Martinho Júnior, Luanda
01- A 5 de Março de 2018, na
deslocação que fiz à Venezuela num inesperado convite da República Bolivariana,
tive a oportunidade de integrar a coluna de progressistas de todo o mundo que
visitou o pequeno estado de Vargas (1496 km2), onde se assistiu a um dos actos
que assinalaram então o 5º aniversário do desaparecimento físico do heroico
Comandante Hugo Chávez, há precisamente 2 anos…
Naquele dia, de acordo com o
programa, várias caravanas de visitantes saíram pela manhã cedo do Hotel Gran
Mellia Caracas em díspares direcções, Caracas, Miranda e Vargas, a fim de
assistir em suas emblemáticas praças evocativas a Simon Bolivar e a Hugo
Chávez, aos actos memoriais das figuras mais determinantes para a emergência de
toda a humanidade no dealbar do século XXI.
Amanheceu chuvoso aquele dia, a
chuva inscrita na estação húmida de Março, mas o que ia no mais recôndito da
alma de cada um, de cada um proveniente dos mais díspares lugares de todo o
mundo, era uma perene chama, suave e alentadora, que além da história nos
elevava até ao patamar secreto da própria vida, no que de mais sensível e
colectivo ela poderia protagonizar num caudal sagrado de confluentes
emoções!...
02- Desde Caracas pela
autoestrada, rapidamente o autocarro alcançou Maiquetia, virou para oeste, à
esquerda e alcançou Catia la Mar, estacionando num lugar reservado da placa do
moderno terminal rodoviário recém-inaugurado.
Os visitantes desembarcaram e
foram conduzidos para dentro da multicolorida gare rodoviária, espaçosa,
arejada e luminosa.
Em Catia la Mar, a localidade
mais operária, mais povoada e mais formativa nas artes do mar de Vargas, nesse
complexo à beira do Caribe, foi o próprio Governador do Estado, o General em
Chefe Jorge Luis García Carneiro, que recebeu a caravana dando-nos o abraço de
boas vindas, ao som de um pequeno grupo local intérprete de carnaval.
Teve-se aí conhecimento da rota
que se iria seguir, percorrendo sucessivamente Catia la Mar, um bairro
recém-inaugurado no âmbito da Gran Mision Vivienda Venezuela próximo da
cabeceira ocidental das pistas do Aeroporto Internacional Simon Bolivar em
Maiquetia (bem visível no Google Earth), a própria localidade de Maiquetia e,
seguindo para leste na rota à beira Caribe, finalmente a 4 vezes secular La
Guaira!...
03- Em La Guaira, na praça Simon
Bolivar, perante as estátuas equestre do Libertador e da figura do Comandante
rodeada das bandeiras de todos os países da América Latina e Caribe encimadas
pela soberana e altiva bandeira da Venezuela, participei com meus inusitados
pares numa das comoventes cerimónias que marcaram aquele dia-memorial!...
As estátuas dão costas ao mar,
como se os próceres tivessem desembarcado e olhado resoluta e imediatamente de
frente para todo o espaço continental latino-americano a sul, desafiando as
montanhas!...
Elas próprias confundem-se com um
mar de descobertas mobilizadoras de todas as entidades e nós, tão inesperados
quão ignotos forasteiros, sorvíamos a energia que delas se desprendia e se
desprendia de todos os bolivarianos presentes e mergulhávamos na vastidão de
seu poder solene, visionário e intemporal!
04- Em La Guaira, nessa praça
ampla sorvendo entre as brumas o Caribe e o chuvisco que se desprendia desde as
montanhas avassaladoras do Ávila, a cerimónia contava com um arraial orlado de
formaturas representativas das diversas armas da Força Armada Nacional
Bolivariana, com destaque para a Marinha de Guerra que em Vargas tem presença
por razões geoestratégicas, em terra e oceano adentro.
A localidade é capital do
minúsculo Estado criado em 1998, mas perdeu população após a tragédia que
ocorreu nos últimos dias do século XX, quando em finais de Dezembro de 1999
toda a região foi alvo de chuvas diluvianas que se abateram sobre ela e
desencadearam torrentes caudalosas e sucessivos desprendimentos de terras que
varreram o espaço entre as abruptas montanhas com mais de 2000 metros e a orla
costeira imediatamente contígua ao seu sopé norte.
A ampla praça Simon Bolivar fica
frente ao terminal de passageiros de La Guaira e imediatamente junto à raiz
leste do porto da cidade, o maior complexo portuário da Venezuela, lembrando
quanto a longa luta pela liberdade teve que ver, tem que ver num abraço imenso,
com o Caribe e com o imenso continente que se dilata a sul!…
O acto contou com discursos das
entidades mais representativas, com garbosas honras militares, com a deposição
duma bela coroa de flores junto à estátua elevada em pedestal do Comandante
Hugo Chávez, numa homenagem simbólica da aliança cívico-militar feita pelo
Governador do Estado e pelo Comandante da Marinha de Guerra Bolivariana.
