sexta-feira, 13 de março de 2020

África e o mundo não podem desistir da Guiné-Bissau


João Melo | Diário de Notícias | opinião

A atual situação na Guiné-Bissau deve-se, em parte, a um aparente cansaço da comunidade internacional, a começar pelo continente africano, em relação à persistência do impasse histórico e político naquele pequeno país de língua portuguesa na África Ocidental. Mas, quando se trata da legitimidade dos processos democráticos, não pode haver cansaço: é imperioso insistir que os mesmos têm de fundar-se na força da lei e do direito.

A verdade é que a pressa com que alguns países importantes - incluindo a maior potência mundial - reconheceram o presidente anunciado pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) da Guiné-Bissau quando o processo estava sub judice, encorajou algumas forças a pensar que agora, diante do recurso apresentado por um dos concorrentes, podem lançar mão de todos os meios para impor um resultado que, hipoteticamente, pode ter acontecido - o PAIGC garante que não -, mas ainda não está devidamente apurado, tal como recomendou o Tribunal Supremo bissau - guineense.

Nesse sentido, os países membros da CEDEAO e da CPLP - as duas mais importantes organizações internacionais de que a Guiné-Bissau faz parte - também não estiveram bem, inicialmente, na fotografia.

A avaliar, entretanto, pelas informações mais recentes, parece que alguns dos países e organizações que se apressaram a reconhecer os resultados das últimas eleições presidenciais na Guiné-Bissau quando o recurso do PAIGC estava a ser analisado estão atualmente a reconsiderar as suas decisões, adotando, pelo menos, posições mais cautelosas. Fazem bem, porque o que está em jogo neste caso é muito mais do que o mero (?) resultado eleitoral num pequeno e supostamente "inviável" país.

Recentemente, estive num encontro internacional onde conversei muito com vários intelectuais da Guiné-Bissau e Cabo Verde sobre a situação atual no país de Amílcar Cabral. As estórias - algumas aterradoras - que ouvi dão um livro ou mais. Aliás, um deles revelou estar a escrever um romance que inclui algumas das figuras que estão hoje no epicentro da crise guineense. Saber, por exemplo, que certos políticos guineenses hoje no ativo pertencem a famílias ligadas no passado ao colonialismo português, as quais estiveram envolvidas na traição cometida contra o antigo líder do PAIGC, explica muita coisa da realidade atual. Aguardemos, pois, os romances que estão a ser escritos.

A crise da Guiné-Bissau tem também, naturalmente, explicações mais recentes. Uma delas, talvez estrutural, é de natureza jurídico-constitucional: a relação conflituosa entre o Presidente da República, o governo e o parlamento, pelo menos desde o consulado de José Mário Vaz. A mesma remete-nos para uma discussão renitente, a saber, qual o modelo ideal para o continente africano é o semiparlamentar ou o presidencial? A experiência dos países afro - francófonos, mas não só (os casos da Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe são muito similares), caracterizada pela instabilidade crónica, parece aconselhar a segunda resposta.

Outras circunstâncias são conjunturais, mas igualmente determinantes. Com efeito, é impossível ignorar também a perniciosa influência do tráfico internacional de drogas, as ambições regionais do Senegal, a expansão do Islão radical e a consequente ameaça do terrorismo. Fatores que a diplomacia e a imprensa, talvez cansadas de lidar com um estado cuja instabilidade parece eterna, claramente descuraram, pelo menos nas primeiras semanas após as eleições presidenciais naquele país.

E, no entanto, a situação parece simples: foram feitas eleições, os resultados proclamados foram contestados por um dos concorrentes, a quem o Tribunal Supremo deu razão, ordenando o apuramento eleitoral "ab initio", decisão que, até agora, não foi respeitada pela Comissão Nacional de Eleições. Os apoiantes do candidato declarado vencedor pela CNE defendem que isso não obriga esta última a proceder à recontagem dos votos, pois tal não está previsto na legislação guineense. Sim, é verdade que esse procedimento não está legalmente previsto, mas também não está proibido. Aliás, pergunta-se: como proceder ao apuramento "ab initio" sem recontagem dos votos?

A rigor, não parece possível ultrapassar verdadeiramente o atual impasse eleitoral na Guiné-Bissau sem a recontagem dos votos. África e o mundo não devem, pois, hesitar: o seu dever é condenar sem ambiguidade a tentativa de resolver a presente crise pela força das armas e pressionar todos os atores locais a acatarem a decisão do tribunal e a aceitarem os resultados finais, apurados após a recontagem.

O país de Amílcar Cabral merece-o.

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