domingo, 8 de março de 2020

Venezuela | CANDENTE MEMÓRIA DE VARGAS -- Martinho Júnior


Martinho Júnior, Luanda 

01- A 5 de Março de 2018, na deslocação que fiz à Venezuela num inesperado convite da República Bolivariana, tive a oportunidade de integrar a coluna de progressistas de todo o mundo que visitou o pequeno estado de Vargas (1496 km2), onde se assistiu a um dos actos que assinalaram então o 5º aniversário do desaparecimento físico do heroico Comandante Hugo Chávez, há precisamente 2 anos…

Naquele dia, de acordo com o programa, várias caravanas de visitantes saíram pela manhã cedo do Hotel Gran Mellia Caracas em díspares direcções, Caracas, Miranda e Vargas, a fim de assistir em suas emblemáticas praças evocativas a Simon Bolivar e a Hugo Chávez, aos actos memoriais das figuras mais determinantes para a emergência de toda a humanidade no dealbar do século XXI.

Amanheceu chuvoso aquele dia, a chuva inscrita na estação húmida de Março, mas o que ia no mais recôndito da alma de cada um, de cada um proveniente dos mais díspares lugares de todo o mundo, era uma perene chama, suave e alentadora, que além da história nos elevava até ao patamar secreto da própria vida, no que de mais sensível e colectivo ela poderia protagonizar num caudal sagrado de confluentes emoções!...

02- Desde Caracas pela autoestrada, rapidamente o autocarro alcançou Maiquetia, virou para oeste, à esquerda e alcançou Catia la Mar, estacionando num lugar reservado da placa do moderno terminal rodoviário recém-inaugurado.

Os visitantes desembarcaram e foram conduzidos para dentro da multicolorida gare rodoviária, espaçosa, arejada e luminosa.

Em Catia la Mar, a localidade mais operária, mais povoada e mais formativa nas artes do mar de Vargas, nesse complexo à beira do Caribe, foi o próprio Governador do Estado, o General em Chefe Jorge Luis García Carneiro, que recebeu a caravana dando-nos o abraço de boas vindas, ao som de um pequeno grupo local intérprete de carnaval.

Teve-se aí conhecimento da rota que se iria seguir, percorrendo sucessivamente Catia la Mar, um bairro recém-inaugurado no âmbito da Gran Mision Vivienda Venezuela próximo da cabeceira ocidental das pistas do Aeroporto Internacional Simon Bolivar em Maiquetia (bem visível no Google Earth), a própria localidade de Maiquetia e, seguindo para leste na rota à beira Caribe, finalmente a 4 vezes secular La Guaira!...



03- Em La Guaira, na praça Simon Bolivar, perante as estátuas equestre do Libertador e da figura do Comandante rodeada das bandeiras de todos os países da América Latina e Caribe encimadas pela soberana e altiva bandeira da Venezuela, participei com meus inusitados pares numa das comoventes cerimónias que marcaram aquele dia-memorial!...

As estátuas dão costas ao mar, como se os próceres tivessem desembarcado e olhado resoluta e imediatamente de frente para todo o espaço continental latino-americano a sul, desafiando as montanhas!...

Elas próprias confundem-se com um mar de descobertas mobilizadoras de todas as entidades e nós, tão inesperados quão ignotos forasteiros, sorvíamos a energia que delas se desprendia e se desprendia de todos os bolivarianos presentes e mergulhávamos na vastidão de seu poder solene, visionário e intemporal!

04- Em La Guaira, nessa praça ampla sorvendo entre as brumas o Caribe e o chuvisco que se desprendia desde as montanhas avassaladoras do Ávila, a cerimónia contava com um arraial orlado de formaturas representativas das diversas armas da Força Armada Nacional Bolivariana, com destaque para a Marinha de Guerra que em Vargas tem presença por razões geoestratégicas, em terra e oceano adentro.

A localidade é capital do minúsculo Estado criado em 1998, mas perdeu população após a tragédia que ocorreu nos últimos dias do século XX, quando em finais de Dezembro de 1999 toda a região foi alvo de chuvas diluvianas que se abateram sobre ela e desencadearam torrentes caudalosas e sucessivos desprendimentos de terras que varreram o espaço entre as abruptas montanhas com mais de 2000 metros e a orla costeira imediatamente contígua ao seu sopé norte.

A ampla praça Simon Bolivar fica frente ao terminal de passageiros de La Guaira e imediatamente junto à raiz leste do porto da cidade, o maior complexo portuário da Venezuela, lembrando quanto a longa luta pela liberdade teve que ver, tem que ver num abraço imenso, com o Caribe e com o imenso continente que se dilata a sul!…

O acto contou com discursos das entidades mais representativas, com garbosas honras militares, com a deposição duma bela coroa de flores junto à estátua elevada em pedestal do Comandante Hugo Chávez, numa homenagem simbólica da aliança cívico-militar feita pelo Governador do Estado e pelo Comandante da Marinha de Guerra Bolivariana.