Os visitantes foram disso
testemunhos e partícipes e eu, indiferente ao chuvisco, saí do aconchego do
arraial e fui tirando as fotos que o momento me impunha num impulso irreverente
e não protocolar… sabia que essas fotos iriam ser revistas vezes sem conta, por
que a memória é assim mesmo, a continuação das emoções que advêm de tantas
experiências do passado, por vezes duras experiências que fluem sobre um lugar
como aquele, carregado de vibrante energia, de brumas próximas e longínquas que
se misturavam com esbatidas lágrimas e também de subterrânea e silenciada
dor!...
05- Em Vargas, em finais de 1999,
o Comandante Hugo Chávez ao mesmo tempo que conheceu os resultados do Referendo
que levaria o seu Plano Pátria 2000 à execução com ele na Presidência da
Venezuela Bolivariana, enfrentou o dilúvio para comandar a aliança
cívico-militar na experiência mais traumática que alguma vez teve, inaugurando
de forma intempestiva e trágica a nova filosofia e prática do próprio Estado
Socialista e Bolivariano que nascia…
… No acto do seu nascimento
assistiu-se à dura experiência desse baptismo, perante o inesperado e pungente
cataclisma de então!...
A borrasca que se abatia sobre a
praça Simon Bolivar de La Guaira a 5 de Março de 2018, decerto que lembrou
muitos dos presentes que haviam vivido a tragédia de Vargas em finais de 1999,
quando em cerca de 4 dias os deslises de terras e as torrentes impetuosas
provenientes das ciclópicas montanhas do Ávila (o curso nordeste da espinha
dorsal dos Andes) se abateram sobre bairros pobres e desamparados que se
acoitavam nos meandros de verde de suas tão inclinadas encostas…
Jamais se saberá o número de
mortos, avaliados entre dez a cinquenta mil, jamais se saberá também ao certo
da quantidade de feridos, de desabrigados e de deslocados, acima dos cem mil,
mas sabe-se e avalia-se da dura prova que teve a aliança cívico-militar perante
uma tão grave emergência e tragédia logo no início do exercício do Comandante
Hugo Chávez, ao assumir o poder da emergente Venezuela Bolivariana!
A 5 de Março de 2018, pouco mais
de 18 anos após a tragédia, também a ocasião reflectia essa memória inscrita
nas montanhas que serviam de fundo azul-escuro, enevoado, brumoso mas
imponente, por que ao virar da página, os grandes desafios despertariam desde
os primeiros alvores do século XXI!...
Amor, amor intemporal trespassado
de história e de humanidade, a que telúricas réplicas nos havemos sempre e
sempre que sujeitar!
06- No livro “Hugo Chávez y
el destino de un Pueblo – II”, o ilustre biógrafo cubano Germán Sánchez Otero,
transporta-nos um pouco para esse clímax radiografado por mim a 5 de Março de
2018 no cenário épico e electrizante de La Guaira, entre tantas e tão difusas
brumas, esvanecidas simbioses de matizados azuis e cinzas entre ciclópicas
montanhas, a chuva comunicativa e esparsa que fluía indelével e os segredos de
fundo que ecoavam tenuemente daquele sobranceiro mar (tradução):
“A poucos quilómetros a norte de
Caracas, o Estado de Vargas é a porta principal de entrada e saída do país e o
sítio de verão mais comum dos habitantes da capital.
Nele se radicam o maior porto da
Venezuela, La Guaira e o mais importante aeroporto internacional, em Maiquetia.
A sua pequena superfície de 1496
km2, é uma estreita franja que limita a norte com o mar e a sul com várias
elevações, sobretudo o soberbo Ávila, que tem em média dois mil metros de
altitude e se interpõe entre o litoral varguense e Caracas”.
…
Até 1998 Vargas era um município
do distrito capital e nesse ano passa a ser Estado.
A sua população ronda os 350.000
habitantes e existem milhares de vivendas que só estão habitadas em dias de
folga.
A maioria dos residentes são
pessoas humildes, cujas precárias moradias se localizam nas ladeiras das
montanhas em desafio de gravidade.
Devido ao acontecimento, Vargas
ficou isolado e a partir de 17 de Dezembro só é possível aceder a ele pelo ar.
Chávez decide instalar o seu
estado-maior no aeroporto e mover-se em helicóptero para observar o cenário e
repartir ordens pelos destacamentos de resgate e de salvamento.
A sua angústia cresce em cada
viagem.
Vê lama por onde quer que vá,
dezenas de rios e quebradas transbordantes, milhares de troncos e cadáveres que
flutuam em lagos de água doce e em praias tisnadas de castanho, vê pesados
contentores de carga marítima que as correntes arrastaram como caixas de
fósforo, vê centenas de veículos elevados nos dorsos da autoestrada e nas
estradas, alguns deles dobrados em U ao chocarem contra alguma árvore, vê duas
urbanizações, Naiguatá e Carmen de Uria, cobertas de lama sobre o teto das
casas tal como noutros sítios urbanos…
…
O aeroporto parece um cenário em
plena guerra.
