Pessoas de todas as idades voltam
a se insurgir. Buscam zonas libertadas de capitalismo, colonialismo e
patriarcado. Sondam economias comunitárias, indígenas, feministas,
cooperativas. E os poderes: irão finalmente envelhecer?
Boaventura de Sousa Santos* |
Outras Palavras
Na vida pessoal, o envelhecimento
depende menos da idade fisiológica do que da idade social. A idade social é
inversamente proporcional à capacidade de pensar, sentir e viver o novo como
futuro, como tarefa, como presente por experimentar. É-se tanto mais jovem
quanto maior é a capacidade de viver a vida como se ela fosse uma experiência
de constantes recomeços que apontassem não para repetições do passado, mas
antes para futuros – mapas por explorar e caminhos por trilhar com
disponibilidade para enfrentar riscos, assumir ignorâncias e responder a
desafios novos. É o futuro como antecipação, como “ainda não”, como latência,
como potência. Como sabemos que nunca vivemos senão no presente, o futuro é sempre
o presente incompleto, o presente como tarefa, como acontecimento, pelo qual
somos pessoalmente responsáveis. Ter futuro é ser dono do presente. Pelo
contrário, é-se tanto mais velho quanto mais se vive convencido de que o mundo
já decidiu por nós o que podemos esperar ou não esperar e que,
consequentemente, o futuro está fechado para nós. Envelhecer é, pois, viver de
repetição ou em repetição como se cada repetição fosse única e irrepetível. É
passar os dias como se fossem os dias a passar com a indiferença do passeio
diário.
São três os modos de viver de
repetição: como se o passado fosse um eterno presente e tanto as rotinas como
as instituições e as notícias o confirmassem dia-a-dia (envelhecimento por
morte viva); como se o passado tivesse passado e tivesse deixado no seu rastro
um vazio inabarcável que só o jogo de cartas, a televisão ou a conversa sobre
doenças pode iludir (envelhecimento por vida morta); ou, finalmente, como se
tanto o passado como o futuro estivessem igualmente distantes e inacessíveis,
criando assim um pânico insuperável que só o gasto excessivo do corpo no
álcool, nas drogas, na academia, na igreja ou na terapia pudesse iludir
(envelhecimento por vida sem morte).
Nas sociedades de corpos
industrializados e informatizados em que vivemos foram criados serviços
públicos e privados para dar assistência às pessoas que têm mais dificuldades
com a repetição da repetição. No fundo, trata-se de normalizar a decadência.
Nestas sociedades o envelhecimento é sempre o resultado de um esgotamento
crónico de energias gastas ou por gastar. Consiste em pôr convictamente o
letreiro de lotação esgotada à porta do teatro da vida, mesmo que há muito se
não represente nele uma peça, ou mesmo que nunca se tenha feito nele um
primeiro ensaio. No caso das duas primeiras formas de envelhecimento, o
objetivo é investir no passado como se não tivesse passado. Consiste cada vez
mais na comercialização de serviços de co-envelhecimento. São, em geral,
eficazes porque a invenção da repetição oculta astuciosamente a repetição da
invenção. A ideia básica é que as experiências de envelhecimento, por mais
insuportáveis, são sempre mais suportáveis quando partilhadas. No caso da
terceira forma de envelhecimento, em vez da onipresença do passado, procura-se
a oniausência do passado, um eterno presente que dispensa o futuro de ter de
assombrar os vivos com as más notícias que ainda não são. São as técnicas de
envelhecimento por rejuvenescimento.
É uma versão modificada da metáfora do
filme The Curious Case of Benjamin Button, baseado no conto de F. Scott Fitzgerald,
no qual o protagonista nasce velho e vai rejuvenescendo à medida que o tempo
passa até morrer bebê. Nas técnicas de envelhecimento por rejuvenescimento, o
relógio da estação de trem da pequena cidade do sul dos EUA, em vez de andar
para trás, pára, e com ele pára o tempo também.
Como referi, a idade social não
coincide com a idade fisiológica, mas a descoincidência é maior ou menor
consoante os períodos históricos, os contextos sociais e os fatores coletivos
que os caracterizam. O mesmo acontece com as sociedades. O mundo
industrializado em que vivemos começou a envelhecer aceleradamente na década de
1980. De repente, o futuro fechou-se, o novo senso comum de que não havia
alternativa à sociedade capitalista injusta, racista e sexista em que vivíamos
entrou nas nossas casas mais rapidamente do que qualquer pizza delivery ou ubereats, propagou-se
pelos noticiários, pelas redes sociais emergentes, pela sabedoria prêt-à-porter da
comentocracia. Novas experiências e expectativas de vida coletiva estavam para
sempre desacreditadas, o mundo era naturalmente injusto, os ricos eram ricos
porque mereciam e os pobres eram pobres de tudo, mas sobretudo de juízo;
tínhamos de viver com a imperfeição, ainda que a pudéssemos minorar
substituindo a racionalidade dos mercados pela irracionalidade do Estado, à
custa do qual viviam os menos capazes de sobreviver numa sociedade competitiva.
A primeira-ministra da
Inglaterra, Margaret Thatcher, decretou melhor que ninguém a morte do futuro:
“There is no Alternative”, a célebre TINA. E Francis Fukuyama transformou essa
morte no triunfo final da sociedade ocidental – “o fim da história” –
prevalecendo-se do fato de que Friedrich Hegel, estando morto desde 1831, não
poderia insurgir-se contra tão idiota interpretação da sua filosofia da
história. O cimento desarmado com a queda do Muro de Berlim foi-se rearmando em
mil cemitérios do futuro que se foram construindo em todo o mundo. E muitos
foram necessários para enterrar tanto futuro.
