quarta-feira, 4 de março de 2020

Profundas desigualdades na distribuição da riqueza


Fernando Marques | AbrilAbril | opinião

Um estudo publicado em 2017 de uma equipa que inclui o economista francês Gabriel Zucman concluiu que o valor colocado em paraísos fiscais equivalia a 10% do PIB mundial.

As desigualdades na distribuição da riqueza são menos conhecidas que as relativas ao rendimento. Devemos no entanto separar «riqueza» de «rendimento», muito embora não sejam realidades estanques. Mostra-o o facto de as pessoas ricas serem também, em geral, pessoas com rendimento elevado.

Mas são realidades diferentes. A riqueza é estatisticamente medida pelos activos que as famílias possuem. Estes activos (ou património) podem ser reais, como casas de habitação, terrenos, objectos de arte, automóveis, etc., incluindo-se também os negócios por conta própria. E podem ser financeiros, como depósitos bancários, acções cotadas, títulos de dívida transacionáveis, etc. Já no rendimento, as categorias mais correntes são os salários e as pensões, embora também abranjam outras fontes, como os subsídios, as rendas e os juros.

No que respeita à divulgação de informação, o foco tem sido posto no rendimento, o que se compreende, pois há menos estatísticas sobre a riqueza. Apesar disso, o INE e o Banco de Portugal (BP) efectuam de três em três anos um Inquérito à Situação Financeira das Famílias (ISFF), o qual, por se enquadrar num projecto europeu, permite a comparabilidade com outros países.

O ISFF teve três edições (2010, 2013 e 2017) estando prevista a realização de um novo inquérito este ano. Este inquérito permite conhecer a evolução da riqueza líquida (isto é, descontada das dívidas), a sua composição e o endividamento, incluindo o serviço da dívida e as restrições no acesso ao crédito.

Permite também conhecer a desigualdade na distribuição da riqueza, bem como compará-la com a do rendimento, aspectos essenciais do ponto de vista deste artigo1.

GRÁFICO

Este quadro espelha a profunda desigualdade na distribuição da riqueza. O topo (os 10% mais ricos) detém mais de metade da riqueza em 2017 e a tendência de concentração acentuou-se relativamente a 2010.

O coeficiente de Gini é menos fácil de interpretar mas é uma medida de concentração que varia entre zero e 100: zero indica uma concentração mínima e 100 uma concentração máxima (por exemplo, uma família possuir toda a riqueza).

A riqueza diminuiu entre 2010 e 2013 devido à crise económica. Nem todos os ricos terão ficados imunes à crise, mas não temos notícia de algum se ter atirado pela janela dos edifícios, como ocorreu nos EUA na crise de 1929. Além de que o valor médio de 162,3 mil euros em 2017 já não está muito distante do verificado em 2010. Mas trata-se de um valor médio: este atinge 876,6 mil euros nos 10% do topo e 0,8 mil euros nos 20% da base.

Os ISFF mostram também que riqueza e rendimento estão associados. Os mais ricos têm mais poupanças e activos mais diversificados, o que lhes permite obter mais rendimentos.
Os activos possuídos variam com as classes de riqueza. Nas famílias menos ricas, o activo real típico é a residência principal enquanto o depósito à ordem constitui o activo financeiro típico. Já nas mais ricas existe maior heterogeneidade.

Quanto à concentração, há dois aspectos a realçar. Primeiro, a riqueza está mais concentrada que o rendimento. Segundo, a riqueza está fortemente concentrada nos 10% do topo. Estes detêm cerca de 30% do valor total das residências principais das famílias, cerca de 70% do valor dos outros imóveis e 90% do valor dos negócios; e possuem 50% dos depósitos a prazo e 80% do total dos activos transacionáveis.

Independentemente do valor destas estatísticas, será que nos contam toda a história? Possivelmente não, se admitirmos que os muitos ricos tendem a esconder a riqueza. Pense-se no recurso a paraísos fiscais. Um estudo publicado em 2017 de uma equipa que inclui o economista francês Gabriel Zucman concluiu que o valor colocado em paraísos fiscais equivalia a 10% do PIB mundial; Portugal surge com um valor relativo, expresso em % do PIB, superior à média global.

Outros dados indicam que cerca de 80% dos valores colocados em paraísos fiscais pertencem aos 0,1% mais ricos. Um estudo recente da Comissão Europeia, abrangendo o período entre 2001 e 2016, conduziu a conclusões consistentes com as de Zucman e indicou ser Portugal o terceiro país da União Europeia com mais riqueza transferida para paraísos fiscais.

Concluindo, é provável que as desigualdades na distribuição da riqueza sejam ainda maiores.

Nota:
1.Usam-se como fontes: INE e BP (2019), «Inquérito à Situação Financeira das Famílias 2017», Destaque do SEN, 13.11.2017; S. Costa, L. Farinha, L. Martins, e R. Mesquita (2020), «Inquérito à Situação Financeira das Famílias: resultados de 2017 e comparação com os resultados das edições anteriores», Banco de Portugal, Revista de Estudos Económicos, 6 (1)

Imagem: politicsofpoverty.oxfamamerica.org

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