Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
Em entrevista ao Observador,
o deputado do Chega demonstra não saber explicar o programa do partido, ter
mentido sobre a exclusividade e ser um exemplo anedótico de promiscuidade ao
manter vínculo à Inspeção Tributária enquanto ganha dinheiro a ajudar privados
a pagar menos impostos. Vergonha mesmo.
Há quem ache que não vale a pena
apontar as incoerências e as desonestidades de André Ventura, que é tempo
perdido porque, alegadamente, a sua base de apoio não quer saber. E não há
dúvida de que o próprio pensa assim.
Tal fica claro na entrevista que
a Rádio Observador lhe fez esta semana, e à qual eu daria, sem hesitar, um
prémio de jornalismo - com menção honrosa para a capacidade dos dois
entrevistadores, Rita Tavares e Miguel Pinheiro, de não rebentarem a rir ou
darem um berro ao entrevistado pela forma pueril e patética, como um petiz
apanhado em falta, com que tenta fugir às perguntas.
A sua prestação arrasa o mito do
Ventura imbatível - aqui, não podendo falar por cima, como faz nos debates
televisivos, exibe o desmazelo e a pobreza da sua retórica, além de uma quase
inacreditável ignorância.
Mas o mais impressionante é mesmo
o descaramento: já o tínhamos visto anunciar
"uma clarificação inversa" do programa com que se candidatou
quando percebeu que acabar com o SNS e a escola pública não caía bem no eleitorado;
na entrevista vemo-lo simultaneamente negar ter falado dessa "clarificação
inversa" e que algumas das propostas mais ridículas, como a de o Estado
oferecer os estabelecimentos escolares "a quem os quiser" (quem
pagaria aos professores, acautelaria a qualidade do ensino ou garantiria o
acesso de todas as crianças não interessa), estejam sequer no programa.
Mas estão, claro. Como está no Manifesto Político do Chega que os deputados têm de o
ser em exclusividade e numa entrevista de
Ventura, três dias antes das eleições, essa promessa solene: "Vou dar
o exemplo comigo próprio, mantendo a exclusividade no parlamento. Mesmo
perdendo dinheiro. (...) Vou assumir unicamente o meu lugar na Assembleia da
República, se os portugueses me derem essa confiança, porque tenho de dar o
exemplo, não pode ser só falar."
Mas "só falar" é mesmo
o que André Ventura faz. E o exemplo que dá é o que antecipou na mesma
entrevista: "Isto é tudo o que as pessoas não gostam nos políticos.
(...) Eu dizia-lhe agora 'Não, acho que os deputados têm de estar em
exclusividade.' Mas era eleito deputado e daqui a duas semanas vinha aqui ao
programa, perguntava-me o que eu estava a fazer e eu 'estou na Assembleia da
República, estou na universidade A e B, sou consultor aqui e ali, mas olhe, eu
sou contra estas coisas... percebe?'"
Se se percebe. Ventura
mantém duas atividades remuneradas extraparlamento, o comentariado no grupo
Cofina e a menos ostensiva consultoria na empresa Finpartner, que se dedica ao
planeamento fiscal (ou seja, ajuda os seus clientes a pagar menos impostos).
Para justificar a contradição,
usa ante o Observador quatro argumentos extraordinários: não
concordar com o partido; ter dito logo nos dias seguintes à entrevista (ou
seja, a seguir às eleições) que ia manter-se na Cofina; sair mais barato ao
erário público porque os deputados em exclusividade ganham mais (a diferença
são 10% do salário); que na empresa de consultoria, com a qual de acordo com o
registo no parlamento trabalha desde 2019, "tem projetos em mãos que só
acabam em junho". Quando um dos entrevistadores lhe pergunta se já
não sabia disso, dos tais projetos até junho de 2020, quando prometeu
exclusividade, não responde. Compreende-se: mesmo para Ventura, apesar da
confiança que tem no apoio acrítico dos seus apaniguados, dizer "olhe,
menti" é capaz de ser de mais.
Mas esta acumulação levanta mais
questões que apenas - como fosse pouco - a da mentira.