Este grande procedimento para
envelhecer o mundo traduz-se hoje predominantemente na primeira forma de
envelhecimento que referi acima, o envelhecimento por morte viva. Mas as duas
outras formas de envelhecimento estão igualmente presentes. O envelhecimento
por vida morta é a forma de envelhecimento preferida pelos fundamentalismos
religiosos. Atuam sobre o vazio causado pelo passado e prometem fazê-lo
renascer sob a forma de um futuro glorioso num outro mundo. Para os promotores
deste envelhecimento, a vida que vivemos está morta e só pode ressuscitar
quando os relógios da história começarem a andar para trás ou quando todos, em
uníssono, começarem a dar a hora derradeira da eternidade. Não há
responsabilidade social pela injustiça. Há, sim, culpa por sofrê-la, e a única
solução é expiá-la.
A terceira forma de
envelhecimento (vida sem morte) é a que domina na geração dos millenials, a
que nasceu no início do período em que o teatro do mundo fechava a cortina de
um futuro diferente e melhor. Foi uma geração condenada a nascer velha.
Nasceram sem o passado do futuro porque a ideia da alternativa tinha entretanto
desaparecido do horizonte. Por isso, nunca lhes ocorreu derrubar o sistema
injusto que lhes roubava a esperança de um futuro diferente e melhor. O seu
objetivo foi ter êxito pessoal dentro do sistema. Sacrificaram tempo, direitos,
lazer e prazer na esperança de uma vitória que, para a grande maioria, nunca
chegou. Queriam vencer o sistema, vencendo no sistema. Era isto que o sistema
queria para mais eficazmente os vencer. Essa geração é hoje a que domina na
terceira forma de envelhecimento (vida sem morte).
A geopolítica das estratégias de
envelhecimento merece uma análise mais detalhada que não cabe aqui fazer. Basta
por agora ter em mente que nem o mundo envelheceu uniformemente, nem as formas
de envelhecimento se distribuíram por igual no planeta. Foi sobretudo no
chamado norte global que, paradoxalmente, as pessoas passaram a querer viver
mais tempo sem, no entanto, serem consideradas velhas. O que quero salientar
neste momento é que estão a surgir sinais concludentes de que o processo de
envelhecimento do mundo não é irreversível. Não se trata de rejuvenescer, o
que, como referi acima, é uma forma de enganar o envelhecimento. Trata-se antes
de desenvelhecer, ou seja, de voltar a acreditar num futuro diferente e na
capacidade para lutar por ele.
Trata-se de rejeitar a repetição
infinita do presente porque tal repetição está a conduzir-nos inexoravelmente
para o abismo. Emerge uma vontade do novo que não seja uma barbárie porque a
barbárie é onde estamos já. Por todo o mundo estão a surgir levantes de pessoas
de todas as idades fisiológicas porque, como disse, a diferença fisiológica não
conta na perspectiva do envelhecimento ou desenvelhecimento do mundo. Presenças
coletivas de jovens e velhos enchendo as ruas e as praças públicas do mundo
contra a política da repetição e os políticos repetidos, do Chile à Itália, do
Líbano à Índia. São os novos insurgentes inconformados com a iminente
catástrofe ecológica, a concentração escandalosa da riqueza, a captura das
instituições democráticas por anti-democratas, a irracionalidade dos mercados
ditos racionais, o roubo de proporções gigantescas da nossa privacidade e da
nossa intimidade pelos novos robber-barons Google, Facebook, Amazon
ou Alibaba, a indiferença grotesca pelo sofrimento de imigrantes e refugiados
mortos no mar, na selva, no deserto ou depositados em campos de concentração,
como se Auschwitz fosse apenas uma memória cruel, hoje superada pela vitória do
bem sobre o mal.
As forças políticas de direita,
que sempre se alimentaram do envelhecimento do mundo, clamam assustadas contra
o que designam como desaforo, como se não fosse desaforo tudo o que levou os
novos jovens e os novos velhos a decidir virem para a rua desenvelhecer. As
mesmas forças argumentam que não há propostas, ou seja, repetições, as únicas
novidades que reconhecem. Mas a verdade é que há propostas. Da Índia ao Chile,
as forças repressivas e os partidos políticos confrontam-se com a indignação
dos desenvelhecidos contra a letra morta de tanta constituição. Confrontam-se
com propostas de assembleias constituintes populares plurinacionais.
Confrontam-se com propostas de transportes públicos eficientes e gratuitos como
exercício da economia de cuidado para com a natureza. Mas confrontam-se,
sobretudo, com a celebração da diversidade nacional, cultural, religiosa,
sexual, com a procura de zonas libertadas de capitalismo, colonialismo e
patriarcado, com a busca de formas de economia comunitária camponesa, indígena,
familiar, feminista, cooperativa.
Na medida em que o mundo
desenvelhecer, os poderes que produziram o envelhecimento do mundo e fizeram
dele a indústria da sua eternização vão ser cada vez mais confrontados com o
desaforo causado pelo seu desaforo. Irão envelhecer?
* Doutorado em Sociologia do
Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa.
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