terça-feira, 3 de março de 2020

Sinofobia, ou o medo ocidental de encarar a China


Quarentena chinesa contra a epidemia impactou indústrias, bolsas de valores e comércio em todo o mundo. Ao mostrar-se frágil, país evidenciou ao Ocidente, ainda racista e desinformado, sua força e liderança global

Fernanda Ramone | Outras Palavras

Foi preciso a China adoecer, em passagem para a celebração do Ano Novo, para, aos poucos, surgir a percepção da elevada temperatura das relações de interdependência financeira, comercial, tecnológica e social que temos, enquanto países, da China.

A sinofobia manifestou-se, em primeiro plano, nas preocupações com as cifras, com as bolsas de valores, com os danos e fissuras monetárias. Seguiram-se críticas à construção de um hospital colossal em tempo recorde (aos olhos do ocidente acidental), e depois palpites em relação às medidas de quarentena. Tardou o olhar humano para a China, a oferta de qualquer apoio de solidariedade, que eventualmente acabou por surgir, antes que fosse tarde.

A epidemia alastrou-se aos meandros mais subtis dos desavisados – nem todos percebiam, até então, a dimensão da presença chinesa no seu quotidiano. A noção foi-se alterando, passando das camadas dos atingidos pelo “Made in China”, ou seja, todos aqueles consumidores de componentes, produtos, peças e artefatos que o país produz sem a tecnologia de ponta, chegando e afetando também os que consomem o “Created in China”, a produção desenvolvida com tecnologia chinesa e que abastece o mundo – as montadoras de automóveis, de celulares, de placas solares, as indústrias e fábricas em geral, que deixaram de conseguir entregar o produto final em função da paralisação da exportação. Com o país em quarentena, sem conseguir fabricar, deixaram de importar.

Em Madrid, a ausência da China levou ao cancelamento da maior feira de exibição de telefonia – sem a presença do país o cenário se esvaíra. Na Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim, a indústria cinematográfica evidencia a força da influência da China – 118 empresas chinesas cancelaram a sua presença. E o mesmo aconteceu com a Suécia, Malásia, Japão, Suíça, Taiwan, Uzbequistão, que também não vão. E não se trata de ficção.

Realidade: já não se vive sem a China. Este ímpeto da presença e das conquistas chinesas são essenciais, ensinam-nos, através da crise, o valor daquilo que é invisível aos olhos. Os chineses superaram a SARS, em 2003, e estabeleceram-se manifestações de afeto público como legado – foi após o período de quarentena de inverno a que os estudantes foram submetidos que desabrocharam pelas ruas da capital de mãos dadas e beijinhos na face.


Em tempos mais remotos, 1899, Pequim sofreu com a epidemia de malária. Acreditava-se que a cura podia acontecer com sopa de pó de osso de dragão, pura mitologia para, na teoria, sugerir a ingestão de escapulas de boi e de partes internas da casca de tartaruga. A busca pelos cascos e as escavações levaram à origem das adivinhações, aos ossos-oráculos, encontrando-se um novo sítio arqueológico na cidade de Anyang, na província de Henan.

A China ensina, se regenera na própria tradição, se reinventa, mesmo com uma população de mais de um bilião. Os ossos-oráculos do século XXI provavelmente trarão uma nova concepção em relação ao modo como nos passaremos a relacionar com este país.

Os métodos, percalços e desafios que a própria nação terá de enfrentar em relação a questões como a disseminação de dados, de informações na conjuntura nacional e internacional, de modo a amadurecer e assumir o seu papel de protagonismo nesta Era de maior influência oriental, são fundamentais.

É fundamental a construção da sua imagem no século XXI, condizente com a sua autoprojeção de liderança, de Império do Meio, entretanto saindo da centralidade. A China precisa assumir o seu protagonismo e os seus desafios. Sim, a China, esse país milenar, habituado a caminhar o caminho do meio  – LaoZi – 老子, filósofo, velho mestre, cuja premissa filosófica estabelece a sua virtude, através de sua manifestação de mundo na via do mundo do que há de mais profundo na realidade.

Em miúdos, o país e sua população tinha a consciência histórica e um profundo sentimento nacionalista o descompasso se dava na comunicação, no expressar deste patriotismo desmedido ao mundo cá de fora.

Os chineses partem da premissa de que também os outros conheçam a grandeza do seu legado. Há ainda as próprias adaptações geracionais, ou seja, para aos antigos prevalece o comportamento ou a postura de modéstia diante da sabedoria, do conhecimento, a cultura do 哪里 哪里( nălı nălí – resposta que se dá quando se recebe um elogio, por exemplo, e que traduzido à letra pode significar “é muito generoso da sua parte”). Já os millenialls, o contrário, a exacerbação das próprias qualidades, a autopromoção, o dizer muito, a eloquência.

Para ser acolhida, a China precisa de ser entendida nos momentos de crise e de fragilidade. Se isso não acontecer, continuaremos a ampliar a distância, a não compreensão. Não se trata de uma leitura simples, em especial tendo em conta a ainda muito presente supremacia das ideias e formação intelectual, artística, académica europeias e anglosaxónicas.

O sinofuturismo, esse movimento de compreender e reconhecer a presença da China como país de liderança e que dita as direções no cenário internacional atual, se aproxima latente e presente, impactando nas redes – redes de pessoas, redes sociais, de relacionamentos e transações transnacionais. A impactar e pontuar também em nós está o modo de operar chinês neste nosso tempo, nesta segunda fase da revolução tecnológica.

A quarentena chinesa é um tempo de repouso para que o mundo consiga respirar e se alinhar com o que já é a realidade no país. É curioso que tenham precisado de se mascarar para assim fazer o mundo notar o tamanho da intoxicação em pejorativos, em manifestações de racismo (oriental) e em antigos e ultrapassados achismos a que o ocidente se habitou a acreditar. A China é uma potência mundial, mas foi preciso mostrar-se frágil para evidenciar a sua força.

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