir de novos dados coletados pelo pesquisador, em seu trabalho de mergulhar no passado, visando a compreender o presente. Essas pesquisas valorizam de sobremaneira o papel do pesquisador, e as fontes que lhe servem de base e sustentação em sua atividade. O trabalho do pesquisador só se torna possível graças aos espaços de memória que guardam, preservam e disponibilizam seus acervos ao público. 

Os regimes de repressão e a historiografia

No decorrer da história do Brasil, devido a interesses oligárquicos, principalmente quando se implantaram governos ditatoriais, foram criados mecanismos de repressão em relação aos meios de comunicação e a qualquer forma de produção cultural que fosse de encontro aos donos do poder. 

O cerceamento da liberdade de expressão resultou, durante o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), na omissão e na invisibilidade de determinados acontecimentos, por parte historiografia oficial, assim como na manipulação de fatos importantes de acordo com os interesses do poder. Isto dificulta bastante o papel do pesquisador, fazendo com que o seu trabalho assuma um caráter desafiador. 

De acordo com os historiadores e a narrativa daqueles que sobreviveram ao terror da tortura, a queima de arquivos e assassinatos, na calada da noite, eram práticas de rotina nos períodos de regimes ditatoriais no Brasil. Estas práticas visavam a apagar tudo que, de alguma forma, comprometesse ou colocasse em risco o sistema numa insana “caça às bruxas”, que não deixou nada a dever aos inquisidores do Santo Ofício. 



O periódico como fonte de pesquisa

Nos estudos, por exemplo, que nos remetem à Ditadura Civil-Militar (1964-1985), os periódicos (jornais, revistas boletins e almanaques), principalmente os jornais alternativos (não comprometidos com o poder), que, em Porto Alegre, encontram-se  sob a guarda do  MuseCom, a exemplo de O Pasquim (1969-1991), Coojornal (1976-1983) e O Pato Macho (1971), têm sido fontes importantes  para os pesquisadores de vários locais do Brasil e até mesmo do exterior, que analisam, por meio desses impressos, sob o crivo do olhar acurado, os fatos que ocorreram naquele período de repressão política e de cerceamento às liberdades individuais. 

Um caso clássico, de mordaça à liberdade de imprensa, foi o que ocorreu, em Porto Alegre, com jornal A Tribuna Gaúcha (1946-1958), Fundado pelo PCB / RS, sua história nos remete a um verdadeiro “farowest” urbano. De acordo com o pesquisador e jornalista João Batista Marçal (1941-2018), em seu livro “A Imprensa Operária do Rio Grande do Sul” (2004), esse periódico foi o mais corajoso e combativo da esquerda gaúcha, despertando a perseguição e a ira dos adversários políticos da época.

No período, de 1946 até ao início de 1952, em que a redação da Tribuna Gaúcha se localizava na Rua da Ladeira (atual General Câmara), ocorreram, em momentos críticos de repressão, prisões, espancamentos, tumultos e até derramamento de sangue. A ordem poderia partir do Tribunal da Justiça, da Guarda Civil ou até mesmo de um delegado enfurecido com o conteúdo do jornal. Com a redação sempre vigiada, a cada edição se estabelecia um confronto. As portas do prédio permaneciam fechadas e, no seu interior, o jornal era rodado, enquanto os militantes pensavam numa forma de burlar a vigilância policial e distribui-lo em locais estratégicos e previamente determinados.

Entre outras formas, para tentar romper com o cerco, a mais comum era escolher uma pessoa na redação que, ao sair da sede, iniciava um discurso contra o governo, atraindo a atenção dos repressores e desviando–os do seu foco: a redação.  Caso houvesse êxito estratégico, alguns militantes se deslocavam, de forma rápida, com pacotes de jornais, para serem distribuídos, na Rua Praia, em pontos nos quais o jornal já estava sendo esperado.

O jornal que apoiou Jango

Outro caso de perseguição à liberdade de expressão foi em relação à rede do jornal  Última Hora, criada pelo jornalista russo-brasileiro Samuel Wainer (1910-1980), abrangendo São Paulo, Pernambuco, Paraná, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

  Criado, em 1951, no Rio de Janeiro, com o apoio do Presidente Getúlio Vargas (1882-1954), o jornal Última Hora ficou sob seu poder por 20 anos, apoiando as reformas sociais e a política trabalhista do governo Vargas. .Embora com este mesmo título tenha circulado depois de 1971, a linha editorial do jornal mudou após ter sido vendido. 

O jornal Última Hora (1960-1964) impresso, no Rio Grande do Sul, foi o único na Capital gaúcha, que apoiou as reformas de base defendidas por João Goulart (1919-1976), indo de encontro ao Golpe de 64 ou, como dizia Leonel de Moura Brizola (1922-2004), à quartelada articulada que contou com o apoio dos Estados Unidos, resultando em 21 anos de ditadura. Com a tomada do poder pelos militares, em 1964, Samuel Wainer, deixou o Brasil. 