Os visitantes foram disso testemunhos e partícipes e eu, indiferente ao chuvisco, saí do aconchego do arraial e fui tirando as fotos que o momento me impunha num impulso irreverente e não protocolar… sabia que essas fotos iriam ser revistas vezes sem conta, por que a memória é assim mesmo, a continuação das emoções que advêm de tantas experiências do passado, por vezes duras experiências que fluem sobre um lugar como aquele, carregado de vibrante energia, de brumas próximas e longínquas que se misturavam com esbatidas lágrimas e também de subterrânea e silenciada dor!...


05- Em Vargas, em finais de 1999, o Comandante Hugo Chávez ao mesmo tempo que conheceu os resultados do Referendo que levaria o seu Plano Pátria 2000 à execução com ele na Presidência da Venezuela Bolivariana, enfrentou o dilúvio para comandar a aliança cívico-militar na experiência mais traumática que alguma vez teve, inaugurando de forma intempestiva e trágica a nova filosofia e prática do próprio Estado Socialista e Bolivariano que nascia…

… No acto do seu nascimento assistiu-se à dura experiência desse baptismo, perante o inesperado e pungente cataclisma de então!...

A borrasca que se abatia sobre a praça Simon Bolivar de La Guaira a 5 de Março de 2018, decerto que lembrou muitos dos presentes que haviam vivido a tragédia de Vargas em finais de 1999, quando em cerca de 4 dias os deslises de terras e as torrentes impetuosas provenientes das ciclópicas montanhas do Ávila (o curso nordeste da espinha dorsal dos Andes) se abateram sobre bairros pobres e desamparados que se acoitavam nos meandros de verde de suas tão inclinadas encostas…

Jamais se saberá o número de mortos, avaliados entre dez a cinquenta mil, jamais se saberá também ao certo da quantidade de feridos, de desabrigados e de deslocados, acima dos cem mil, mas sabe-se e avalia-se da dura prova que teve a aliança cívico-militar perante uma tão grave emergência e tragédia logo no início do exercício do Comandante Hugo Chávez, ao assumir o poder da emergente Venezuela Bolivariana!

A 5 de Março de 2018, pouco mais de 18 anos após a tragédia, também a ocasião reflectia essa memória inscrita nas montanhas que serviam de fundo azul-escuro, enevoado, brumoso mas imponente, por que ao virar da página, os grandes desafios despertariam desde os primeiros alvores do século XXI!...

Amor, amor intemporal trespassado de história e de humanidade, a que telúricas réplicas nos havemos sempre e sempre que sujeitar!


06- No livro “Hugo Chávez y el destino de un Pueblo – II”, o ilustre biógrafo cubano Germán Sánchez Otero, transporta-nos um pouco para esse clímax radiografado por mim a 5 de Março de 2018 no cenário épico e electrizante de La Guaira, entre tantas e tão difusas brumas, esvanecidas simbioses de matizados azuis e cinzas entre ciclópicas montanhas, a chuva comunicativa e esparsa que fluía indelével e os segredos de fundo que ecoavam tenuemente daquele sobranceiro mar (tradução):

“A poucos quilómetros a norte de Caracas, o Estado de Vargas é a porta principal de entrada e saída do país e o sítio de verão mais comum dos habitantes da capital.

Nele se radicam o maior porto da Venezuela, La Guaira e o mais importante aeroporto internacional, em Maiquetia.

A sua pequena superfície de 1496 km2, é uma estreita franja que limita a norte com o mar e a sul com várias elevações, sobretudo o soberbo Ávila, que tem em média dois mil metros de altitude e se interpõe entre o litoral varguense e Caracas”.


Até 1998 Vargas era um município do distrito capital e nesse ano passa a ser Estado.

A sua população ronda os 350.000 habitantes e existem milhares de vivendas que só estão habitadas em dias de folga.

A maioria dos residentes são pessoas humildes, cujas precárias moradias se localizam nas ladeiras das montanhas em desafio de gravidade.

Devido ao acontecimento, Vargas ficou isolado e a partir de 17 de Dezembro só é possível aceder a ele pelo ar.

Chávez decide instalar o seu estado-maior no aeroporto e mover-se em helicóptero para observar o cenário e repartir ordens pelos destacamentos de resgate e de salvamento.

A sua angústia cresce em cada viagem.

