Quarentena chinesa contra a
epidemia impactou indústrias, bolsas de valores e comércio em todo o mundo. Ao
mostrar-se frágil, país evidenciou ao Ocidente, ainda racista e desinformado,
sua força e liderança global
Fernanda Ramone | Outras Palavras
Foi preciso a China adoecer, em
passagem para a celebração do Ano Novo, para, aos poucos, surgir a percepção da
elevada temperatura das relações de interdependência financeira, comercial,
tecnológica e social que temos, enquanto países, da China.
A sinofobia manifestou-se, em
primeiro plano, nas preocupações com as cifras, com as bolsas de valores, com
os danos e fissuras monetárias. Seguiram-se críticas à construção de um
hospital colossal em tempo recorde (aos olhos do ocidente acidental), e depois
palpites em relação às medidas de quarentena. Tardou o olhar humano para a
China, a oferta de qualquer apoio de solidariedade, que eventualmente acabou
por surgir, antes que fosse tarde.
A epidemia alastrou-se aos
meandros mais subtis dos desavisados – nem todos percebiam, até então, a
dimensão da presença chinesa no seu quotidiano. A noção foi-se alterando,
passando das camadas dos atingidos pelo “Made in China”, ou seja, todos aqueles
consumidores de componentes, produtos, peças e artefatos que o país produz sem a
tecnologia de ponta, chegando e afetando também os que consomem o “Created in
China”, a produção desenvolvida com tecnologia chinesa e que abastece o mundo –
as montadoras de automóveis, de celulares, de placas solares, as indústrias e
fábricas em geral, que deixaram de conseguir entregar o produto final em função
da paralisação da exportação. Com o país em quarentena, sem conseguir fabricar,
deixaram de importar.
Em Madrid, a ausência da China
levou ao cancelamento da maior feira de exibição de telefonia – sem a presença
do país o cenário se esvaíra. Na Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim, a
indústria cinematográfica evidencia a força da influência da China – 118
empresas chinesas cancelaram a sua presença. E o mesmo aconteceu com a Suécia,
Malásia, Japão, Suíça, Taiwan, Uzbequistão, que também não vão. E não se trata
de ficção.
Realidade: já não se vive sem a
China. Este ímpeto da presença e das conquistas chinesas são essenciais,
ensinam-nos, através da crise, o valor daquilo que é invisível aos olhos. Os
chineses superaram a SARS, em 2003, e estabeleceram-se manifestações de afeto
público como legado – foi após o período de quarentena de inverno a que os
estudantes foram submetidos que desabrocharam pelas ruas da capital de mãos
dadas e beijinhos na face.
Em tempos mais remotos, 1899,
Pequim sofreu com a epidemia de malária. Acreditava-se que a cura podia
acontecer com sopa de pó de osso de dragão, pura mitologia para, na teoria,
sugerir a ingestão de escapulas de boi e de partes internas da casca de
tartaruga. A busca pelos cascos e as escavações levaram à origem das
adivinhações, aos ossos-oráculos, encontrando-se um novo sítio arqueológico na
cidade de Anyang, na província de Henan.
A China ensina, se regenera na
própria tradição, se reinventa, mesmo com uma população de mais de um bilião.
Os ossos-oráculos do século XXI provavelmente trarão uma nova concepção em
relação ao modo como nos passaremos a relacionar com este país.
Os métodos, percalços e desafios
que a própria nação terá de enfrentar em relação a questões como a disseminação
de dados, de informações na conjuntura nacional e internacional, de modo a
amadurecer e assumir o seu papel de protagonismo nesta Era de maior influência
oriental, são fundamentais.
É fundamental a construção da sua
imagem no século XXI, condizente com a sua autoprojeção de liderança, de
Império do Meio, entretanto saindo da centralidade. A China precisa assumir o
seu protagonismo e os seus desafios. Sim, a China, esse país milenar, habituado
a caminhar o caminho do meio – LaoZi – 老子,
filósofo, velho mestre, cuja premissa filosófica estabelece a sua virtude,
através de sua manifestação de mundo na via do mundo do que há de mais profundo
na realidade.
Em miúdos, o país e sua população
tinha a consciência histórica e um profundo sentimento nacionalista o
descompasso se dava na comunicação, no expressar deste patriotismo desmedido ao
mundo cá de fora.
Os chineses partem da premissa de
que também os outros conheçam a grandeza do seu legado. Há ainda as próprias
adaptações geracionais, ou seja, para aos antigos prevalece o comportamento ou
a postura de modéstia diante da sabedoria, do conhecimento, a cultura do 哪里 哪里( nălı nălí –
resposta que se dá quando se recebe um elogio, por exemplo, e que traduzido à
letra pode significar “é muito generoso da sua parte”). Já os millenialls,
o contrário, a exacerbação das próprias qualidades, a autopromoção, o dizer
muito, a eloquência.
Para ser acolhida, a China
precisa de ser entendida nos momentos de crise e de fragilidade. Se isso não
acontecer, continuaremos a ampliar a distância, a não compreensão. Não se trata
de uma leitura simples, em especial tendo em conta a ainda muito presente
supremacia das ideias e formação intelectual, artística, académica europeias e
anglosaxónicas.
O sinofuturismo, esse movimento
de compreender e reconhecer a presença da China como país de liderança e que
dita as direções no cenário internacional atual, se aproxima latente e
presente, impactando nas redes – redes de pessoas, redes sociais, de
relacionamentos e transações transnacionais. A impactar e pontuar também em nós
está o modo de operar chinês neste nosso tempo, nesta segunda fase da revolução
tecnológica.
A quarentena chinesa é um tempo
de repouso para que o mundo consiga respirar e se alinhar com o que já é a
realidade no país. É curioso que tenham precisado de se mascarar para assim
fazer o mundo notar o tamanho da intoxicação em pejorativos, em manifestações
de racismo (oriental) e em antigos e ultrapassados achismos a que o ocidente se
habitou a acreditar. A China é uma potência mundial, mas foi preciso mostrar-se
frágil para evidenciar a sua força.
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