Os jornais A Tribuna Gaúcha e a Última Hora foram marcantes na história da imprensa brasileira, sendo fundamental preservar suas coleções, pois representam a resistência à opressão, quando a liberdade e os direitos humanos são ameaçados e até mesmo violados de forma arbitrária e despótica.

A historiadora gaúcha que quebrou paradigmas 

Dentro das limitações impostas a quem se aventura a descortinar o passado, não poderia deixar de registrar minha homenagem “In Memoriam” à historiadora Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009). Nascida em Porto Alegre, ela superou preconceitos acadêmicos em relação a determinados temas, que foram soterrados e ignorados, ao longo do tempo, pela historiografia oficial.  

Ao escrever inúmeras obras, acerca de temáticas até então abordadas sem a devida profundidade, ou invisibilizadas devido ao preconceito - a exemplo da história dos becos e bairros negros da Capital gaúcha e seus personagens -, Pesavento nos deixou uma valiosa produção historiográfica, na qual a pesquisa nos periódicos, que circularam no final do período monárquico e nas primeiras décadas do século 20, foi imprescindível, corroborando sobre a importância das fontes primárias preservadas nos espaços de memória, como é o caso do MuseCom: detentor de uma das mais importantes hemerotecas da América Latina.
  
Segue a transcrição de um registro, denotando a experiência desta notável historiadora e o feeling de quem nos deixou um significativo legado cultural: "As fontes históricas nos auxiliam a compreender esta "colcha de retalhos" que é a trajetória do homem através do tempo". Sandra Pesavento

O compromisso com a cidadania

Espaços culturais, voltados à preservação da memória, são importantes no processo de educação, auxiliando o cidadão a compreender a história, em suas múltiplas  abordagens, seja a partir da sua comunidade ou de seu país, assim como de outra cultura. A memória, representada por meio dos acervos, trata-se de um valioso patrimônio cultural, constituindo-se num instrumento no processo da construção identitária do cidadão.

Os espaços de memórias devem interagir, com a comunidade, por meio de atividades, nas quais a criança, o jovem, o idoso se identifiquem como parte integrante deles, pois ali se guardam e preservam, por meio de seus acervos, aspectos da história da sociedade, da qual todos fazem parte. Estes locais, além da importante função de serem guardiões de um patrimônio, representam também nichos voltados à resistência, à produção cultural e à inclusão, num País onde a diversidade étnico-racial é o caldeirão, no qual se forjou a identidade do seu povo. 

Um novo olhar

A memória pode ser compartilhada por meio de exposições, palestras, visitas guiadas e outras tantas atividades que devem ser norteadas pelo trinômio do conhecimento, do lazer e da criatividade, evitando, desta forma, as narrativas, na maioria das vezes, longas e enfadonhas, que não conseguem manter a atenção do público presente e nem fazê-lo refletir sobre a importância da memória e o porquê da sua preservação. 

 Com criatividade e bom conteúdo, a interação, entre o profissional e o visitante, que se dá nos espaços de memória, contribui, de forma substancial, na aquisição e produção do conhecimento ou, no caso das crianças, na formação do futuro cidadão. A ideia, por exemplo, de que o museu é um espaço frio e estagnado no tempo, guardando objetos antigos, é ultrapassada e este errôneo conceito deve ser desconstruído e superado.

   Oxalá, os profissionais, que vivenciam as atividades desenvolvidas dentro deste universo composto por museus, memoriais, arquivos e bibliotecas, possam atuar de forma a desconstruir este imaginário perpetuado pela desinformação. Um país sem memória é um povo sem história, o que resulta em total alienação da sua realidade cultural, socioeconômica e política. 
                                                  
* Pesquisador e responsável pelo núcleo de pesquisa do MuseCom

Bibliografia
FÉLIX, Loiva Otero Memória e História : a problemática da pesquisa. Passo Fundo Ediupf, 1998.
MARÇAL, João Batista. A imprensa operária do Rio Grande do Sul. (1873-1972). Porto Alegre. 2004.
MIRANDA, Marcia Eckert; COSTA LEITE, Carlos Roberto Saraiva.  Jornais raros do Musecom: 1808-1924. Porto Alegre: Comunicação Impressa, 2008.
SANTOS, Maria Céli Moura. Encontros museilógicos : reflexões sobre a museologia, a educação e o museu. Rio de Janeiro: MINC; IPHAN; DEMIU, 2008.
VIGNOL, Ana Letícia. Memórias do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.  Porto Alegre : Ed, Movimento, 2012.
Entrevista  
 Sérgio Dillenburg: depoimento   [nov.2004] entrevistadora Ana Letícia de Alencastro Vignol. Porto Alegre.  Entrevista realizada com o idealizador e primeiro diretor do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.

Imagens:
1 - MuseCom
2-  Jornal Última Hora / Acervo MuseCom
3-   Jornal O Pato Macho / Acervo MuseCom
3 - Jornal O Pasquim / Acervo MuseCom
4-  Historiadora Sandra Jathaí Pesavento

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