Vê lama por onde quer que vá, dezenas de rios e quebradas transbordantes, milhares de troncos e cadáveres que flutuam em lagos de água doce e em praias tisnadas de castanho, vê pesados contentores de carga marítima que as correntes arrastaram como caixas de fósforo, vê centenas de veículos elevados nos dorsos da autoestrada e nas estradas, alguns deles dobrados em U ao chocarem contra alguma árvore, vê duas urbanizações, Naiguatá e Carmen de Uria, cobertas de lama sobre o teto das casas tal como noutros sítios urbanos…


O aeroporto parece um cenário em plena guerra.

Dezenas de helicópteros trazem a cada instante feridos e outras pessoas salvadas e saem para deixar cair provisões nos lugares onde esperam ser resgatados milhares de vítimas.

Vários salões convertem-se em refúgio e um deles em hospital de emergência, onde se juntam os médicos cubanos que chegam na noite de 17 de Dezembro.

Levantam-se tendas de campanha para albergar militares, polícias e centenas de voluntários civis.

Aviões provenientes do México, de Cuba, dos Estados Unidos, do Brasil, da Argentina e de outros países aterram com pessoal especializado e ajuda humanitária.

Ambulâncias e diversos veículos militares e civis movem-se dia e noite.

Ordena que a brigada de paraquedistas intervenha na zona devastada.

Muito cedo do dia 18 de Dezembro, um milhar de homens com mochilas carregadas de mantimentos, água e medicamentos caem do ar, em todos os lugares da zona este, a mais afectada, com a instrução de salvar vidas e comunicar por rádios os lugares onde se encontram pessoas para serem evacuados pelo ar, terra e mar.

Quando se reúne com os paraquedistas para os orientar sobre a missão, insiste que frente a eventuais saqueadores não devem usar as armas, salvo se forem agredidos com armas de fogo.

A todos orienta o mesmo: respeito absoluto pelos direitos humanos.

No vasto agrupamento militar e civil participa também um batalhão de infantaria da marinha, outro de luta irregular, outro de engenharia, outro de Polícia Militar, pessoal da defesa Civil, polícias, bombeiros, a guarda nacional do Estado de Vargas e milhares de voluntários civis.

Outra acção decisiva de resgate é feita pela Armada.

Ao diminuir o dilúvio e a maré, um navio de desembarque de fuzileiros navais consegue chegar a dez metros da orla, na praia de Caraballeda, onde afluem, em distintas torrentes, milhares de pessoas.

Chávez muda-se para o lugar num helicóptero e vibra ao contemplar a primeira abordagem… 

Haviam-lhe dito que aí não existia nada com vida, mas por detrás das rochas e das matas e de troncos, debaixo dos tetos das casas e de dentro de túneis que se formaram com as pedras gigantescas, saem crianças, mulheres, homens e anciãos.

Resolutos, com seus olhos inflamados de dor e de optimismo, avançam até ao barco, realizam uma imensa fila, alguns até levam os seus cães e auxiliados pelos marinheiros, deslocam-se dentro de água agarrados a uma corda.

O barinês atónito diz aos que o rodeiam: aqui há vida, há vida em todo o lugar. Meu deus, como sobreviveu essa gente?

E dos seus lábios nasce um sorriso, como uma flor na penumbra.

No final são resgatados por terra, mar e ar cerca de 90.000 cidadãos dum total de 100.000 vítimas.

Muitos são colocados primeiro em grandes recintos desportivos, escolas e outras instalações de Caracas.

Ele visita-os para os alentar, conhecer detalhes e pedir-lhes para que partam para lugares do interior onde receberão moradias, trabalho e outras condições de vida.

Chama-os de dignificados.

Dias depois, milhares são colocados de modo voluntário nas guarnições militares.

Aí recebem esmerados cuidados dos militares e de muitíssima gente, sem distinção política”…


07- Além da exaltação daquela hora, num cenário ambiental vertical dos muitos que só La Guaira oferece desde o nível do mar, o entrecruzar de memórias reflectia um corpo substantivo à solenidade, conferindo aos silêncios mais que às palavras um sinal de recolhimento reverente e um sentimento ele próprio inesquecível, que dava especial ânimo aos que dedicaram e dedicam suas vidas à luta pela lógica com sentido de vida, conforme aliás à minha modesta condição de antigo combatente do movimento de libertação em África!

Em La Guaira respirei aquela suave brisa, húmida e intemporal, feita memória e solenidade e vivificante oxigénio!

As vozes dolorosas ecoavam levadas pela chuva miudinha e tonificante e sentia-se até na troca de olhares perante as estátuas de Simon Bolivar e do Comandante Hugo Chávez que por vezes até pareciam ganhar movimento e comunicação e inspiração!

Assim guardo num santuário interior que me vai marcar para o resto da vida, a candente memória de Vargas, daquela manhã de 5 de Março de 2018!...

Martinho Júnior -- Luanda, 5 de Março de 2020

Fotos das cerimónias na Praça Simon Bolivar em La Guaira, Estado de Vargas, a 5 de Março de 2018

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