Ao lado de dois realizadores
audiovisuais brasileiros, Boaventura entra na polémica sobre a série de TV.
Eles sustentam: Padilha não pode dirigir a obra; e está na hora de a esquerda
afastar-se efetivamente do racismo estrutural
Boaventura
Santos, Luis Lomenha e Scarlett Rocha | Outras Palavras
Marielle Franco sacrificou a sua
vida pela luta contra o racismo, o sexismo, a injustiça social e a captura do
Estado pelo crime organizado. A nobreza e a coragem da sua luta impressionaram
todos os que a conheceram, independentemente de posições políticas, e o seu
bárbaro assassinato abalou o mundo. Infelizmente, este não foi o seu último
sacrifício. Logo depois da sua morte assistimos ao espetáculo macabro de uma
investigação criminal que quase investiga, que quase sabe
quem a matou e mandou matar, que quase se dispõe a formular acusações
e a julgar, mas cujo quase parece não terminar nunca. Este tem sido
um novo sacrifício de Marielle. E se tal não bastasse, outro sacrifício parece
estar em curso. O novíssimo sacrificio de Marielle é a utilização do seu nome e
da sua nobre luta para fins de promoção mediática e comercial que,
independentemente das intenções de quem a promove, atraiçoam objetivamente os
símbolos e os fins da sua luta. Marielle corre assim o risco que correu outro
grande revolucionário antes dela, Che Guevara, cujo sacrifício se trivializou
em decoração de camisetas ou em nome de bares turísticos.
Na semana passada, a roteirista e
escritora Antônia Pellegrino, conhecida por sua trajetória dedicada ao
feminismo e ao pensamento de esquerda, envolveu-se numa forte polêmica nas
redes sociais. Militantes e artistas negros questionaram a escolha do cineasta
José Padilha para dirigir uma série sobre a vida de Marielle Franco produzida
por Pellegrino e contratada pela TV Globo. Como sabemos, tudo indica que
Marielle foi assassinada pelas milícias do Rio de Janeiro dois anos atrás.
Padilha é diretor de Tropa de Elite, o filme que glamorizou o BOPE
(Batalhão de Operações Especiais) considerada a polícia mais letal do mundo. O
cineasta também dirigiu a série Mecanismo da Netflix, que converteu o
juiz-político Sérgio Moro em herói nacional e a quem o próprio Padilha apelidou
de “Samurai Ronin” em alusão a um lutador do Japão feudal que não possuía um
mestre. Logo após Moro aceitar o cargo de ministro da Justiça no governo de
Jair Bolsonaro, Padilha arrependeu-se e escreveu um artigo declarando o seu
arrependimento. Aparentemente, o arrependimento foi tão sincero e impressionou
de tal modo Antônia Pellegrino que tal bastou para que a roteirista de esquerda
superasse algum acanhamento em unir-se a um diretor de direita na realização da
série sobre uma lutadora que procurou reinventar a esquerda para que ela não se
confundisse facilmente com a direita.
Questionada sobre a ausência de
uma profissional negra ou de um profissional negro na direção, Antônia disse
que o racismo estrutural brasileiro impediu o nascimento de um Spike Lee ou uma
Ava DuVernay, diretores norte-americanos negros muito conhecidos. A autora de Tim
Maia: Vale o que Vier foi além disso dizendo que Padilha e Rodrigo
Teixeira, dono da produtora RT Features, são os únicos no Brasil capazes de
fazer a série sobre Marielle ganhar dimensão internacional. Paralelamente, o
diretor se defendeu em artigo na Folha de São Paulo, escrevendo que
foi o ódio de um negro que assassinou o ativista Malcom X, discurso parecido
com o do presidente Bolsonaro quando culpa os negros pela escravidão, afirmando
que, na África, os negros, além de terem escravos, os vendiam aos europeus. O
mesmo tipo de raciocínio levará Padilha a pensar que, de igual modo, os
principais culpados pela morte de um jovem negro a cada 23 minutos no Brasil
são os policiais negros ou os traficantes da mesma raça.
Felizmente, não foi este o
raciocínio de Antônia, para quem a culpa da “ausência” de cineastas negros
reside no racismo estrutural do Brasil. Mas, infelizmente, num primeiro
momento, não retirou deste raciocínio as ilações devidas. Foram o professor
Silvio Almeida e a cineasta Sabrina Fidalgo, ambos negros, que o fizeram.
Silvio Almeida afirmou em um dos seus vários “tweets”: “Ao tomar consciência da
dimensão estrutural do racismo, a responsabilidade dos indivíduos e das
instituições aumenta e não diminui. Agora, cada um vai ter que pensar qual o
seu papel na reprodução de uma sociedade racista”. Por sua vez, Sabrina
Fidalgo, num tom ainda mais contundente, afirmou em blog da Folha de São
Paulo: “O oportunismo e a ganância na corrida de “quem leva mais” com a
tragédia da vereadora carioca chegaram em seu nível máximo de crueldade;
Marielle, nessa história toda, está sendo executada pela segunda vez”.