Nesta quinta-feira, a deputada do
BE Mariana Mortágua acusou, no parlamento, Ventura de conflito de interesses: "O senhor deputado, que
vem aqui hoje falar sobre planeamento fiscal e combate ao planeamento fiscal,
presta serviços remunerados enquanto é deputado a uma empresa cujo trabalho é
permitir que empresas fujam ao fisco e paguem menos impostos."
Respondendo "em defesa da
honra", o deputado do Chega (que acabaria por faltar à votação das medidas
no dia seguinte) não desmentiu que planeamento fiscal seja exatamente aquilo a
que se dedica na sua colaboração com a empresa - colaboração que, por acaso,
não se encontra na secção "Conheça
o André Ventura" no site do partido. Esta admissão
implícita, porém, colide gravemente com uma informação que Ventura dá na
entrevista ao Observador: é ainda inspetor tributário, ou seja,
mantém o vínculo à Autoridade Tributária, onde entrou em 2011.
À pergunta "ainda tem
vínculo?", responde: "Sim. Estou de licença sem vencimento." E a
"admite voltar a esta máquina?" (no programa do Chega a administração
tributária é "uma máquina de assalto ao cidadão e de terrorismo de Estado,
que pratica extorsão"), a resposta é de novo afirmativa: "Sim."
E acrescenta, com visível orgulho: "Aliás cheguei a estar numa lista para
subdiretor da unidade dos grandes devedores."
Num país no qual regularmente se
denunciam, e bem, as portas giratórias e a promiscuidade entre administração
pública e setor privado, reguladores e regulados, e se clama por mais imposição
de incompatibilidades e períodos de nojo, o parlamentar que se arvora em grande
moralizador "contra o sistema" acha que não há problema nenhum em
acumular a pertença à Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa com
a consultoria fiscal ao serviço de privados.
Uma acumulação que suscita desde
logo dúvidas de legalidade: um funcionário da Inspeção Tributária pode,
nas palavras de Mortágua, ajudar "privados a fugir ao fisco"? Parece
mesmo daquelas situações feitas à medida para se gritar "vergonha".
É mais desvergonha, porém: vista
daqui, a proposta do Chega de uma flat tax de 15%, que implicaria, no
exemplo dado pelo Observador, a quem aufere 800 euros mensais passar dos
atuais 28% de IRS para 120% (um aumento de 328%), enquanto um salário de 3600
euros, como o de deputado, passaria a descontar 540, metade do que desconta agora,
surge como parte do trabalho de consultoria de planeamento fiscal para os mais
abonados. Mais abonados do que Ventura, na entrevista, descreve como os que
mais trabalham. O que é dizer, frisam e bem os entrevistadores, que o líder do
Chega considera que ganhar pouco se deve a falta de esforço: os pobres são uns
calaceiros.
É pena pois que o Observador não
tenha questionado Ventura - que diz querer os deputados a ganhar menos - sobre
quanto lhe valem os seus esforços fora do parlamento. Para sabermos se temos um
deputado colaborador da Cofina e da Finpartner ou um empregado da Cofina e da
Finpartner que colabora na atividade legislativa.
Teria sido também interessante
perceber como este grande defensor do mérito coaduna a sua defesa do
"emagrecimento do Estado" e a ideia de que "não pode haver
empregos para a vida" (frase que repete várias vezes na entrevista) com a
garantia de que não quer despedir ninguém na função pública e o facto de ele
próprio achar que tem o direito de lá manter o seu lugarzinho.
Não que houvesse alguma
expectativa de o ver responder: a entrevista vale pelo rigor das questões e a
atitude implacável dos entrevistadores face ao espetáculo que é o deputado do
Chega a falar pelos cotovelos nada dizendo enquanto tenta fugir para os seus
assuntos favoritos - ciganos, racismo, pedófilos, crime.
"Já percebi que quer falar
de racismo", diz a dada altura Miguel Pinheiro. "Mas eu gostava era
que respondesse às perguntas. Estamos aqui há horas e não responde."
Na semana em que um dos mais
importantes jornais portugueses completa três décadas (parabéns, Público,
muitos anos de vida), esta demolição de Ventura mostra, a quem quiser ver, para
que serve o jornalismo, o quanto precisamos dele e como nada o pode substituir.
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