Tiago Vieira | AbrilAbril | opinião
Ao tanto que já se disse,
escreveu e viveu sobre esse autêntico alpha e omega dos
nossos tempos – o COVID-19, pois claro! – será, porventura, prematuro tirar
conclusões ou fazer grandes previsões.
Não obstante essa rejeição da
futurologia, há aspectos do tempo que vivemos que convidam a uma cuidada
reflexão, já que os desenvolvimentos a que venhamos a assistir não estão
pré-determinados, mas antes dependem em grande medida da capacidade que tenhamos
de sobre eles agir para os influenciar.
Os dias que vivemos oscilam entre
duas ideias: a primeira é que «vai ficar tudo bem» e «em breve vamos voltar ao
normal»; a segunda, no completo antípoda da anterior, é que «nada será igual ao
que era antes», ainda que raramente se especifique, como ou porquê assim tem de
ser.
Dos mil e um ângulos a partir dos
quais é possível observar o desdobramento destas duas ideias, há quatro
tendências que merecem um olhar especial pelas eventuais implicações que
comportam, a saber:
Uberização 2.0 - para lá do
brutal assalto aos rendimentos, a crise financeira internacional da última
década teve como marca bem mais funda o ataque aos direitos dos trabalhadores.
De tantas alterações ocorridas nessa altura e cujos impactos ainda hoje se
sentem (veja-se, por exemplo, a situação da contratação colectiva em Portugal),
a emergência e generalização de novas formas de contratação e emprego, mediadas
por plataformas digitais – vulgo «uberização» – constituiu-se como um enorme
salto na precarização das relações laborais1,
que assim se tornaram ainda mais próximas das que os proletários do século XIX
viviam, só que agora com recurso a um smartphone. À data que escrevo este
texto é imprevisível o que acontecerá em Portugal e no mundo neste campo
determinante da vida que é o Trabalho, mas parece-me inevitável que se procure
normalizar o teletrabalho. De resto, para tantos trabalhadores a passarem horas
intermináveis em transportes sobrelotados e/ou filas de trânsito que nunca
acabam, a que se somam horas sem fim em locais de trabalho sem condições, sob o
controlo e pressão de superiores hierárquicos autoritários e desrespeitosos,
esta solução pode até ser vista com bons olhos. Do lado do patronato sê-lo-à
com certeza: de uma vez só vê-se livre de custos com infra-estruturas,
transportes, energia, etc., e garante a dispersão espacial dos trabalhadores,
contribuindo para desarticular a sua capacidade organizativa e, por
consequência, reivindicativa; como em qualquer circunstância em que se
precariza a situação dos trabalhadores, o patronato verá aqui mais uma
oportunidade para aumentar os seus lucros e o seu poder.
Euro-fantasia - é verdade
que a postura dos governantes de alguns países do Norte da União Europeia em
matéria de solidariedade e compreensão com o drama dos povos de outros países é
abjecta e merece condenação. Sem prejuízo disso, a ideia de que virá do
«projecto europeu» a solução para os problemas económicos que decorrem da
paralisação prolongada dos estados mais afectados pela pandemia constitui a
renovação de uma perigosa ilusão. Se olharmos para trás veremos que, para lá da
retórica de solidariedade repetida ad nauseam, a União Europeia (UE)
jamais acudiu aos que mais precisavam – bem pelo contrário, quando se tratou de
escolher entre contribuir para tirar os mais pobres da crise ou os espezinhar
mais, as estruturas da UE sempre foram bastante afoitas a encher os bolsos dos
aflitos de pedras antes de os empurrarem da ponte (a palavra troika lembra-vos
alguma coisa?)2.
Vigilância omnipresente - só
alguém muito distraído não terá já percebido que todas as nossas interacções na
internet e, na realidade, todos os passos que damos tendo um telemóvel no bolso
podem ser monitorizados. Para lá do inegável valor económico que tem o
chamado Big Data, a vigilância permanente tem um cunho marcadamente
político, pois tem o potencial de garantir a perseguição a todos os que se
apresentem como vozes contrárias à ordem dominante3.
No quadro da pandemia tem, não raramente, sido apresentada esta inaceitável
monitorização dos dados das pessoas como algo afinal algo de legítimo, quiçá
desejável até. Para corroborar a legitimação deste gigantesco salto atrás nas
liberdades e garantias individuais, assistimos ao emergir de uma cultura de
securitização de várias esferas da vida, como se de uma situação de conflito se
tratasse4.
Eco-niilismo - vem de (bem)
antes do COVID-19 a fantasia primitivista que a solução para os problemas da
natureza residia num «retorno às origens», em que o progresso tecnológico devia
ser desprezado. Agora, perante os inevitáveis efeitos que uma quarentena
forçada teve em indicadores como os níveis de emissão de carbono ou o lixo
produzido, encontramos quem ache que o aprisionamento das pessoas em suas casas
ou a implosão da actividade económica é uma «oportunidade para salvar a Terra».
Para lá das muitas considerações que aqui se podiam fazer sobre este
proto-ideário há uma que me parece por demais evidente: terão estes
eco-niilistas parado para analisar, entre outras coisas, o impacto ambiental do
aumento exponencial no tráfego de dados que resulta do uso (ainda mais) massivo
da internet?
Dito tudo isto, é justo sublinhar
que toda a tese tem a sua antítese. Em várias instâncias – mais até do que
aquelas que aqui sumariamente referi – são hoje ainda mais evidentes os limites
de um sistema orientado exclusivamente pela acumulação do lucro como é o
capitalismo.
Não obstante, quem até aqui
sempre lucrou com o tabuleiro inclinado em que se joga o capitalismo
dificilmente estará agora disposto a abdicar dos privilégios de que tem
usufruído. Recuperando a metáfora tantas vezes usada por Slavoj Zizek: todos os
cuidados são poucos, não vá a luz no fundo do túnel ser, afinal, a do farol da
frente de um comboio na nossa direcção!
Notas:
1.Sobre
este tema é de grande interesse a leitura de Uberworked and Underpaid de
Trebor Scholz, ou de Platform Capitalism de Nick Srnicek, entre
outros. O primeiro encontra-se disponível em rede [acedido a 24 de Abril
de 2020]. Ambos os livros foram publicados pela Polity Books.
2.Em Os caminhos da social-democracia europeia, Avelãs Nunes
oferece uma importante reflexão que atesta aquilo que afirmo.
3.Vale
a pena conhecer o The age of surveillance capitalism de Shoshana Zuboff.
4.No
fim de semana de Páscoa o Governo da Catalunha deu instruções às câmaras
municipais dos concelhos costeiros que colocassem os seus funcionários a
patrulhar as ruas para reportar à polícia casos de pessoas a violar a
quarentena. Como se isso não fosse suficiente, fez um apelo ao que chamou de
«delação vicinal», ou seja, que as pessoas vigiassem das suas casas o movimento
das ruas, chamando as autoridades em caso de verem estranhos a circular.
Imagem: Johannes Eisele / AFP via
Getty Images
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