Dezenas de helicópteros trazem a
cada instante feridos e outras pessoas salvadas e saem para deixar cair
provisões nos lugares onde esperam ser resgatados milhares de vítimas.
Vários salões convertem-se em
refúgio e um deles em hospital de emergência, onde se juntam os médicos cubanos
que chegam na noite de 17 de Dezembro.
Levantam-se tendas de campanha
para albergar militares, polícias e centenas de voluntários civis.
Aviões provenientes do México, de
Cuba, dos Estados Unidos, do Brasil, da Argentina e de outros países aterram
com pessoal especializado e ajuda humanitária.
Ambulâncias e diversos veículos
militares e civis movem-se dia e noite.
Ordena que a brigada de
paraquedistas intervenha na zona devastada.
Muito cedo do dia 18 de Dezembro,
um milhar de homens com mochilas carregadas de mantimentos, água e medicamentos
caem do ar, em todos os lugares da zona este, a mais afectada, com a instrução
de salvar vidas e comunicar por rádios os lugares onde se encontram pessoas
para serem evacuados pelo ar, terra e mar.
Quando se reúne com os
paraquedistas para os orientar sobre a missão, insiste que frente a eventuais
saqueadores não devem usar as armas, salvo se forem agredidos com armas de
fogo.
A todos orienta o mesmo: respeito
absoluto pelos direitos humanos.
No vasto agrupamento militar e
civil participa também um batalhão de infantaria da marinha, outro de luta
irregular, outro de engenharia, outro de Polícia Militar, pessoal da defesa
Civil, polícias, bombeiros, a guarda nacional do Estado de Vargas e milhares de
voluntários civis.
Outra acção decisiva de resgate é
feita pela Armada.
Ao diminuir o dilúvio e a maré,
um navio de desembarque de fuzileiros navais consegue chegar a dez metros da
orla, na praia de Caraballeda, onde afluem, em distintas torrentes, milhares de
pessoas.
Chávez muda-se para o lugar num
helicóptero e vibra ao contemplar a primeira abordagem…
Haviam-lhe dito que aí não
existia nada com vida, mas por detrás das rochas e das matas e de troncos,
debaixo dos tetos das casas e de dentro de túneis que se formaram com as pedras
gigantescas, saem crianças, mulheres, homens e anciãos.
Resolutos, com seus olhos inflamados
de dor e de optimismo, avançam até ao barco, realizam uma imensa fila, alguns
até levam os seus cães e auxiliados pelos marinheiros, deslocam-se dentro de
água agarrados a uma corda.
O barinês atónito diz aos que o
rodeiam: aqui há vida, há vida em todo o lugar. Meu deus, como sobreviveu essa
gente?
E dos seus lábios nasce um
sorriso, como uma flor na penumbra.
No final são resgatados por
terra, mar e ar cerca de 90.000 cidadãos dum total de 100.000 vítimas.
Muitos são colocados primeiro em
grandes recintos desportivos, escolas e outras instalações de Caracas.
Ele visita-os para os alentar,
conhecer detalhes e pedir-lhes para que partam para lugares do interior onde
receberão moradias, trabalho e outras condições de vida.
Chama-os de dignificados.
Dias depois, milhares são
colocados de modo voluntário nas guarnições militares.
Aí recebem esmerados cuidados dos
militares e de muitíssima gente, sem distinção política”…
07- Além da exaltação daquela
hora, num cenário ambiental vertical dos muitos que só La Guaira oferece desde
o nível do mar, o entrecruzar de memórias reflectia um corpo substantivo à
solenidade, conferindo aos silêncios mais que às palavras um sinal de recolhimento
reverente e um sentimento ele próprio inesquecível, que dava especial ânimo aos
que dedicaram e dedicam suas vidas à luta pela lógica com sentido de vida,
conforme aliás à minha modesta condição de antigo combatente do movimento de
libertação em África!
Em La Guaira respirei aquela
suave brisa, húmida e intemporal, feita memória e solenidade e vivificante
oxigénio!
As vozes dolorosas ecoavam
levadas pela chuva miudinha e tonificante e sentia-se até na troca de olhares
perante as estátuas de Simon Bolivar e do Comandante Hugo Chávez que por vezes
até pareciam ganhar movimento e comunicação e inspiração!
Assim guardo num santuário
interior que me vai marcar para o resto da vida, a candente memória de Vargas,
daquela manhã de 5 de Março de 2018!...
Martinho Júnior -- Luanda, 5 de Março de 2020
Fotos das cerimónias na Praça
Simon Bolivar em La Guaira, Estado de Vargas, a 5 de Março de 2018
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