Carlos Morais José | Hoje Macau |
opinião
Cada infectado é meu irmão. Bro’,
sis’, brother, wathever… Je suis infectado! Estou convosco por condição. Há
muito que estou doente, profundamente doente de um sem-número de maleitas
inomináveis mas que, sem pudor, tenho transmitido aos incautos. Sim, aos incautos
com quem não me abstenho de conviver. Socializo, vou a reuniões, frequento
festas, deslizo pelas ruas, entro em cafés, almoço em restaurantes, chego-me às
pessoas. Aí, nesses lugares plenos de humanos indefesos, tusso, contido,
aforismos; espirro orações pagãs; verbalizo blasfémias e espero pelo resultado.
Sim: tenho contagiado muita gente, uns meros inocentes que passavam, outros
claramente culpados que só esperavam por um momento qualquer para dirimir a
culpa. Passei a doença à minha filha; peguei-a à minha mulher. E isto, como
devem imaginar, foi de menos. O pior devia estar para vir.
Entretanto, enquanto nada se
passava, num dia sem chuva, sem sol ou presságio de nevoeiro, chegou um
coronavírus, vulgo covid-19, criando uma série de mal-entendidos. É que a
doença já cá estava, em nós morava e sem pagar a renda. Também não era uma
prenda que nos tenha sido ofertada. Não: era o azeite, era a banha, a manteiga;
era o óleo de girassol, de amendoim, de canola: o que vinha ao de cima, depois
de muito espremido e destilado o coração.
E foi preciso uma epidemia para
que essa nossa gordura, a nossa gordurosa verdade emergisse, na tona manhosa
das noites ou à superfície rançosa dos dias, consoante os horários de cada um.
Há muito tempo que estamos
infectados. A doença não é nova: temo-la há muito, repito. Possuímo-la.
Acarinhamo-la, como a tudo o que é nosso e, provavelmente, com dificuldade
viveríamos sem ela. Fazemos amor com essa doença quando cuidamos ninguém estar
a olhar. Não haver câmaras.
Pois cada um de nós é um
infectado e, nessa estranha medida, constitui um perigo para o outro. Graças ao
covid-19, finalmente assumimos: usamos máscaras, luvas, óculos protectores e
evitamos mãos, lábios, faces, corpos alheios. Fico com o Ti digital, ok? E tu
com o Mim. Para quê a proximidade, afinal? Temos o cabo e temos a net, temos o
flix. O uber e o eats.
O outro no seu lugar: na
distância física: onde deve estar. Compro sem tocar. Pago sem papel. Exijo a
desinfecção. As gentes limpas. Médicos orgânicos. Amigas biológicas. Menos não
será suficiente. E as empresas que o asseguram e o garantem digitalmente por
escrito. Enviam para o email. Depois desparecem e cada negócio é coisa de uma
noite: mágica. Volta a doença.
Não: não se trata de uma doença nova.
Nós temos a doença: cada ser humano está infectado e é fatal para o outro.
Perdi o que tornava suportável a tua companhia, o que me garantia ser capaz de
realmente te aturar, de te olhar, de te ouvir, de realmente te tocar, de te
conhecer (meu deus, que seca!)!…, como se realmente existisses. Lembro-me… mas
como parece distante… coisa de outras eras… de outras gentes, assim tipo
Neardanthal ou Cro-Magnon… Antigo Regime ou Pós-II Guerra, gentes do passado,
habituadas a bizarros costumes…
Estamos fechados em casa. Onde se
está bem. Supermercamos e regressamos como se de Tróia viéramos: cansados. Mas
não vimos de lado nenhum. Nenhum lugar há para ir. Mas ainda a precisar de
reconstruir arquétipos, continuar a peça, representar qualquer coisa: um papel
tíbio, que não perturbe, não contagie, mas ainda assim presente como um
fantasma ousa estar presente numa mente temerosa e oca. A obrigação de fazer
qualquer coisa. E a nossa casa é igual à casa seguinte e passasse mais ou menos
a mesma coisa, mais net e menos flix, mais face e menos book (pouco importa),
sem que saiba se isso efectivamente me irrita ou, pelo contrário, me conforta.
Uso máscara. Sempre usei, só que
ninguém dava por isso. Agora uso duas. Agora é importante saber que se está
infectado. Ter consciência aguda do seu próprio estado. Compreender o mal que
se pode passar aos outros. Ser o impaciente zero. Onde me pode levar tamanha
ousadia?… Por vezes vou ao restaurante… arrisco. Doutras não sei o que fazer
porque qualquer acção me parece inútil, pré-programada, como um destino perante
o qual não sobra sequer a vontade de ser espectador. A vontade de tão diluída:
fantasma.
O mundo sem os outros não
interessa. Com eles também não. É o que a doença nos ensina. Não é de agora.
Nem do vírus coroado rex. Seria bom, seria útil, será impossível: talvez uma peste,
um dia, nos faça cair a máscara. A nós: os infectados.
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