Perante isto, saudamos
calorosamente a mais recente declaração de arrependimento de Antônia Pellegrino
que em sua mensagem de facebook de 11 de Março afirma: “Após o choque inicial,
veio a decepção. A decepção comigo mesma. Como eu pude dizer uma frase tão
estúpida? Hoje, vejo que a resposta é simples: como muitas pessoas brancas
progressistas e antirracistas, tive a certeza de que minhas intenções eram tão
boas que jamais seriam questionadas neste âmbito. Novamente, peço perdão pela
desastrosa declaração… Este é um projeto que, desde o primeiro momento, é
fundamentalmente comprometido com a luta por justiça por Marielle Franco. São
dois anos sem resposta para a pergunta: quem mandou matar Marielle? E contar
sua saga, na atual conjuntura, dando máxima visibilidade à história desta
heroína brasileira e à sua execução brutal é uma forma de manter o apelo social
do caso. Entendo e respeito quem discorde, mas este foi meu compromisso com a
família de Marielle. Como produtora executiva e idealizadora da série de
Marielle, gostaria de reiterar que nossa intenção sempre foi ter uma equipe
diversa, com negros e mulheres na liderança do processo criativo.”
Não se pode ser mais veemente em
formular um rebate de consciência. Mas as ilações que dele decorrem são agora
tão evidentes que certamente não escaparão a Pellegrino. Distinguimos quatro
ilações principais.
A primeira ilação é sobre o
próprio rebate de consciência. Nas sociedades racistas, o arrependimento, por
mais sincero, é sempre uma segunda posição. A primeira é a ditada pelo senso
comum racista. Nos dias de hoje, o pior racismo é o daqueles que não se
consideram racistas. Aceitam a existência do racismo como um dado inelutável
pelo qual a sociedade em abstrato é responsável e que, por isso, lutar contra
ele nunca é uma responsabilidade pessoal. Implicitamente, admite-se que, tal
como não há hoje cineastas negros capazes de um empreendimento digno de uma vasta
audiência dominada pela sociedade branca, tão pouco os haverá daqui a cinquenta
ou cem anos.
A segunda ilação é que a suposta
“ausência” de cineastas brasileiros negros é o produto do que um de nós designa
por uma “sociologia das ausências”. Trata-se da invisibilidade e da ocultação
dos cineastas negros realmente existentes e que resistem numa luta, tantas
vezes frustrante, por uma oportunidade para mostrar a públicos mais amplos as
suas capacidades há muito demonstradas em escalas menores ou em contextos
marginais porque marginalizados pela sociedade branca. As escolas populares de
audiovisual começaram nas periferias de todo o Brasil no início do século XXI.
Passaram 20 anos e os profissionais que são fruto destas iniciativas já estão
no mercado fazendo filmes e séries, e conquistando prêmios nacionais e
internacionais. É o racismo que os torna invisíveis.
Aliás, o racismo não é monopólio
das grandes emissoras de TV e plataformas de streaming, que não têm negros nos
seus quadros executivos, não contratam profissionais de roteiro e direção
negros e também não fazem contratos com produtoras de propriedade de negros. O
racismo está igualmente muito presente entre pequenos produtores independentes,
pessoas de direita e esquerda que tentam a todo custo proteger o pouco espaço
que têm. É o racismo que explica os dados estatísticos da ANCINE – Agência
Nacional do Cinema num estudo sobre “diversidade de gênero e raça no
audiovisual” divulgado em 2016. Tendo como base os 142 longas-metragens
brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição nesse ano, os homens
brancos dirigiram 75,4% dos longas. As mulheres brancas assinam a direção de
19,7% dos filmes, enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros.
Nenhum filme em 2016 foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra.
A terceira ilação é que José
Padilha não deve dirigir a série sobre Marielle Franco. Independentemente das
intenções dele e da Antônia Pellegrino, se o fizer, isso constituirá
objetivamente uma ofensa à memória de Marielle. Constituirá certamente uma
humilhação para os cineastas e roteiristas negros. Assistirão mais uma vez a
que as suas histórias sejam contadas por profissionais brancos, participarão de
movimentos e manifestações que não os contemplam, tentarão ser parte de
associações empresariais, associações individuais e sindicatos, sem que isso se
traduza na aprovação dos seus projetos ou no aumento de recursos das suas
produtoras. O seu esforço, a sua história, as suas vidas, o seu empenho e
dedicação, em vez de contribuírem para a sua visibilidade e promoção,
contribuirão para aumentar o abismo que os separa dos profissionais brancos no
audiovisual brasileiro.
Mas a direção de Padilha
constituirá ainda maior humilhação para toda a população negra brasileira – e
não esqueçamos, a maioria da população brasileira – que mais uma vez verá a sua
história e as suas lutas contadas por brancos, ou seja, por aqueles e aquelas
que, se não participam ativamente na opressão das populações negras, pelo menos
se beneficiam dela. Será mais um caso da história dos vencidos contada pelos
vencedores da história.
A quarta ilação, de caráter mais
político, é que, sempre que incorrem em iniciativas objetivamente racistas, os
ativistas de esquerda contribuem para aprofundar a convicção comum entre a
população negra de que a esquerda e a direita comungam do mesmo preconceito
racista. A filósofa Sueli Carneiro afirma em modo polêmico: “Eu, entre esquerda
e direita, continuo sendo preta”. Nas periferias brasileiras é comum ouvir-se o
seguinte comentário sobre as diferenças entre esquerda e direita: “muda quem
bate, não quem apanha”. E a quem se espante do pouco apego à democracia por
parte da população negra e pobre convirá perguntar se se dão conta de que muita
dessa população vive numa sociedade democrática mas não tem condições para
viver democraticamente, ou seja, para sentir o valor da democracia na pele do
seu quotidiano.
Quando, depois do ataque
terrorista às Torres Gêmeas de Nova Iorque, perguntaram a BB King, o grande
cantor de blues negro norte-americano o que ele pensava do fato de daí em
diante a sociedade americana ter de viver com a ameaça constante do terrorismo,
ele respondeu com uma verdade de cortante lucidez: “mas eu, como negro, sempre
vivi debaixo de terror”.
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